Durante as quatro horas de tentativa de resgate, o diplomata estava consciente. Perguntava sobre a namorada e os colegas. O paramédico americano que tentava salvá-lo sugeriu que ele rezasse. "Foda-se Deus", disse-lhe Vieira de Mello FOTO: REUTERS_LATINSTOCK
Um milhão de flashes
Como o representante da Organização das Nações Unidas no Iraque, o brasileiro Sérgio Vieira de Mello, encontrou a morte na explosão de um caminhão-bomba em Bagdá
Samantha Power | Edição 21, Junho 2008
Na terça-feira, 19 de agosto de 2003, o brasileiro Sérgio Vieira de Mello e sua noiva, a argentina Carolina Larriera, tomaram café da manhã no hotel. Costumavam levar vinte minutos de lá até o quartel-general da Organização das Nações Unidas, em Bagdá. Mas, naquele dia, o trânsito estava melhor do que de costume. Chegaram em dez minutos, no prédio conhecido como Hotel do Canal. Guardas iraquianos desarmados checaram os distintivos dos integrantes do comboio da ONU, revistaram o fundo do veículo com detectores de metais e acenaram aos rostos familiares para que passassem pelo portão.
Gil Loescher e Arthur Helton, especialistas americanos em refugiados que estudavam o efeito humanitário da guerra para a revista eletrônica openDemocracy.com, aterrissavam naquele momento em Bagdá. Loescher, um pesquisador da Universidade de Oxford, de 58 anos, havia voado de Londres para Amã, na Jordânia. Helton, um advogado de 54 anos que trabalhava no Council on Foreign Relations em Nova York, se juntaria a ele. Estavam ali para uma avaliação de campo de duas semanas.
O chefe da missão especial da ONU, Sérgio Vieira de Mello, 55 anos, recebera bem a notícia da visita. Normalmente não gostava de “avaliações” externas. Com freqüência, achava que eram realizadas por indivíduos inexperientes, que examinavam superficialmente um local e depois, em jantares badalados, se vangloriavam das dificuldades que haviam sofrido “em campo”. Naquele caso, porém, ele recebeu com entusiasmo um relatório independente do desempenho da Coalizão militar anglo-americana. Estava cheio de idéias de como as coisas poderiam ser feitas diferentemente e sabia que, se as recomendações viessem de dois americanos, ganhariam mais força em Washington do que algo vindo da ONU.
Já na chegada, Loescher e Helton sentiram-se perturbados em Bagdá. Embora não fossem funcionários das Nações Unidas, um veículo da organização foi apanhá-los no aeroporto. Ataques freqüentes contra o pessoal da Coalizão fizeram com que a ONU reforçasse os regulamentos de segurança e exigisse comboios de dois veículos. Eles foram direto do aeroporto à Zona Verde, onde se encontraram com Paul Bremer, a autoridade máxima do governo americano no Iraque, que lhes concedeu uma hora de seu tempo. Bremer lhes apresentou um quadro otimista. “Existem alguns problemas de segurança”, disse, “mas estamos deixando tudo sob controle.”
Marwan Ali, especialista palestino em política do escritório em Bagdá, percebia a raiva dos iraquianos aumentando. Depois de um ataque recente no triângulo sunita que matara um menino de 8 anos e sua mãe, ele vinha pressionando Vieira de Mello a criticar a Coalizão. Vieira de Mello havia aprovado a declaração no dia anterior. Seria a primeira condenação pública da ONU a uma violação de direitos humanos do governo provisório.
Às três da tarde, Vieira de Mello se encontrou com uma dupla de altos funcionários do Fundo Monetário Internacional, o FMI, vinda de Washington: Scott Brown e Lorenzo Perez. Carolina Larriera, de 30 anos, responsável pelos contatos da ONU com instituições financeiras, também compareceu. Quando a reunião acabou, às quatro da tarde, ela saiu com os visitantes. Quando se afastava, Vieira de Mello acenou para que voltasse, mas ela fez um sinal de que precisava ir a outra reunião. Ele lhe dirigiu um olhar brincalhão de saudades.
Quando Loescher e Helton chegaram ao Hotel do Canal para o encontro com Vieira de Mello, passaram facilmente pela segurança no portão da frente e subiram dois lances de escadas. Gabriel Pichon, o guarda-costas francês de Vieira de Mello, acompanhou-os até um pequeno escritório. A secretária Lyn Manuel, uma filipina de 54 anos, dezoito deles trabalhando na ONU, e que servira com Vieira de Mello no Timor Leste, acomodou os convidados em torno de uma mesa de vidro.
Vieira de Mello saudou os visitantes com apertos de mão calorosos. Convidada de última hora, Fiona Watson, especialista escocesa em política, participou da reunião. O diplomata brasileiro acomodou-se perto da janela, num sofá de couro preto. Loescher e Helton sentaram-se em frente. Fiona Watson escolheu uma cadeira no canto da mesa que dava para a parede e a janela. Eram 16h27.
