A poesia envenenada
(Ao modo de Chico Alvim)
Heitor Ferraz Mello | Edição 21, Junho 2008
UNS VERSOS
Cumprimentou-me
Sentou-se ao pé de mim
Falou da lua e dos ministros
e acabou
recitando-me versos
COM VENENO
Tenho cha-carinha
flores
legume
uma casua-rina
um poço
e lavadouro
UMA EPÍGRAFE
Mais falto eu mesmo
e esta lacuna é tudo
DISTRAÇÕES RARAS
O mais do tempo
é gasto em hortar
jardinar e ler
Como bem
e não durmo mal
METIDOS NOS CANTOS
Em segredinhos
sempre juntos
AMIZADES
Perderam tanta coisa
Daí vieram as nossas relações
FELICIDADE CONJUGAL
Contava então vinte anos
e tinha uma flor entre os dedos
HISTÓRIA DA CRIAÇÃO
Há lugares
em que o verso vai para a direita
e a música para a esquerda
O REBOCO DO MURO
BENTO
CAPITOLINA
O VEXAME
Cosido à parede
cara no chão
VOCÊ O QUE QUER É UM CAPOTE
Se tem de ser padre
realmente é melhor que não comece
a dizer missa atrás das portas
O ORGULHO
Sabor póstumo
das glórias interinas
DA BOCA PRA FORA
Beata!
Carola!
Papa-missas!
AMEAÇA
Quando eu for dono da casa
quem vai para a rua é ele
ANDE, PEÇA, MANDE
Faça-lhe também elogios
ele gosta muito de ser elogiado
APESAR DELES
Você já reparou nos olhos dela?
São assim
de cigana oblíqua
e dissimulada
PEDIR NÃO É ALCANÇAR
Anjo do meu coração
se a vontade de servir
é poder de mandar
estamos aqui
estamos a bordo
SOB AS ORDENS DE MAMÃE
Estou pronto
a ser o que for do seu agrado
até cocheiro de ônibus
SONHOS DO ACORDADO
A imaginação de Ariosto
não é mais fértil
que a das crianças e dos namorados
nem a visão do impossível
precisa mais
que de um recanto de ônibus
O PASSISTA
Levantou a perna
e fez uma pirueta
MÃE E SERVO
Cuidava
dos meus arranjos em casa
dos meus livros
dos meus sapatos
da minha higiene
e da minha prosódia