IMAGEM: ESTÚDIO ONZE
Fina sintonia
Intérpretes são testemunhas privilegiadas da história. E costumam guardar segredos com rigor maior do que padres, médicos ou mordomos
Dorrit Harazim | Edição 36, Setembro 2009
O encontro bilateral de alto nível começara de forma constrangedora. Sentados lado a lado no salão presidencial de Cartum, a capital do Sudão, o presidente Omar Hassan Bashir e a secretária de Estado norte-americana Condoleezza Rice permaneciam mudos. Mal se moviam e evitavam se olhar. Estavam condenados ao silêncio. Do lado de fora, o intérprete Gamal Helal, única pessoa habilitada a descongelar aquela cena, se debatia para furar o cerco da segurança palaciana. A sina dos intérpretes é essa mesma: tendem a ser tão indispensáveis quanto desconhecidos. Só quando Helal conseguiu aninhar-se entre Rice e Bashir é que as duas figuras estáticas adquiriram vida e voz. Puseram-se a falar e a negociar, cada um em sua língua. Com Helal como fio condutor de voltagem dupla – do árabe para o inglês e vice-versa – eles só não se entenderam porque a agenda de ambos era, mesmo, irreconciliável.
Há ocasiões em que o protocolo permite que uma autoridade se expresse no idioma que lhe convier, dispensando a presença de intérpretes. Nesta modalidade, coube ao solteirão e misantropo David H. Souter, quando ainda era juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos, usar um recurso incomum para salvar uma noitada formal. Sentado ao lado da esposa do ministro da Economia da Hungria, numa das raras vezes em que compareceu a um jantar solene em Washington, Souter e a húngara descobriram uma ferramenta em comum para atravessar a soirée: conversaram em latim.
Já quando o protocolo é lei e o líder é monoglota, os estilos variam de acordo com a personalidade de cada um. O filho de metalúrgico Leonid Brejnev, que comandou a União Soviética de 1964 a 1982, tinha um conhecimento de línguas estrangeiras restrito a uma única expressão: auf Wiedersehen (“até logo”, em alemão), com a qual não apenas se despedia como saudava dignitários de vários quadrantes, inclusive os de língua inglesa.
Outra opção é fazer como o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que adquiriu invejável descontração em meio a seus pares poliglotas. Quando a coisa aperta, basta-lhe uma frase para ficar seguro: “Cadê o Sérgio?” O carioca Sérgio Xavier Ferreira, de 59 anos, formado em comunicação social e ciência política, e com 36 anos de métier no currículo, tornou-se intérprete de ocasião de Lula para o inglês (e vice-versa, modalidade chamada de retour, no jargão dos profissionais), bem antes da chegada petista ao poder. Foi durante o encontro mundial da Eco 92, realizado no Rio de Janeiro, que Ferreira se ofereceu para traduzir um discurso preparado por Lula para um dos jantares do evento.
A partir daí, o vínculo foi se estreitando e hoje a química entre o presidente globe-trotter e seu intérprete titular é absoluta. Ele se tornou “o cara” do “cara”. Declina ser entrevistado enquanto estiver a serviço da presidência da República. Não apenas ele. Lúcio Reiner, aconselhado pelo ministro da Secretaria de Comunicação da Presidência, o jornalista Franklin Martins, também se considerou obrigado a sigilo absoluto até deixar o cargo.
Para um assessor do Palácio do Planalto, a liga entre Sérgio Ferreira e o presidente brasileiro consolidou-se quando Lula, recém-eleito, mas ainda não empossado, empreendeu sua primeira viagem aos Estados Unidos. O encontro de estréia com George W. Bush no Salão Oval da Casa Branca estava marcado para uma terça-feira de inverno em Washington, em 10 de dezembro de 2002. O brasileiro estava tenso, fumava uma cigarrilha atrás da outra – afinal, pisava no país cuja imprensa mais conservadora insistia em retratá-lo como parte de um “eixo Lula-Castro-Chávez”, com agenda sindicalista de sotaque esquerdista. Marcel Bouquet, o veterano intérprete do Departamento de Estado para a língua portuguesa, tinha sido convocado para atuar junto a Bush. Sérgio Xavier Ferreira faria o mesmo para Lula.
Pelo formato do encontro, a interpretação seguiu a modalidade chamada de “consecutiva”, na qual o intérprete primeiro ouve um trecho ou a sentença completa de uma fala, e traduz o que ouviu durante breve pausa do orador, sustentado essencialmente pela memória. Mas não tardou para que o diálogo entre os dois chefes de Estado se tornasse menos protocolar, portanto mais ágil e veloz. A interpretação dupla começou a parecer arrastada e Sérgio achou por bem traduzir tanto as falas de Lula para Bush como as de Bush para Lula – o mencionado retour. Ao final do encontro, o 43º presidente dos Estados Unidos estendeu-lhe a mão e disse: “Parabéns, eu gostaria de cumprimentá-lo pela atuação.” Dado que elogios e apreço público a intérpretes são mercadoria rala na profissão, foi um batismo a ser comemorado.
Ser intérprete de alto nível é ser essa figura espremida entre duas personalidades que fingem falar a mesma língua. É se contentar com um perfil próximo ao de um figurante, sempre mantido a distância durante as sessões de registro para a posteridade. Caso venha a aparecer numa foto, talvez inclinado sobre o ombro de alguma autoridade, soprando-lhe o que está sendo falado (modalidade chuchotage, ou “ao pé do ouvido”), a legenda o designará como “pessoa não identificada”. O mesmo ocorre quando ele ou ela porventura aparecerem em uma foto oficial, no meio de dois líderes. Dada a quantidade industrial de viagens do presidente brasileiro, e os inevitáveis flagrantes de seu intérprete mais frequente, a piada não tardou. “Daqui a alguns anos vão perguntar quem é esse barbudo ao lado do Sérgio e do Obama”, cunhou o assessor do presidente para Assuntos Internacionais, Marco Aurélio Garcia.
