CRÉDITO: ANDRÉS SANDOVAL_2025
Entrelaçado ancestral
A profissão de trancista ganha reconhecimento formal
Leandra Souza | Edição 230, Novembro 2025
Aos 16 anos, Rafaela Azevedo descobriu uma antiga arte das mulheres negras: o cabelo trançado. Era o início do século XXI, quando práticas que valorizam a identidade negra ainda não eram tão celebradas – e Rafa, como gosta de ser chamada, começou a trançar os próprios cabelos.
Ela tem crespos, de “curvatura fechada”, como dizem os especialistas. É um tipo de cabelo que, mesmo após tantos anos de campanhas e manifestos pela valorização dos traços negros, nem sempre é aceito por padrões de beleza ainda pautados pela branquitude. “Comecei a trançar o meu cabelo devido a uma necessidade minha mesmo, de querer um cabelo grande, depois de passar por preconceito na escola”, diz ela. A necessidade pessoal tornou-se profissão. Hoje com 40 anos, Rafa trabalha como trancista em Belém.
É preciso insistir na distinção: Rafa não é cabeleireira. É trancista. Geralmente exercido por mulheres negras que prestam serviços a uma clientela negra, esse ofício não costumava receber a devida valorização. Era tratado como uma categoria menor na oferta dos salões de beleza. Em junho passado, houve uma mudança substancial nessa situação: o Ministério de Trabalho reconheceu a profissão de trancista, que foi incluída na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), sob o número 5161-65.
Há nove anos na profissão, Rafa estudou muito para dominar, por exemplo, o entrelace. Essa técnica consiste em fazer tranças bem junto à raiz dos cabelos da cliente para logo depois entrelaçar apliques de cabelo sintético ou natural. “O meu trançado começou pelo entrelace”, diz ela, que cobra a partir de 300 reais pelo serviço.
No primeiro ano de carreira, atendia em domicílio. Depois improvisou um salão em sua própria casa, onde trançou cabelos por cinco anos. Atualmente, ela gerencia o Rafa Entrelace, na região central de Belém. O lugar conta com dois espaços: o salão onde as clientes têm seus cabelos trançados e uma loja de produtos para fazer e manter essas tranças – jumbos, laces, pastas modeladoras e pentes específicos.
Thaise Vieira, outra mulher preta que se tornou trancista, começou sua especialização durante a pandemia, quando muitas pessoas perdiam seus empregos. Passados os anos de isolamento social, ela criou um estúdio especializado em tranças, o Espaço Uzuri.
Na língua africana suaíli, uzuri significa beleza. No estabelecimento da trancista de 38 anos, a palavra carrega múltiplos significados. “É um espaço onde tu podes te sentir em casa, para te reconectar com aquilo que tu perdeu”, explica. “Não é um espaço somente para fazer trança. É um espaço de aprendizado também.”
Aprendizado, de fato: o Espaço Uzuri, também em Belém, oferece um curso básico de formação de trancistas. Serve até para quem “nunca fez trança na vida”, garante a proprietária. As aulas incluem teoria e prática. Além das principais técnicas de trançado, abarcam a história das tranças, marketing digital e educação financeira. “A gente tenta ensinar para elas aquilo que ninguém ensinou para a gente antes”, diz Vieira. “É para que elas possam chegar o mais rápido possível aonde querem chegar.”
Até alguns meses atrás, a legislação trabalhista obrigava as trancistas a se cadastrarem como cabeleireiras. A categoria reivindicava reconhecimento da profissão. A deputada federal Rogéria Santos (Republicanos-BA) abraçou essa bandeira, com apoio de Ireuda Silva, vereadora de Salvador pelo mesmo partido. No ano passado, Santos apresentou um projeto de lei para regularizar a profissão de trancista, que segue em tramitação na Câmara dos Deputados. Em outra frente, ela solicitou ao ministro do Trabalho e Emprego, Luiz Marinho, que o ofício fosse incluído na CBO – o que foi atendido.
Agora, o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) está organizando discussões interministeriais para viabilizar que essas profissionais tenham direito a se estabelecer no mercado formal apresentando-se como trancistas. Assim, poderão emitir notas, fazer contribuições previdenciárias e emitir certificados dos cursos profissionalizantes desenvolvidos por elas. Segundo a chefe da Assessoria de Participação Social e Diversidade do MTE, Anatalina Lourenço da Silva, o objetivo é que, em breve, as profissionais comecem a usufruir de tais direitos. “A gente pretende muito dar celeridade nesse processo”, afirma.
O advogado trabalhista Francisco Assis Neto, formado pela Universidade Federal do Pará (UFPA) diz que a formalização da categoria é só o primeiro passo. Uma “mudança do pensamento social” seria necessária para que a profissão deixe o lugar social subalterno a que foi historicamente relegada. “Sabemos que a profissão de trancista está associada a um grupo muito específico da sociedade, o das pessoas negras, que ao longo da história do Brasil teve sua cultura e suas músicas marginalizadas e até mesmo criminalizadas”, afirma. Para Assis Neto, é essencial complementar a inclusão na CBO com políticas públicas, “seja de conscientização, seja de acompanhamento ou assistência”.
Rafaela Azevedo e Thaise Vieira se orgulham de trabalhar com um saber africano que atravessou os séculos e foi herdado pelo povo negro brasileiro. Rafa garante amar o que faz, mesmo que para realizá-lo ela precise extrapolar as oito horas diárias de trabalho. “Não cumpro o meu horário. Se der para atender depois do expediente normal, eu atendo.” A sua principal preocupação é elevar a autoestima de quem a procura, com a ajuda de um “conhecimento ancestral” – como ela define o trançado. “Ele está no nosso DNA”, diz.
Leia Mais