Enquanto isso, um caminhão-plataforma Kamash percorria a Estrada do Canal, uma via de várias pistas dividida por uma vala fétida. De fabricação russa, numerosos Kamash haviam sido adquiridos em 2002 pelo governo de Saddam Hussein para serem usados na mineração, agricultura e irrigação. O caminhão tinha uma cabine marrom e base laranja. O motorista entrou à direita numa rua de acesso estreita e desprotegida, atrás do complexo da ONU. Ninguém prestou atenção na manobra do veículo ou em sua carga. Tudo que se via na carroceria era uma caixa de metal que parecia um gabinete de ar-condicionado. Sob a caixa, porém, ocultava-se uma bomba cônica do tamanho de um homem grande, formada por granadas de artilharia de 120 e 130 milímetros, morteiros de 60 milímetros e granadas de mão. Cerca de 450 quilos de explosivos rumavam para o Hotel do Canal.
O caminhão desceu em alta velocidade os 90 metros da via de acesso, passando pela beira de um estacionamento da ONU. Quando o motorista chegou ao edifício, virou o veículo em direção ao muro de tijolos inacabado, nos fundos do prédio, dois andares abaixo do escritório de Vieira de Mello.
Pichon deixou o escritório do chefe, atravessou o corredor e foi para a sala dos seguranças. Ao sentar-se, uma explosão enorme projetou-o da cadeira. Ele foi parar a quase 5 metros de sua escrivaninha, perto do elevador no final do corredor. Tudo enegreceu. Loescher, sentado em frente a Vieira de Mello, não viu escuridão, mas luz – o brilho súbito de “um milhão de flashes”.
Carolina Larriera estava sentada em seu pequeno escritório no 3º andar. Ela ouviu o barulho ensurdecedor de uma explosão e, no mesmo instante, viu a grade de aço que cobria sua janela voar por toda a extensão do escritório, junto com estilhaços de vidro. Arrancada de sua dobradiça, a porta de metal desabou no centro do escritório. A sucção da explosão fez com que a porta do escritório ao lado, o da consultora de direitos humanos Mona Rishmawi, abrisse repentinamente. A mulher se levantou devagar e olhou para Carolina. A noiva de Viera de Mello divisou um corte minúsculo no meio da testa da colega, do qual sangue começou a gotejar.
Jeff Davie, o consultor militar de Vieira de Mello, havia passado a tarde acompanhando uma dupla de consultores em aviação da ONU pelo aeroporto de Bagdá. As reuniões duraram mais do que o esperado, em parte porque os especialistas haviam parado para posar para fotos no local. Davie voltava para o escritório. Ainda estava a vários minutos do trabalho, quando o veículo que o transportava tremeu pela força da onda de choque. Ao olhar para o lado, viu uma enorme nuvem cinza de fumaça emergindo da área em torno do Hotel do Canal. Pelo celular, ligou para o coronel Rand Vollmer, o chefe de operações da Coalizão. “Houve uma grande explosão no hotel”, Davie informou. “A coisa é feia. Providencie um resgate médico já.” Vollmer imediatamente ligou para o número da brigada médica, e uma dúzia de helicópteros de resgate Black Hawk, marcados com cruzes brancas, foi enviada ao local.
Quando o terrorista detonou a bomba, Paul Bremer estava na Zona Verde, reunido com uma delegação do Congresso. O palácio tremeu com a força da distante explosão. Um de seus auxiliares entregou-lhe um bilhete escrito em um papel amarelo: “Ocorreu uma explosão no Hotel do Canal. Estamos tentando nos comunicar pelo telefone com pessoas de lá.” Dez minutos depois, o auxiliar trouxe uma segunda nota: “A situação parece bem ruim.” Quando a embaixada jordaniana sofrera um atentado doze dias antes, o chefe do Estado-Maior de Bremer, Patrick Kennedy, servira de contato entre os militares jordanianos e americanos. Kennedy retirou-se da reunião, chamou seu auxiliar Dennis Sabal, um tenente-coronel dos fuzileiros navais, reuniu rádios e um par de telefones celulares e rumou para o Hotel do Canal. Sabal acabara de ver pela CNN imagens da base da ONU em chamas. Ele tinha um currículo incomum por ter sido a pessoa chamada para lidar com os estragos do ataque contra a embaixada americana no Quênia, em 1998, que matara 213 pessoas, inclusive doze americanos. Depois, em 11 de setembro de 2001, ele estava no Pentágono assistindo à cobertura da televisão das Torres Gêmeas em chamas quando o próprio Pentágono foi atingido, e ajudara a instalar um necrotério para os mortos. Devido àqueles ataques, ele teve uma epifania súbita no Iraque que os outros só teriam depois de várias semanas: “A Al-Qaeda está aqui”, ele pensou.