Existe um formato ainda mais anônimo e impessoal do métier, a interpretação simultânea – quando o profissional fica ilhado numa cabine de vidro à prova de som, com visão para uma sala de conferências, tendo por cordão umbilical um fone de ouvido. Um painel de áudio com microfone e alguns botões complementam o cenário de um desempenho tão fascinante quanto indecifrável. Escrevendo sobre esse ofício, o escritor escocês Alastair Reid, autor de mais de quarenta livros e articulista da revista The New Yorker, compara intérpretes simultâneos a “virtuoses da música ou dos palcos, uma vez que interpretam um papel. Com a diferença de que eles nunca podem ensaiar sua parte, pois cada apresentação será inteiramente diferente”.
A beleza do ofício não está na destreza mecânica do intérprete, e sim na sua habilidade em conseguir optar, numa fração de segundos, entre alternativas sintáticas de um idioma para melhor traduzir o que está sendo dito em outro. Sobretudo, ao contrário do que se imagina, a essência do ofício não está no conhecimento puro de duas ou mais línguas, mas no domínio absoluto de uma delas (a língua A ou língua-mãe), e na capacidade de usá-la em toda sua extensão. O talento está em captar as intenções do orador muito além das palavras que ele pronuncia. Intérpretes são comunicadores, são meios de transmissão. Não se trata de traduzir palavra por palavra, mas de transmitir uma mensagem capturada numa língua e reconstruída com fidelidade em outra. Tudo isso em tempo real, sob pressão. Dado que o intérprete simultâneo ouve e fala ao mesmo tempo, ele precisa aprender a ouvir seletivamente, focando mais no sentido daquilo que é dito do que, individualmente, em cada palavra.
Alastair Reid ficou estarrecido durante uma conferência internacional, em Genebra, com a atuação de um intérprete simultâneo em cabine. Ao mesmo tempo em que captava pelo fone de ouvido a fala de um orador russo, e seus lábios emitiam a tradução para o espanhol, ele também folheava a seção de esportes do Journal de Genève, escrito em francês.
“Me pergunto se o bom intérprete não tem efetivamente algum parafuso solto”, pondera o veterano John Stephen Morris, um californiano espaçoso, radicado há 42 anos em Brasília. Ele aponta para um aspecto único da profissão: “Você está ouvindo numa língua, e você não pode refletir sobre o que está ouvindo; você também está falando numa outra língua, e ao mesmo tempo está como que fora de sua órbita, observando a você mesmo do alto. Como se você estivesse fiscalizando o que lhe sai da boca.”
Os dois telefones da residência de Morris, no Lago Norte, não param de tocar, atestando que trabalho, aos 68 anos de idade, não lhe falta. O seu escritório é atravancado de papéis, apostilas e livros por toda parte, sobretudo no chão. Na estante, o lugar de honra está ocupado pela obra completa do irmão famoso, o escritor e jornalista Charles R. Morris, autor, entre outros, de Os Magnatas e do best-seller premonitório O Crash de 2008: Dinheiro Fácil, Apostas Arriscadas e o Colapso Global do Crédito, sobre a implosão do mercado mundial.
“O essencial é você ser imune ao pânico”, avisa o veterano, com seu vozeirão de tenor. Morris já encarou um enfarte com três pontes de safena e dois anos depois estava em uma cabine quando voltou a sentir dores no peito. “Mas a colega de cabine foi extremamente prática, me substituiu na hora, fui levado para o hospital e ninguém percebeu nada”, disse.
Morris é intérprete de conferência (designação oficial do profissional que faz tradução simultânea e/ou consecutiva), além de tradutor juramentado. À primeira vista, tudo a ver, dado que as duas atividades exigem completo domínio de idiomas. Na prática, mais uma vez, são primos distantes. O tradutor produz com as mãos, sozinho, cercado de dicionários, dono do seu tempo. Ele capta visualmente o material bruto. Já o intérprete depende da audição e se sustenta apenas na memória. Ele não é dono do tempo, produz com a boca. E o que ouve depende do sotaque, da maneira de falar do orador – há os concisos, os prolixos, os que falam para dentro, os que não sabem concluir.
Da modalidade consecutiva, que John Morris hoje prefere deixar para gerações mais novas por considerá-la desgastante, ele tem boas lembranças. “Tive a oportunidade de trabalhar com poucas pessoas com a compreensão exata da nossa função, como Henry Kissinger. Ele entendia perfeita e maravilhosamente bem a dinâmica da coisa”, relembra. “Kissinger levava o intérprete até o seu limite de memória consecutiva e previa o quanto você ainda podia aguentar sem perder o fio da meada. Ele se limitava estritamente àquele tempo, falando em parágrafos claros, curtos e precisos. O controle de sua expressão era total.”
Outro que o americano elogia sem reservas é Fernando Collor, para quem trabalhou inúmeras vezes durante e após a Presidência. “Collor sabia usar o intérprete. Expressava-se em pensamentos completos, com início, meio e fim. Tinha uma cabeça muito lógica. O inglês dele não era muito bom, não. Ele conseguia se expressar no idioma, mas não amplamente. De todo modo, não admitia falar em inglês em ocasiões oficiais por ser presidente do Brasil, cuja língua oficial é o português.”
Uma também veterana, a paulistana Simone Troula, dona de uma vivência rara com presidentes brasileiros (cinco anos de interpretação para João Figueiredo, quatro para José Sarney e dois para Collor), é de mesma opinião. “Collor sempre teve aplomb, falava francês e inglês razoavelmente bem, e tinha boas noções de alemão, mas sempre insistiu em operar com intérpretes”, diz essa filha de mãe escocesa e pai francês.
