ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2009
Sorria! O Inferno não existe
A má notícia é que o Céu também não
Fábio Fujita | Edição 35, Agosto 2009
Na Escola Estadual Frei Afonso Maria Jordá, na cidade mineira de Aimorés, os alunos cumprem diariamente o ritual de rezar na sala de aula. Tão inescapável quanto o gongo do recreio, o momento de evocação divina nunca havia gerado conflito. Até que, no início do ano, um estudante se recusou a tirar o boné para a prece.
A atitude inusitada teria sido entendida como simples transgressão de adolescente, não fosse a justificativa apresentada pelo garoto: “Eu não reverencio esse Deus, então por que tenho que tirar o boné?” A lógica era irretocável. Entre estarrecidos e embasbacados, os professores se entreolharam. Sem saber como explicar ao jovem pecador que vilipêndio dessa grandeza o levaria, no post-mortem, a ser fritado nas labaredas do Inferno, eles fizeram o que lhes cabia: mandaram-no para o purgatório terreno, a diretoria.
O caso teria sido contornado e esquecido, não fosse a intervenção da Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos, Atea. A entidade, formalizada em novembro de 2008, tem como objetivo defender o ateísmo e combater hostilidades e sanções sofridas por seus adeptos, além de difundir premissas anti-Deus como base de um caminho filosófico consistente. “Entramos com uma representação no Ministério Público e o inquérito está rolando”, explica o presidente da associação, Daniel Sottomaior, 37 anos, a propósito do episódio de Aimorés.
Não foi sua primeira batalha legal. Em abril, quando lia uma série de artigos sobre a Páscoa publicados por um jornal de Jundiaí, Sottomaior foi surpreendido pelas idéias da psicóloga Léa Maria Lopes. Ela asseverava: “É dever dos pais orientar e incentivar os filhos a seguir uma religião, seja ela qual for.” Podia-se ler, ali, o pressuposto de que a religião faz o indivíduo melhor – e que, portanto, sua ausência o piora. O episódio motivou outra representação da Atea, desta vez no Conselho Regional de Psicologia de São Paulo, para contestar a profissional; na condição de representante da categoria dos psicólogos, ela não poderia recorrer a princípios não fundamentados na ciência.
Preconceitos dessa sorte não surpreendem Sottomaior. No inconsciente coletivo, ele diz, está consolidada a idéia que associa o ateu a uma figura do mal, quando não à própria encarnação de Belzebu na Terra. (O fato de “inconsciente coletivo” ser um conceito tão metafísico quanto Deus não parece atrapalhar Sottomaior.) “O que o [José Luiz] Datena fala no programa dele sobre o pior estuprador? ‘Esse não tem Deus no coração'”, ele exemplifica.
Sottomaior cita dados para mostrar que a perseguição aos incréus é não só real, mas explícita, à diferença do preconceito sofrido por negros e homossexuais, segundo ele, mais velados. Uma pesquisa do Instituto Gallup nos Estados Unidos apontou, por exemplo, que um candidato ateu à Presidência enfrentaria resistência de 53% do eleitorado, contra 43% do segundo colocado, um hipotético candidato gay. Na mesma linha, de acordo com um estudo encomendado em 2008 pela revista Veja ao CNT/Sensus, 87% dos brasileiros jamais ajudariam a eleger um candidato que tivesse desertado do Criador. “É um índice de rejeição mais alto do que contra os negros americanos na época em que eram obrigados a viajar nos bancos de trás dos ônibus”, comenta, horrorizado.
O dirigente ateísta frisa que em nenhum momento rompeu com Deus, e isso pelo simples fato de ele nunca ter estado em sua vida. “Todo mundo nasce ateu. Deus não surge espontaneamente nos lábios das crianças”, raciocina. É, portanto, o entorno – em boa parte do mundo, cristão – que determina as convicções religiosas dos pequenos, num período da vida em que eles tendem a acreditar em tudo o que ouvem dos adultos. Sottomaior agradece “a imensa sorte” de não ter sido doutrinado dessa forma. E refuta a idéia de que o ateísmo possa ser entendido, esquizofrenicamente, como religião: “Essa comparação me deixa violento”, diz, suave. “Ateísmo é uma religião tanto quanto careca é uma cor de cabelo”, conclui, citando o ícone da descrença Don Hirschberg, espécie de Jesus Cristo ateu nascido no Arkansas.
Existem duas correntes distintas entre os adeptos do ateísmo: os antirreligiosos xiitas e os céticos, que nada pregam. Sottomaior é do primeiro time. “Roxo, raivoso e militante”, orgulha-se, indicando que integra uma comunidade (do Orkut) chamada “A Bíblia me faz rir”. Para ele, trata-se do documento que melhor expressa o quanto o suposto Deus cristão seria homofóbico, machista, vingativo e homicida. Sottomaior lembra que a maior injustiça dos tempos de Cristo, “se é que existiu um Cristo”, foi a escravidão. “Quantas coisas a Bíblia fala contra isso? Nada. Sempre se fala em ‘servos’. É um eufemismo que os tradutores acordaram para se referir aos escravos.”
Também no Orkut, entre máximas atéias de Drummond (“De nada vale erguer mãos e olhos para um céu tão longe, para um Deus tão longe”), Einstein (“A palavra Deus para mim é nada mais que a expressão e produto da fraqueza humana”) e Nietzsche (“O cristão comum é uma figura deplorável”), Sottomaior publicou uma espécie de mantra extraoficial dos ateus: Obrigado, senhor, porque me deu de comer hoje, apesar de ter esquecido as centenas de milhares de crianças que morrem de fome todos os anos, por mais que elas e seus pais também tenham orado! Obrigado, senhor, por atender minhas preces quando peço para meu time ganhar e também por não atender as preces de milhares de pessoas que imploram pela paz diariamente! Obrigado, senhor, porque você salva a vida de uma pessoa no meio de um desastre com milhares de vítimas fatais!
A formalização da Atea como entidade nacional é o primeiro marco de uma luta para mudar a situação dos ateus – a “última minoria social”, na classificação de Sottomaior. Ele considera que existe um forte boicote dos meios de comunicação sobre o assunto. Os jornais Folha de S.Paulo e O Estado de S. Paulo chegaram a procurá-lo para matérias que, no final, acabaram engavetadas. Coisa de deísta.
Sem que as idéias circulem, a associação não consegue arrecadar fundos para emplacar campanhas como as da Inglaterra, com frases estampadas nas laterais dos ônibus: There’s probably no God. Now stop worrying and enjoy your life – “Provavelmente Deus não existe. Agora pare de se preocupar e aproveite a vida.” Por aqui, Sottomaior diz que o slogan seria: “Sorria! O Inferno não existe” ou “Você é quase tão ateu quanto nós. Quando entender por que não acredita em todos os outros deuses, saberá por que não acreditamos no seu.”
Ainda usando calças curtas, a associação não conseguiu articular nenhuma atividade especial para marcar o Dia do Orgulho Ateu, 12 de fevereiro. A data, celebrada por confrarias ateístas de alguns países, homenageia o nascimento de Charles Darwin, inimigo número 1 do criacionismo.
Personalidades que poderiam emprestar visibilidade à causa também não se assumem devidamente. Sottomaior chegou a procurar Glória Maria, depois de vê-la se dizer atéia no programa Pânico, condição negada pela assessoria da apresentadora. Ele alfineta: “Foi o caso, talvez único, de alguém que saiu do armário e entrou correndo de volta.”
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