Marcele Oliveira na abertura da Plenária Mundial de Juventudes Divulgação/Plenária Mundial de Juventudes
A campeã de Realengo
Marcele Oliveira trabalha para que a voz dos jovens seja ouvida na COP30
Durante uma conversa com representantes da sociedade civil em um evento de preparação da COP30 realizado em outubro, em Brasília, o presidente da conferência André Corrêa do Lago falou sobre a importância da participação dos mais jovens nos debates sobre as mudanças climáticas. Para o embaixador de 66 anos, pai de quatro filhos, é uma injustiça que velhos como ele decidam sozinhos como será o futuro do planeta. “Vocês têm que reclamar. Por favor, reclamem muito.”
É uma sinalização que mostra como as conferências do clima estão aos poucos abrindo espaço para a perspectiva das novas gerações sobre a crise climática. Em 2023, durante a COP28, em Dubai, foi criado o posto de Jovem Campeã do Clima. O cargo teve seu primeiro representante (Leyla Hasanova) na conferência seguinte, sediada em Baku, no Azerbaijão, no ano passado.
Em Belém, a escolhida para a função foi a brasileira Marcele Oliveira, uma carioca de 26 anos. Sua função, além de integrar a equipe que auxilia Corrêa do Lago, é estimular o envolvimento dos jovens nas discussões e garantir que eles sejam ouvidos nas rodadas de negociações. “É esperado que a gente consiga repassar o que está acontecendo dentro da sala de negociação para fora e também o que está acontecendo fora para dentro a partir do diálogo com a presidência”, explicou Oliveira à piauí.
Nascida e criada em Realengo, subúrbio da Zona Oeste do Rio de Janeiro, Oliveira habituou-se a circular entre os integrantes do primeiro escalão do governo e até do presidente Lula. “Não é que todo dia eu acorde e fale: ‘Oi, ministra Marina Silva, oi, ministra Sonia [Guajajara]’”, disse. “Mas é interessante saber que eu posso ligar, mandar uma mensagem, chamar para um evento.”
O primeiro contato com Marina, ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, ocorreu poucos meses antes da COP, em um encontro de ativistas em Brasília. A ministra disse que era importante ter lideranças jovens e progressistas no debate sobre o clima, sobretudo na internet. “Não sei se foi um convite ou um chamado, mas entendi a responsabilidade que me foi colocada de vocalizar o que é a injustiça climática”, disse Oliveira. Desde então, estreitaram laços.
A proximidade encorajou a jovem a ligar para Marina Silva e convidá-la para a Plenária Mundial de Juventudes, organizada por ela, na primeira semana de COP. “Achei que ela não fosse. Fiquei muito surpresa quando ela chegou”. O evento inaugurou a Cidade das Juventudes, um espaço que funciona como ponto de encontro e mobilização de ativistas, além de servir de acomodação para mais de cem jovens brasileiros e estrangeiros que estão participando da COP.
Para ocupar o posto de Jovem Campeã do Clima, Oliveira se destacou em um processo seletivo realizado no começo de 2025 que contou com 154 inscritos. Sua candidatura surgiu de uma proposição coletiva, após o incentivo de amigos que, assim como ela, integravam o Jovens Negociadores pelo Clima, um programa destinado ativistas periféricos e das comunidades negra, indígena e LGBTQIA+ para atuarem nos debates sobre o clima.
Dos 154 nomes, restaram 24 na disputa. Desses, sete eram negros/indígenas. Ficou acertado que quem vencesse o certame montaria uma equipe com representantes dos seis biomas do Brasil para que o mandato na COP30 fosse exercido coletivamente.
Como uma das finalistas, ela precisou comprovar a participação em eventos relacionados à conferência climática e demonstrar conhecimentos avançados em inglês. Além disso, foi entrevistada por membros da Secretaria Nacional de Juventude, órgão vinculado à Secretaria-Geral da Presidência da República.
Durante a conversa, a ativista foi indagada sobre suas estratégias para o mandato que pretendia exercer. “Perguntaram o que eu gostaria de fazer no cargo, como eu poderia contribuir… Respondi que sou uma mulher negra, que gostaria de compartilhar a experiência com um time, fazer algo coletivo. E que no meio de tantas pessoas brancas, era preciso equilibrar um pouco.”
Ainda sem ser nomeada, Oliveira foi convidada para ir à Brasília em entre abril e maio para conversar com Márcio Macêdo, então secretário-geral da presidência, e com o presidente Lula. “Ele [Lula] falou do quanto estava se empenhando e estudando sobre a questão climática e de como ser um contraponto aos Estados Unidos nesse tema. Ainda não havia o tarifaço, mas já tinha um climão na mesa.”