O trabalho de intérprete, por ser também emocional, é um convite permanente ao estresse. A carioca Lúcia Melim, com duas décadas de atuação em quatro línguas, conhece as agruras físicas do ofício. Num início de tarde de junho, ela aproveitava as pausas de vinte minutos entre sessões de cabine no Hotel Windsor, em Copacabana, para conceder a entrevista. Mesmo assim, miúda e lépida, a cada vez que descia ao saguão do hotel para prosseguir a conversa trazia seu netbook com cronômetro digital acionado, para vigiar o quanto lhe restava de tempo antes de reassumir o microfone. “Você consegue ficar numa simultânea até por uma hora, não mais”, ela disse. “E numa consecutiva, ao longo de duas horas no máximo. Para esse tipo de trabalho eu diria que o cérebro se recupera de trinta em trinta minutos. Mas com o passar do tempo tornamo-nos muito sensíveis a ruídos, e ficamos ilogicamente irritados com barulhos.”
Já Simone Troula costuma esvaziar a cabeça imediatamente após cada evento – um pouco como jornalistas que precisam assimilar tudo sobre determinado tema e no dia seguinte são chamados a pular para outro assunto. Ela só não se esquece de um congresso sobre broncoesofagologia, cujos conhecimentos retém até hoje. Fumando um cigarro atrás do outro no fantasmagórico saguão do Hotel Unique, de São Paulo (antes da entrada em vigor da lei antifumo), ela comentou: “Você chega em casa sem força física sequer para arrumar uma gaveta.” Simone menciona um estudo da ONU sobre a saúde mental e física dos intérpretes, elaborado há quase meio século, mas que permaneceu reservado. Mesmo assim, o estudo orientou melhorias nas condições gerais de trabalho dos 113 intérpretes fixos e outros tantos terceirizados da organização. Em média, um profissional de interpretação de conferência passa mais de um terço dos dias de trabalho longe de seu domicílio, e interpretar mais de 250 dias ao ano pode levá-lo a um colapso nervoso. Às vezes, ele precisa atuar de imediato, logo após intermináveis vôos intercontinentais, mudanças climáticas bruscas e condições tecnológicas novas. Dormir ou comer a contento são raridades.
“Pelo menos na minha experiência”, conta Simone, “somente em países comunistas o intérprete podia se sentar e comer com as autoridades.” Foi o que ocorreu no jantar oferecido pelo presidente da Argélia, Chadli Bendjedid, ao general Figueiredo. “Figueiredo, aliás, sempre se preocupava conosco. Voltava-se para mim, enquanto eu fazia o chuchotage, e me passava um canapé de patê, com o qual eu não sabia o que fazer durante a interpretação consecutiva. ‘Você tem de se alimentar’, insistia ele.”
Simone confirma que Collor tem bons conhecimentos de alemão e relembra uma cena insólita envolvendo José Sarney, quando presidente da República. “Estávamos no Metropolitan Museum de Nova York para um jantar com autoridades, e Sarney passou a tecer comentários poéticos sobre a liberdade, que eu ia interpretando para o inglês. À medida que o intérprete de russo ia vertendo a fala para o seu idioma, provocava lágrimas no chanceler soviético da época, Eduard Shevardnadze. Também o general paraguaio Andrés Rodríguez [consogro de Alfredo Stroessner e autor do golpe militar contra ele] pareceu se comover. ‘¿Qué bien habla Sarney, no le parece?’, me sussurrou.”
De um modo geral, simpáticos a intérpretes são as autoridades americanas, em particular Jimmy Carter e a dupla Bush, pai e filho. Carter, por exemplo, durante a missão de observação das eleições de 2004 em Moçambique, insistiu em apresentar à esposa Rosalynn e ao filho Chip a intérprete que lhe foi alocada, além de convidá-la a visitá-lo – e hospedar-se – em sua casa em Atlanta. George W. Bush tornou-se herói da tribo que estava em São Petersburgo, em julho de 2006, interpretando a reunião do G8. Com todos os chefes de Estado já enfileirados para a foto oficial, Bush viu os intérpretes sendo varridos para o lado, como de hábito, e pediu para que se juntassem ao instantâneo. Sucesso coletivo.
No caso de Bush pai, a gratidão foi individual. Coube ao russo Igor Korchilov, que atuou como intérprete da era Kruschev até Mikhail Gorbachev, admitir um erro que lhe rendeu intermináveis segundos de pânico. Em Translating History, seu livro de memórias publicado em 1997, ele segue a regra de não revelar qualquer segredo, mas abastece o leitor com vinhetas que dizem muito da política e de seus líderes. Num episódio, Gorbachev relata para Ronald Reagan detalhes da luta intestina que tomou conta do Kremlin para saber quem ficaria com o Lincoln Continental azul-escuro forrado de veludo preto, que Leonid Brejnev havia recebido de Richard Nixon. Em outro, as primeiras-damas Nancy Reagan e Raíssa Gorbachev tecem comentários pouco diplomáticos uma sobre a outra. “Qualquer ser humano gostaria de viver numa casa comum. Isso aqui é um MUSEU!”, alfinetou a sra. Gorbachev depois da primeira visita na Casa Branca.
O erro que assombra Korchilov ocorreu durante a reunião de cúpula entre George Bush pai e Gorbachev, no final dos anos 80, quando a Guerra Fria começara a degelar. Os dois chefes de Estado e suas respectivas delegações debatiam coisas como SDI, ABMs, MERVs e altas tecnologias da Guerra nas Estrelas, o guarda-chuva estratégico. Tudo dentro de um horizonte de controle de armas e a proposta de “céus abertos à inspeção” por parte dos americanos. O impasse girava em torno da inspeção a ser feita nos EUA e na URSS, para se certificarem do cumprimento dos termos do acordo. Os soviéticos pleiteavam que os aviões de inspeção pertencessem ao país a ser inspecionado, enquanto os americanos defendiam o contrário.
