ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2006
O verdadeiro rei dos animais
Melancolia e ginástica na academia dos galos-de-briga baianos
Roberto Kaz | Edição 2, Novembro 2006
Reginaldo Prata Rocha é um senhor de 61 anos que acorda todo dia às 6 da manhã. Nunca teve despertador. Levanta- se com o canto do primeiro galo, espreguiça-se e passa água na cara. Enquanto faz suas abluções, instala-se a sinfonia galiforme. Um galo sozinho, como se sabe, não tece uma manhã. Em questão de segundos, são 306 galos cantando juntos. Para os vizinhos, o coro pode soar como o inferno. Para esse homem, não: cantoria de galo é música. Reginaldo Rocha dedicou-se a vida inteira à criação de galos-de-briga.
Há doze anos, ele é gerente do Clube do Galo, o maior centro de rinhas de Salvador, fundado em 1968 e interditado em 2005 pelo Ibama. A casa era uma espécie de Madison Square Garden dos galos na Bahia. Era lá que, nos fins-de-semana, centenas de homens se reuniam para assistir a brigas lendárias de campeões como Beto Rockfeller, de quem Rocha se lembra com nostalgia: “Era um galo técnico, malicioso, que destronou um grande lutador lá no Rio de Janeiro”.
Beto Rockfeller nasceu e morreu numa época em que as rinhas eram legais. Em 1998, elas foram enquadradas no artigo 32 da lei que proíbe maus-tratos a animais. No ano passado, quando houve a interdição do clube, 306 galos-debriga — entre eles, alguns descendentes diretos de Rockfeller — foram forçados a se aposentar mais cedo. Coube a Rocha o fardo de cuidar dos lutadores. “O Ibama nos trata como criminosos, mas briga de galo não é como briga de cachorro. Cachorro é dócil. Galo-de-briga nasceu para brigar. Nós somos os preservadores da espécie.”
Selecionados ao longo de gerações, galos-de-briga querem confusão com ou sem interferência humana. São capazes de conviver até os oito meses. Nessa idade, começam a manifestar o desejo de se trucidar uns aos outros. São então separados e treinados até completar um ano, idade em que o bom galo mostra seus dotes de brigador. De 100 galos, vinte são selecionados. Os que sobram são vendidos, dados ou assados pelo próprio Rocha, que diz não haver carne melhor.
Comparado a um galináceo de granja, que às vezes passa a vida inteira na mesma gaiola, um bom galo-de-briga usufrui de regalias. Ele começa o dia tomando sol, no jardim. Aquecido, é levado a uma sala de treinamento corporal, onde é arremessado para o alto cinqüenta vezes, exercício importante para fortalecer as pernas; terminados os arremessos, é empurrado para a frente e para trás vinte vezes — é o treino de velocidade; em seguida, preso pela cauda, é estimulado a bater as asas, o que as tonifica; depois, seu pescoço é girado em sentido horário e anti-horário. Para aliviar a tensão, o treinador faz-lhe uma rápida massagem na musculatura peitoral. Salvo em dias frios, o galo é banhado em água e xampu, para prevenir micoses. Depois de seco, dispõe de quinze minutos para almoço: milho, amendoim, lentilha, soja, semente de girassol, beterraba e cenoura. Em dias de competição, banana com aveia e mel. Ao cair da tarde, volta para a gaiola original, que conta com proteção antimosquito.
O Clube do Galo sobrevive por duas razões: 150 sócios ainda pagam uma anuidade de 200 reais, e parte do terreno está alugada para um restaurante de moqueca. Desde a interdição, as cadeiras foram empilhadas, a madeira do teto começou a apodrecer, as mesas se encheram de teias de aranha e o chão, de pó e penas. Das três rinhas originais, apenas uma funciona, para treinos. A maior delas — o Coliseu, de dois andares – está como seu homônimo, em ruínas. Dos trinta funcionários nos bons tempos, sobraram Rocha e três treinadores. O lugar lembra uma academia de boxe falida.
Como não podem competir, a cada quinze dias os galos fazem uma espécie de jogo-treino. Reginaldo escolhe o melhor dos seus lutadores, “um frango bonito, que está começando a vida de atleta”. A espora — parte da perna usada para o ataque — é revestida com uma bucha que faz as vezes da luva de boxe. O bico é envolvido em fita isolante, para que um galo não arranque as penas do outro. Em seguida, um sparring é escolhido para desafiá-lo. Sparring é o frango de segunda divisão, que não faz treinamento físico, não pega sol e, mesmo assim, é obrigado a apanhar uma vez por semana para que os galos oficiais aprimorem suas técnicas. No Clube do Galo, há 50 sparrings para 250 galos-atletas.
O sparring é lançado na rinha. Os dois galos se encaram, arrepiam as penas do pescoço e começam a se atracar. Correm, caem no chão, tombam contra a parede, voam para golpear com as pernas. Quando se cansam, enfiam a cabeça entre as pernas do outro. Se a luta se tornar desleal, o treinador tem o direito de jogar a toalha para preservar o lutador.
São 11 da manhã quando o segundo round começa. Um proprietário chega ao clube para ver seu galo treinar. Tira o bicho da gaiola e o segura no colo, acariciando-o. Talvez recordando tempos melhores, os treinadores olham languidamente para a rinha, como se assistissem ao pôr-do-sol. Ao fundo, uma trilha sonora romântica, escolhida pelo treinador Cicatriz, músicas como Nem um Dia, de Djavan, As Rosas não Falam, de Cartola, e Borbulhas de Amor, de Fagner.
Fim do round. O galo de Reginaldo Rocha é massageado, escovado, banhado em água e xampu e levado ao sol. O sparring fica no meio da rinha, cocoricando, à espera do que o destino lhe reserva. Rocha olha para aquele galo — que, mesmo cansado, está pronto para a próxima disputa — e, comovido, reclama da maior injustiça que já viu: “As pessoas dizem que o leão é o rei dos animais. Mas o rei dos animais deveria ser o galo. O leão foge quando o inimigo é mais forte. O galo não quer saber se é irmão, tio ou sobrinho. Soltou, brigou”.