O mandato de Oliveira como Jovem Campeã do Clima é de um ano, até a próxima COP31, que será na cidade de Antalya, na Turquia. Ela lidera uma equipe de dezenove jovens com idade entre 18 e 29 anos. Entre eles, cinco foram escolhidos para representar cada bioma brasileiro. Mateus Fernandes, de 25 anos, que cuida das redes sociais de Oliveira e é o representante da Mata Atlântica, disse que o objetivo dos enviados é alinhar as discussões das COPs com as demandas específicas de cada bioma. “Marcele tem uma representatividade muito grande”, afirmou Fernandes, que vem da periferia de São Paulo.
Criada em uma família de educadores, Oliveira passou a infância e adolescência sem muitas opções de lazer em Realengo. “Sábado era dia de estudo, e domingo, de igreja”, conta. “Não tinha essa lógica de brincar numa praça ou num parque. No máximo a gente ia ao shopping de Bangu.”
Embora seu avô fosse dono de uma cooperativa de reciclagem na Baixada Fluminense, a questão ambiental não era um assunto doméstico. “Para mim, o meio ambiente era uma coisa de gente branca da Zona Sul.” O entendimento começou a mudar aos 14 anos, quando ela ingressou no ensino médio em uma escola técnica na Mangueira, na Zona Norte. Durante o trajeto de ônibus, Oliveira passava por áreas da cidade bem mais arborizadas do que aquela onde vivia, e percebeu que poderia fazer algo para mudar isso.”
Ela se envolveu na mobilização de moradores para impedir que uma área pública fosse privatizada e se tornasse um condomínio fechado. Eles desejavam que o espaço se tornasse uma área verde – o que hoje é o Parque Realengo. A reivindicação fez com que a educação ambiental ganhasse espaço entre os assuntos discutidos no bairro.
A partir desses embates, entre 2019 e 2020, ativistas ambientais de Realengo com apoio da ONG Casa Fluminense desenvolveram cursos de políticas públicas e criaram o projeto Agenda Realengo2030, para discutir os impactos da mudança climática na Zona Norte do Rio. Outro fruto desse movimento no qual Oliveira esteve inserida é a “Ocupação Parquinho Verde”, dedicado a realização de saraus, aulas de educação ambiental e horta comunitária no Parque Realengo. “Eu vi que, para a revitalização do parque de fato avançar, foi necessária uma grande mobilização de pessoas, que tinha de vir através da cultura”, relembra.
Oliveira mora no Estácio, no Centro, mas sua família segue na mesma casa de Realengo onde ela passou a infância. “Agora, meus irmãos e meu sobrinho têm onde brincar, comemorar o aniversario ou ver o pôr do sol”, disse a ativista.
Os projetos locais serviram de esteio para que a jovem, financiada por organizações filantrópicas, participasse de sua primeira COP, no Egito, em 2022. “Foi minha primeira viagem internacional, não sabia nada, nem como pedir comida no avião. Não falar inglês também gerou muita insegurança em mim”, relembra. “Quando voltei, disse: ‘gente, não tem condição. Se eu quero ser ouvida e levar minha voz para espaços como esse, preciso estudar inglês.”
Para isso, reuniu todas as economias que tinha e cursou aulas particulares do idioma por um ano. Na conferência seguinte, em Dubai, no fim de 2023, Oliveira já se sentiu mais confiante. “Ainda não era fluente, mas já conseguia pedir a minha própria comida”. Ela fazia parte do grupo de Jovens Negociadores pelo Clima, o que deixou a viagem mais “orientada”. “No Egito não era uma delegação, com suporte e organização. Em Dubai, tínhamos uma agenda e equipe de apoio.”
Ela lembra que na COP de Dubai já havia o “dilema” dentro da gestão petista acerca dos combustíveis fósseis. Convidada para fazer um pronunciamento em um evento entre o governo e a sociedade civil, Oliveira cobrou Lula publicamente por uma discussão séria sobre o tema e que a juventude tivesse voz ativa nas discussões – no mesmo período, o Brasil havia recebido o convite para integrar a Opep+, um braço do grupo de cooperação entre países produtores de petróleo. “Tentei conduzir uma fala que não fosse só afrontosa, mas que trouxesse um olhar de colaboração intergeracional.”