A discussão passou a girar em torno de duas palavras perigosamente similares em russo: o que inspeciona versus o inspecionado. Korchilov conta que Gorbachev pronunciou sem clareza o final das duas palavras, fazendo com que ele traduzisse a posição soviética como sendo exatamente o oposto do que Gorbachev queria. “O secretário de Estado James Baker e Bush congelaram, incrédulos. Ainda assim, macacos velhos, solicitaram que Gorbachev reiterasse e confirmasse o que acabara de dizer. Quando traduzi para o meu chefe o pedido americano, Gorbachev se agitou e disse: ‘Não, não e não, não foi nada disso que eu falei, eu disse o contrário!'”
“Ao final da reunião, fui me desculpar com o presidente americano pelo incidente. Ele ouviu, assentiu gravemente e disse: ‘Bem, esse foi o lado ruim. O lado bom foi que você não desencadeou a Terceira Guerra Mundial.'”
Nicole Kidman foi se familiarizar com a profissão antes de desempenhar o papel de uma intérprete da ONU que, por conta de um microfone não desligado, ouve os planos secretos de um atentado contra um líder africano (A Intérprete, 2005, do diretor Sydney Pollack). Ela visitou a galeria de cabines de vidro do Conselho de Segurança e quis saber quanto tempo o intérprete deve aguardar antes de começar a traduzir a fala do orador. “Uma mera fração de segundos”, respondeu-lhe Brigitte Andreassier-Pearl, chefe do serviço de interpretação. “Mas também vai depender da velocidade da fala. E dependendo da língua de partida, o intérprete não pode mergulhar de cara, pois será necessário aguardar qual o verbo da frase.”
A intérprete certamente se referia ao alemão, que não é um dos seis idiomas oficiais de trabalho nas Nações Unidas (inglês, árabe, chinês, espanhol, francês e russo). Pela estrutura gramatical do alemão, a ação da frase (o verbo) vem sempre no final, o que gera um hiato de tempo até que se tenha a plena compreensão da sentença. No caso do chinês, a armadilha ocorre pela estrutura gramatical não ser baseada na fórmula mais comum de sujeito/predicado. Também chamada de “língua sem sujeito na frase”, o chinês leva seus intérpretes a uma tendência de tradução literal, palavra por palavra, e ao emprego abundante da voz passiva, tornando o resultado final pouco fluido.
Em seu giro pela ONU, a atriz australiana também formulou a pergunta mais frequente feita a intérpretes do mundo inteiro: o que você faz quando não sabe uma palavra? A resposta: você tenta captar o sentido da palavra perdida e expressa a idéia nela embutida. Alguma expressão similar acaba surgindo – mesmo que tardiamente.
Alexia Whiting, natural da Sérvia, criada no Brasil e de nacionalidade britânica, atua junto às entidades da União Européia em cinco idiomas. Ao longo dos anos foi acumulando receitas para driblar os percalços do ofício. “Não raro o cérebro continua trabalhando num problema que já passou e, de repente, minutos depois, você se dá conta de algo perdido. Às vezes é até possível inserir rapidamente uma correção. Costumo deixar o orador começar a falar sem interpretar nada até aparecer claramente o sentido de sua frase. Como nem sempre isso ocorre já nas primeiras palavras – pode levar até uma frase inteira –, ajuda inserir um “muito obrigado, senhor presidente” ou algo anódino do gênero, para ganhar tempo de concentração.
Alexia também se habituou a escutar a si mesma, logo no início de uma interpretação, para testar se sua fala está fazendo sentido. “Isso é muito importante, pois a tentação é pronunciar uma cachoeira de palavras coladas à fala do orador, sem se dar conta se é asneira”, esclarece ela. “É vital fazer uma análise-relâmpago do sentido do texto original, visando compreender o que está sendo dito. Quando isso acontece, a batalha está ganha. Caso contrário, instala-se o pânico e você corre o risco de traduzir meras palavras e não o conteúdo. Resta então apenas a esperança de que a platéia com fone de ouvido saiba do que se trata.”
É no Parlamento Europeu que as questões pertinentes à interpretação atingem uma dimensão próxima ao buraco negro da física. São 735 deputados representando meio bilhão de pessoas (quase três Brasis inteiros) de 27 países que falam 23 línguas e utilizam três alfabetos (latino, grego e cirílico) – além da pletora de quase sessenta idiomas regionais. Por sorte, Alemanha e Áustria falam o mesmo alemão, França, Luxemburgo e Bélgica se entendem em francês, Reino Unido e Irlanda brigam em inglês. Senão seriam 27 as línguas oficiais e obrigatórias para cada documento, discurso, saudação ou compêndio produzido sob sua égide. “Mesmo se um membro do Parlamento sabe falar inglês, francês ou alemão, quando se trata de um discurso político nuançado ele precisa ter acesso a toda a extensão de um idioma, o que normalmente só ocorre em sua língua-mãe”, garante a diretora-geral de Interpretação e Conferências do Parlamento Europeu, a grega Olga Cosmidou.
Diante desses números, não surpreende que as sessões plenárias do Parlamento mobilizem entre 800 e 1 mil intérpretes simultâneos. Não fosse assim, cada discurso de meia hora demoraria pelo menos 660 minutos, ou seja, onze horas, até ser traduzido em sequência para todas as línguas oficiais. Vale registrar que existem 506 combinações linguísticas possíveis no âmbito do Parlamento Europeu (os 23 idiomas oficiais multiplicados por 22).
Foi o inchaço dessa babel de mais e mais países-membros que levou um jornal de Bucareste, o Cotidianul, primeiro diário não governamental da Romênia, lançado após a implosão comunista de 1989, a um fino momento de humor. Com a eleição, em janeiro último, de dois nacionalistas romenos, o jornal publicou um minidicionário para que os intérpretes e tradutores sediados em Bruxelas pudessem se familiarizar com o vocabulário usado pelos novos eurodeputados. A lista de verbetes é extensa, mas alguns exemplos são particularmente eloquentes: vânzator de iaurt (vendedor de iogurte), paduche (piolho), maimuta curentata (macaco eletrocutado), limbric (lombriga), comunistule (comunista safado).
Intérpretes simultâneos eventualmente levam para suas cabines manuais ou dicionários específicos ao tema em pauta. Três profissionais de uma mesma língua se revezam ao microfone a cada meia hora nas cabines, e alguns deles fazem anotações enquanto traduzem. Isso porque a chance de um termo difícil voltar a ser usado por algum orador é grande. Outros trazem laptops contendo enormes glossários e dicionários na memória. Como muitas organizações da União Européia operam em Wi-Fi, com frequência um colega acha uma palavra ou expressão não traduzida, a tempo de ainda poder ser utilizada por quem está interpretando.
Por mais tenso que seja seu trabalho, quando está na cabine, o profissional se sente protegido por ela. No caso das instalações proporcionadas aos intérpretes das instituições européias, há razões objetivas para esse bem-estar. Todas elas seguem as normas ISO 2603, revisadas e avaliadas pela Associação Internacional de Intérpretes de Conferência, mais conhecida pelo seu acrônimo francês AIIC. As especificações são seguidas à risca e visam atender três requisitos: garantir a separação acústica entre os diferentes idiomas usados simultaneamente, proporcionar comunicação eficiente entre as cabines e a sala de conferências, e oferecer conforto máximo.
Assim elencado, parece óbvio. Não é. O quesito “Iluminação”, por exemplo, estabelece que a superfície de trabalho para cada intérprete (0,45 metro) deve ter iluminação individual que produza uma intensidade uniforme de pelo menos 300 lux. Luzes fluorescentes não podem ser utilizadas sem blindagem. Reflexos da iluminação de teto sobre os vidros da cabine precisam ser evitados. Cores? Todas as superfícies da cabine devem receber acabamentos opacos. As cadeiras ergométricas precisam ser estofadas com material dissipador de calor e a superfície de trabalho deve ser revestida de material refratário a ruído. Sem falar no ângulo de visão ideal do auditório, na distância máxima do pódio (30 metros) e nos complexos parâmetros acústicos (“O nível de pressão acústica ponderado A, causado quer pelo sistema de climatização, quer pela iluminação, quer por qualquer outra fonte sonora, não deve ultrapassar 35 decibéis”). Quanto aos parâmetros ambientais, o ar deverá ser renovado sete vezes por hora e a concentração de dióxido de carbono não deverá exceder a 0,1%. Tudo é objeto de normas.
Só que o dia a dia de um intérprete não se limita ao eixo Bruxelas-Estrasburgo-Luxemburgo-Nova York. No mercado privado, mundo afora, as cabines podem ser minúsculas e sem ar, os ruídos da sala chegam sem cerimônia, não raro o equipamento de áudio é antigo, botões do console saltam ou não funcionam, as cadeiras podem ser de jantar, a luz, péssima, e joelhos batem na parede frontal. Às vezes a cabine consiste em uma caixa colocada em cima de um tablado, com uma parede frontal de vidro e uma cortina de veludo fazendo as vezes de porta.
A carioca Lucia Melim reconhece que o padrão aprovado pela AIIC é o ideal, mas não acha realista penalizar firmas ou governos sem estrutura para adotá-lo. “Tome-se o prédio do BNDES do Rio de Janeiro, por exemplo – lindíssimo, mas o mezanino onde trabalham os intérpretes tem vidro fumê !”, aponta, horrorizada. “Além disso, os vidros são altos, proporcionam pouca visibilidade. O prédio do Mourisco não é diferente: o local deve ter sido pensado para cabines de projeção e não de interpretação, uma vez que o intérprete teria de ficar de pé para poder ver o palestrante. Sem uma visão clara e desobstruída do orador, o esforço mental que fazemos é absurdo.”
A interpretação como meio de comunicação data possivelmente dos primórdios do Império Otomano, no século XV, quando os turcos começaram a conquistar povos com os quais faziam tudo, menos se entender. E a gênese da chamada interpretação de conferência vem associada às negociações do Tratado de Versalhes, em 1919, com tradutores requisitados nas fileiras militares. Mas foram os rompantes oratórios dos discursos na Sociedade das Nações, em Genebra, no período do entreguerras, que impulsionaram a técnica da interpretação consecutiva nas duas línguas oficiais da organização – inglês e francês.
Já a interpretação simultânea, quando veio a ser tentada pela primeira vez no final dos anos 20, em Moscou, foi um fracasso. Foi preciso esperar o final da Segunda Guerra Mundial para ver o seu desabrochar e pleno potencial. A ocasião não poderia ter tido visibilidade maior: os processos de Nuremberg (1945-1946), no qual os criminosos de guerra nazistas foram julgados em quatro línguas: alemão, francês, inglês e russo. A vantagem da técnica logo se tornou óbvia, pela enorme economia de tempo. A estréia do novo formato foi tão impactante que Hermann Göring, certamente o mais graúdo dos acusados, exaltou-se: “Eles [os intérpretes simultâneos] estão encurtando a minha vida!” Terminou tomando uma cápsula de cianureto para evitar o enforcamento*.