Oliveira quase não foi a COP29, no ano passado, em Baku. “Precisava me formar na faculdade”, disse ela, que é graduada em produção cultural pela Universidade Federal Fluminense. Além disso, faltava dinheiro. Ela mudou de ideia quando soube que a conferência iria promover pela primeira vez uma reunião do Grupo de Amigos da Ação Climática Baseada na Cultura, presidido pelos Emirados Árabes e pelo Brasil. O colegiado reúne ministros da cultura de países como Alemanha, Gana, Grécia, Iraque, Itália, Espanha, Egito, República Democrática do Congo, Senegal, Sérvia, entre outros.
Seria a oportunidade perfeita para ela, que tem articulado os dois temas – cultura e clima – em seus trabalhos acadêmicos e na atuação como ativista. Ela conseguiu viabilizar passagem aérea e hospedagem com ajuda de ONG’s e, como complemento, fez uma vaquinha online – arrecadou 15 mil reais. “Acontece muito entre os jovens de irem sem dinheiro. Como é que come? E se passar mal? SUS é só no Brasil.”
Durante a COP29, fez conexões profissionais com pessoas que também se interessam pela relação entre clima e cultura (ela pretende fazer um mestrado sobre os temas) e descobriu a criação do cargo de Jovem Campeã do Clima, que ocupa atualmente. “Pensei: ‘opa, tem alguma coisa aqui’. E aí começamos a articular para entender como seria o processo.”
Na manhã do segundo dia da COP30, Oliveira concedeu entrevistas à imprensa. Às 9h15, entrou ao vivo em um programa de rádio. Falou por cerca de oito minutos sobre sua trajetória, enumerou suas expectativas para a conferência e explicou o conceito de racismo ambiental. “É quando decisões são tomadas sobre um território e que mexem naquele ecossistema sem o consentimento das pessoas que lá moram”, afirmou.
Os temas sobre o aquecimento global estão na ponta da língua. “Justiça climática não é só um conceito, é uma prática de regeneração e proteção, porque temos uma cultura de destruição. Pensa que tem pessoas que dormem com o barulho da chuva e outras que acordam com a casa alagada”, continuou Oliveira ao final da sua participação. Ao longo do dia, ainda falaria com uma rede brasileira de tevê e uma agência portuguesa de notícias.
Por volta das seis da tarde, ela e outros trinta jovens adentraram um ônibus sem ar condicionado na saída da Zona Azul, onde acontecem algumas das principais negociações da COP30, para irem até a sede do acampamento onde aconteceria a Plenária Mundial de Juventudes, seu compromisso mais importante do dia.
Quando o ônibus entrou na rua do acampamento, foi possível avistar de longe um grande telão de LED e sentir no peito a vibração da música alta que ecoava das caixas de som. “Caraca, isso parece o Lollapalooza”, exclamou Oliveira. “Eu estava em retiro espirutual, mas agora já estou animada de novo”, disse a jovem, que fez o trajeto de 20 minutos em silêncio e sem consultar o celular.
O evento reuniu jovens de mais de oitenta países, representantes de movimentos sociais e autoridades brasileiras. Além de Marina Silva, convidada pessoalmente por Oliveira, estiveram presentes a primeira-dama Janja Lula da Silva, que é enviada especial do time de articulação da COP30 e os ministros Guilherme Boulos (Secretaria-Geral da Presidência), Anielle Franco (Igualdade Racial), Márcia Lopes (Mulheres) e Margareth Menezes (Cultura), que ao final cantou O Sal da Terra, de Beto Guedes e Ronaldo Bastos, acompanhada pelo batuque de crianças e adolescentes de um projeto social em Belém.
Oliveira foi a mestre de cerimônias. “Não existe falar de enfrentamento da mudança do clima sem falar com quem está no território”, disse ela ao microfone. “A gente ouve do lado de lá e agora vamos ouvir o lado de cá”. O evento terminou por volta das 22h30.
Voltei a encontrar Oliveira na quinta-feira (20), penúltimo dia de COP, durante um almoço. Estava ansiosa com a reta final da conferência e os seus desdobramentos. “Chegou o momento de todo mundo jogar o jogo. Não dá para se distrair. Só saberemos se deu certo ou errado quando sair o texto.”
Ela faz referência a carta final da COP, que estipula ações e metas para combater as mudanças climáticas. “A luta para a inclusão das demandas de afrodescendentes, indígenas, de gênero, da periferia e da juventude é feita no dia a dia, com a pressão da sociedade civil. Enquanto não for negociado o texto final, está tudo em jogo.”
“As conversas no corredores vão dando os indícios do que está mais para frente e do que está mais para trás. É muito angustiante”, completou a ativista.
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