O jovem alemão Richard Sonnenfeld tinha apenas 22 anos em 1945 quando o acaso o catapultou para o cargo de intérprete-chefe da promotoria americana no julgamento dos 24 acusados nazistas. Filho de um casal de médicos judeus do norte da Alemanha, ele tinha escapado para os Estados Unidos aos 15 anos, alistara-se e combatera na Europa como soldado. Pinçado por seu conhecimento do idioma alemão para atuar sob as ordens de Robert Jackson, o juiz da Suprema Corte americana encarregado dos interrogatórios, Sonnenfeld foi quem mais se ocupou do Reichsmarshall [marechal do Reich]. Ao ser interrompido pelo acusado a primeira vez, o jovem recruta estabeleceu uma regra: “Senhor Gering”, disse ele, pronunciando o nome errado propositalmente. “Quando eu traduzo para o alemão as perguntas do coronel e passo suas respostas para o inglês, o senhor deve permanecer em silêncio até eu concluir. Se, ao ler as notas taquigráficas da sessão, o senhor tiver alguma reclamação, vamos decidir se a levamos em conta ou não.” Pelo relato de Sonnenfeld, que consta de seu livro de memórias, o acusado o fulminou em silêncio. “Meu nome é Göring e não Gering”, disse apenas.
Outro garoto judeu alemão, Peter Less, que fugira para a Suíça e cursava a prestigiosa École de Traduction et d’Interprétation da Universidade de Genebra – até hoje a meca dos melhores profissionais do ramo –, teve participação ainda mais dramática em Nuremberg. Fluente em três idiomas, Less estava em sala de aula quando três oficiais americanos irromperam na classe. Vieram selecionar alunos para uma missão que ninguém entendeu direito. Ele foi um dos escolhidos. “Amanhã de manhã vocês voarão para Nuremberg”, ouviram. Less, que teve a mãe, o pai, a única irmã e a avó assassinados pelos nazistas, fez a interpretação simultânea para todos os acusados. Tinha apenas 25 anos incompletos. Ao final, foi confinado num castelo da Bavária como um dos encarregados da tradução das 360 páginas de acusação. E com uma advertência: “Se uma só palavra do conteúdo desses documentos vazar, vocês serão submetidos a uma corte marcial.”
A comprovação da eficácia da interpretação simultânea gerou a necessidade de se organizarem as técnicas e normas da profissão. Coube a três personagens lendários fundarem a AIIC, na Paris de 1953. Chamavam-se Jean Herbert, André Kaminker e o príncipe Constantin Andronikof.
Dos três, Andronikof foi o mais refinado. Intérprete da confiança absoluta do general Charles de Gaulle, o príncipe, nascido na Rússia imperial, era teólogo ortodoxo e escritor. Ele não permitia o uso de canetas esferográficas durante sessões de trabalho, provavelmente por considerá-las vulgares, e oficialmente por receio de a tinta se esparramar. Tinha sempre à mão cinco lápis, embora não fizesse anotações de qualquer espécie ao interpretar. “Estou ávido por ler suas memórias”, disse-lhe certa vez o amigo e escritor russo Vladimir Volkoff. “E é por isso que jamais escreverei uma só linha. Me proibi de fazer qualquer anotação enquanto eu for intérprete”, respondeu o príncipe, estabelecendo a pedra fundamental que norteia a profissão: o sigilo. Quando Andronikof pediu ao cofundador Kaminker para redigir um projeto de Código de Honra para a AIIC, o colega foi breve: “Três artigos bastam. Artigo 1: o segredo profissional é total e absoluto. Artigo 2: o secredo profissional é total e absoluto. Artigo 3: o segredo profissional é total e absoluto.”
Andronikof reinou absoluto na AIIC até morrer, em 1997, aos 82 anos, e continua cultuado como um mestre. Sempre que interrogado por jovens candidatas à profissão, sobre medos e armadilhas, ele repetia uma célebre resposta de Sarah Bernhardt quando uma jovem atriz comunicou, orgulhosa, não ter medo de errar: “Não se aflija, querida, isso vem com o talento.”
A AIIC existe em 271 cidades, espalhadas por 98 países, operando, no conjunto, em 48 línguas. Conta com mais de 2 883 membros, além de outros 230 na fila de postulantes cujos processos de adesão estão sendo avaliados. Não existe exame eliminatório. O brasileiro Sérgio Xavier Ferreira é um dos postulantes atuais e, como manda a regra, independentemente de sua qualificação, precisa ser apadrinhado por pelo menos três membros permanentes da entidade. Dois deles devem ter o mesmo cardápio de línguas no currículo.
Reconhecida por todas as grandes organizações internacionais, a AIIC define as normas de trabalho, de técnica e de formação profissional desse universo. Um ingrediente básico, contudo, não mudou desde a saída de cena do príncipe Andronikof: a profissão de fé no cânone do sigilo. Em tese, se tomado ao pé da letra, nenhum dos entrevistados para esta reportagem poderia tê-lo feito, embora nenhum tenha violado qualquer migalha de segredo profissional.
Três meses atrás, o cidadão francês de origem cambojana Yves Bergougnoux, residente no Brasil há mais de 22* anos, sentiu de perto o vigor do cânone. Membro ativo da AIIC desde novembro de 2008, foi suspenso em julho por dois anos por violar os itens 2a, 2b, 6 e 6b do Código de Ética Profissional da entidade. Numa entrevista na redação da piauí, Bergougnoux, de aparência bem mais jovem do que seus 44 anos, se dispôs a discorrer sobre aspectos teóricos e filosóficos do ofício. Não se acanhou em dissecar outras normas da profissão e, ao arrepio do pensamento prevalente na AIIC, sustenta que um intérprete não pode* ser nem neutro, nem objetivo e nem invisível. “O orador é o autor do pensamento, mas vou arriscar dizendo que o intérprete também é autor”, disse ele. Bergougnoux usa de metáforas singulares ao diferenciar a interpretação simultânea da que é consecutiva. Para ele, a primeira se assemelha a um surfe intelectual. “Você surfa numa onda, que é o pensamento do orador, e não pode cair nem para trás nem para a frente. Se cair para a frente, você se adiantou, quis adivinhar o que o orador queria dizer e se perdeu, pois terá de esperar. Se demorar demais, vai perder não só a frase como a onda – ficará parado atrás da rebentação.” Quanto à consecutiva, ele a compara a um episódio de apnéia. “Você está debaixo d’água e vai procurar prender a respiração o maior tempo possível antes de voltar a respirar.”
Bergougnoux surpreendeu-se com o fato de a revista ter conhecimento de sua suspensão* e se manteve irredutível em discuti-la. Assim, sabe-se apenas que a sanção foi motivada pela publicação, em sua página pessoal do Facebook, de uma crônica semificcional envolvendo a visita do presidente francês Nicolas Sarkozy a Brasília, em dezembro passado.
Para a AIIC, foi pecado capital e imperdoável. A ponto do presidente da entidade, Benoît Kremer, achar útil divulgar uma versão turbinada do dogma. Num texto difundido aos associados em 9 de julho passado, ele reitera a proibição imposta aos membros de divulgar, a quem quer que seja, qualquer informação de que tenham tido conhecimento no exercício da profissão. E frisa que o verbo “divulgar” designa o ato de transmitir informações, quer em resposta a uma pergunta (divulgação passiva), quer por iniciativa própria. Tampouco importa o meio: oralmente, por fax, correio eletrônico, Facebook, Twitter. “A quem quer que seja” refere-se a qualquer pessoa, seja da família, desconhecido ou colega. E para quem ainda não entendeu, “qualquer informação” é exatamente isso, independente de relevância.
No entender de Kremer, a mera ocorrência de uma reunião ou a participação (ou ausência) de tal ou tal pessoa pode se revestir de uma importância insuspeitada. Ao mencionar, por exemplo, que um presidente usava gravata vermelha e meias laranja, o intérprete pode não estar traindo segredo algum. Mas ao confirmar a presença do presidente ele pode estar divulgando um fato importante. No entender de Kremer, as normas abrangem desde o momento em que o intérprete é contratado até a sua morte. Em outras palavras, se adotada ao pé da letra, esta reportagem sequer existiria.
A veterana Ulla Schneider, por exemplo, fundadora da Associação Paulista de Intérpretes de Conferência, a Apic, consultou o próprio presidente da AIIC quanto à oportunidade de ser entrevistada a respeito de sua extraordinária experiência como intérprete do presidente Ernesto Geisel, mais de trinta anos atrás. Nem pensar. Ulla, que hoje mora em Bremen, Alemanha, cercada por cinco estantes repletas de dicionários, estava a bordo da carruagem que conduziu o presidente brasileiro ao Palácio de Buckingham, na visita oficial de 1976. Também tem lembranças ainda vívidas do trabalho mais bizarro de sua carregada biografia profissional. “Foi o acompanhamento das investigações sobre a identificação do cadáver de Josef Mengele, em 1985. Havia três grupos de investigadores – da Polícia Federal brasileira, da Polícia Federal alemã e do Instituto Simon Wiesenthal. Cada grupo tinha o seu intérprete e todos desconfiavam de todos –, menos os próprios intérpretes, que eram todos amigos e membros da Apic.
Amigos ou não, não seria exagero afirmar que a grande maioria dos intérpretes de conferências tem uma relação de pouco apreço por Fernando Henrique Cardoso. De bem com a vida aos 78 anos de idade, e magnificamente instalado no seu centro de estudos da praça Ramos de Azevedo, com vista privilegiada para o viaduto do Chá, em São Paulo, o ex-presidente não precisa de muito incentivo para explicar o porquê dessa reserva da classe. “Não gosto de intérprete”, explica, sem maiores rodeios. “A conversa acaba não tendo fluxo, torna-se um sacrifício. Sei que o protocolo prefere quando o presidente usa intérprete, mas tenho horror à formalização. A química é muito melhor quando o encontro se dá sem intermediários. Você se mostra mais como realmente é. Até hoje sou muito amigo do Clinton, e Tony Blair me dá beijo quando me encontra, um pouco por conta disso. Sei que o meu inglês não é muito bom – aprendi-o por necessidade, ainda no Chile –, mas acabo conseguindo dizer mais ou menos o que quero. No conceitual me viro bem; mais difícil é acertar no concreto.”
Ao contrário dos profissionais bloqueados pelo voto de silêncio, o ex-presidente é um maná de histórias nas quais sabe rir de si mesmo. Certa vez, hospedado no mesmo hotel de Turim que Gorbachev, ele encontrou-o no corredor. Comemorava-se algo relacionado com a queda do Muro de Berlim. “Gorbachev desandou a falar comigo em russo com a maior naturalidade, sendo que eu não entendia palavra alguma. Como não tínhamos intérpretes por perto, assim ficou. Gosto muito dele. Tem uma filha extraordinária, médica e bonita. Fez as vezes de intérprete no jantar.” De Helmut Kohl parece ter recordações menos afetuosas. “Era um falastrão, não sabia nada de inglês e tinha estilo impositivo.”
É o próprio Fernando Henrique quem conta ter corrigido uma intérprete alemã por ocasião da inauguração de uma exposição sobre a Amazônia, em Bonn. “Do lado de cá não tínhamos ninguém, e vi que ela estava traduzindo algo errado. Parece pedante, pois como você sabe sei apenas duas ou três frases nessa intricada língua”, acrescenta, maroto. Explica ter estudado alemão cinco anos num curso particular perto da Beneficência Portuguesa de São Paulo, com a mulher Ruth e outros, mas não ter aprendido quase nada.
“A família até hoje se diverte relembrando um passeio que fizemos à região de Flandres, nos anos 60. Estávamos perto de Bruges, fazia um frio do cão, as crianças eram pequenas e achei boa idéia irmos todos tomar um chocolate quente. Entrei num café e pedi: Herr Ober, ich möchte bitte vier Tassen Schokolade … sehr kalt (Garçom, eu queria quatro xícaras de chocolate …. muito frio), contou, satisfeito por poder dar uma palhinha no idioma.
Também conta que, em Berlim, conseguiu esquecer o nome da avenida principal da cidade, a Kurfürsterdamm, e resolveu dar uma orientação genérica ao taxista: eine grosse Strasse mit einer bombardierte Kirche [uma grande rua com uma igreja bombardeada]. “Ora”, conclui com gáudio, “metade das ruas de Berlim tinha igrejas bombardeadas…”
Com o ex-primeiro-ministro italiano Massimo D’Alema entendeu-se a seu modo: “Italiano eu entendo, mas como não gosto de intérprete, prefiro imitar. Quando nos encontramos no Museu de Belas Artes do Rio de Janeiro, em 1999, ele falava em italiano comigo e eu respondia em português espanholado, devagar.”
Enquanto as conversas são mais sociais do que de conteúdo, ninguém reclama. Mas quando algum diálogo tange assuntos de Estado, e o presidente dispensa a intermediação de intérpretes, o protocolo arranca os cabelos. É o próprio Fernando Henrique quem narra um episódio de voltagem alta. “Pouco antes da vinda do presidente da China Jiang Zemin a Brasília houve um telefonema do George Bush para mim. Estávamos em abril de 2001, ele havia tomado posse uns dois meses antes, e passava por sua primeira crise internacional. Pediu-me para fazer uma gestão junto a Zemin para desencruar o impasse criado pela interceptação de um avião de espionagem americano sobre solo chinês, com 24 tripulantes a bordo.”
Jiang Zemin chegou a Brasília no dia 11 de abril, proveniente de Montevidéu. “Eu o recebi sozinho no meu gabinete, no final da tarde. Foi um encontro privado. Conversamos em inglês. Ao final, Zemin fez um comentário que não vou esquecer tão cedo. ‘Nós temos 5 mil anos de história. Quantos anos têm os Estados Unidos? Mal passam dos 200. E esse rapaz é muito jovem [referindo-se a George W. Bush]. Num episódio anterior em que as relações entre nossos países também passavam por um impasse, o Clinton me telefonou seis vezes seguidas. Esse aí só me ligou uma vez.'”
As coisas acabaram se acertando com um pedido de desculpas dos Estados Unidos. O comentário final de Fernando Henrique foi ao seu estilo: “No fundo foi mais difícil fazer Bush entender a posição chinesa do que falar com o chinês. Aliás, gostei muito dele, e só agora, lendo o diário secreto do primeiro-ministro Zhao Ziyang (Prisoner of the State: The Secret Journal of Premier Zhao Ziyang) é que perdi um pouco do meu entusiasmo pela figura.”
O Palácio do Planalto da era Lula não poderia ser mais diferente. “Todo o setor de interpretação ficou enferrujado por oito anos de presidência FHC. Com a troca de comando a coisa acelerou”, observa um conselheiro do Itamaraty. Capturar o ministro Franklin Martins numa tarde de terça-feira para falar sobre Lula e seus intérpretes, com tantas questões mais calientes na agenda, já indica a simpatia que o governo atual tem em relação ao tema. “Temos uma trinca básica de intérpretes do presidente: a dupla Sérgio Ferreira/David Hathaway para o inglês, e Lúcio Reiner para o espanhol e francês”, explica o ministro. “É algo que exige imensa confiança e intimidade, mas uma intimidade profissional. Sérgio e David não conhecem a intimidade pessoal do presidente, por exemplo.” Franklin aponta para a química entre Sérgio Xavier Ferreira e Lula. “Ele dá fluência à fala do presidente. E nos momentos mais sociais, sente quando precisa e quando não precisa encostar. Como eles se conhecem há muito tempo, Sérgio sabe dar uma arredondada, pois alguma fala pode ter saído do ponto, saído solta.”
Em matéria de “arredondada”, poucos intérpretes devem ter passado por situação tão incômoda quanto o profissional do Foreign Office de serviço no dia em que a primeira-ministra Margaret Thatcher aceitou, contrariada, receber o presidente da República do Congo, o coronel Denis Sassou-Nguesso, um notório marxista. Segundo Charles Powell, seu assessor para assuntos de política internacional, o visitante chegou, foi conduzido ao salão de audiências e tomou assento defronte à chefe do governo britânico. Após lançar-lhe um olhar gélido, a baronesa abriu o diálogo: “Odeio comunistas.” Segundo o testemunho de Powell para a BBC, o intérprete arredondou a frase para “A primeira-ministra Thatcher diz que jamais deu pleno apoio às idéias de Karl Marx”.
Para Franklin Martins, o presidente Lula tem um termômetro próprio. “Ele é mestre em dizer coisas que não são comuns de serem ditas. É um peixe dentro d’água.” David Hathaway, que interpreta para o presidente em inglês e espanhol, sabe nadar com esse peixe. Economista fissurado em biodiversidade – é autor de uma pesquisa original sobre agrotóxicos publicada no livro Pragas e Venenos –, esse americano refugiado num pedaço de mato em plena região brasiliense prefere quando Lula fala de improviso. “É quando ele usa frases curtas, mais fáceis de serem acompanhadas. Quando lê discursos, tende a acelerar e se expressar numa cadência mais artificial.” Hathaway sobreviveu ao aprisionamento no Estádio Nacional do Chile durante o golpe militar de 1973 e, como tantos colegas, desembocou na profissão de intérprete por acaso. Mas dela extrai o essencial: “Até hoje não sei se dependemos mais de inteligência ou de talento”, diz. “Mas sei que ou você aprende rápido ou você afunda”, garante.
*Alteração em relação à versão impressa.
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