O sargento William von Zehle, um bombeiro aposentado de 52 anos, trabalhava no Iraque como oficial de assuntos civis do Exército. Estava ao computador, no prédio militar americano, do outro lado da via estreita que passava ao longo do Hotel do Canal. A explosão, que lhe pareceu ocorrer pertinho de sua janela, atirou-o no chão. Ele viu uma luz laranja intensa e sentiu uma dor forte na coxa direita. Sua janela tinha sido estilhaçada e ele fora atingido por um pedaço de vidro de dez centímetros. Arrancou da perna o vidro, que parecia a lâmina de uma faca, e tentou retirar estilhaços de bomba do braço. Olhou para o relógio na sua escrivaninha. Marcava 16h28.
Quando conseguiu alcançar o telhado do seu prédio, Von Zehle viu que o Hotel do Canal estava em chamas. Entrou em contato pelo rádio com seu comandante e obteve permissão para se dirigir ao local do ataque. Quando se aproximou do cenário da explosão, viu que quase todos os veículos no estacionamento estavam pegando fogo. Pela primeira vez, Von Zehle achou que sua experiência como bombeiro seria útil no Iraque.
Depois de um longo dia de patrulhas, o capitão Vance Kuhner, um reservista americano encarregado de uma unidade da Polícia Militar, retornara à sua base, um grupo de barracas a 1,5 quilômetro do Hotel do Canal. Após ordenar aos seus homens que descarregassem os veículos Humvee, Kuhner se dirigia ao alojamento para tomar uma ducha e comer algo. Ao passar pela quadra de vôlei onde crianças brincavam, caiu de joelhos devido à explosão atrás dele. Levantou-se rápido, deu meia-volta e viu a nuvem cinza escura à distância. “Voltem aos veículos”, bradou aos seus homens. Achou que um helicóptero ou avião da Coalizão havia sido derrubado, ou que um comboio americano sofrera uma emboscada. “Preciso de todos os médicos disponíveis”, solicitou pelo rádio ao seu comandante. Andre Valentine, um bombeiro paramédico, distribuiu seis médicos por quatro Humvees e ordenou: “Sigam a fumaça.”
Por milagre, Carolina Larriera não foi atingida pelos destroços, mas estava em estado de choque. Saiu correndo do seu escritório e abriu caminho pelo corredor escuro em direção a Vieira de Mello, temendo que estivesse preocupado com ela. Com a falta de luz e as nuvens de pó, nada enxergava, mas tinha esperanças de topar com ele enquanto avançava pelo corredor. Chamou seu nome suavemente: “Sérgio, estou aqui, Sérgio… Você está aí?” O prédio ainda tremia por causa da força da explosão, e dava para sentir um cheiro do que lhe pareceu ser o de pólvora.
Carolina queria alcançar a porta lateral do escritório de Vieira de Mello – a porta por onde só ela tinha permissão de entrar. Andando ao longo da parede, viu que, no final do corredor, as luzes aparentemente voltaram a se acender. De tão desorientada, achou que talvez tivesse morrido e se aproximava dos portões do céu. Depois, achou que o gerador tivesse entrado em ação e a eletricidade do prédio sido restaurada. Até que percebeu, horrorizada, que a luz que estava vendo não era artificial, mas a luz natural da tarde de Bagdá. O corredor terminava abruptamente e, onde antes havia um chão e um teto, agora se viam apenas nuvens e a luz solar acima. Sem entender o que acontecera, deu meia-volta mecanicamente, retornou por onde viera e tentou entrar no escritório de Vieira de Mello.
Deparou-se com um cenário aterrador. As portas fora das dobradiças. Vidro e escombros espalhados pelo chão e mesas. Papéis por toda parte. Os aparelhos de ar-condicionado e monitores dos computadores haviam explodido. Uma grande estante de livros branca caíra sobre a mesa do filipino Ranillo Buenaventura, outro assessor de Vieira de Mello. Buenaventura estava deitado em posição fetal, com os olhos tremendo, parte do rosto faltando. Ainda sem compreender nada, Carolina correu para a última sala antes do escritório do noivo. Deu-se conta então da escala da devastação. Parou de chamá-lo baixinho e começou a gritar: “Sérgio!” Mas a passagem à sua frente estava bloqueada pelas vigas e pilhas de escombros, e ele não respondeu. Ela retornou para o corredor e tentou novamente encontrar a porta lateral do escritório de Vieira de Mello. Dessa vez, quando o corredor terminou, ela olhou com mais atenção para a cratera de escombros. Pela primeira vez, viu movimento. Um homem coberto de poeira jazia de costas 9 metros abaixo e, milagrosamente, piscava e acenava com os braços como um boneco. A pessoa lá embaixo parecia alta demais para ser Vieira de Mello, mas ela imaginou que ele também pudesse estar lá. Pensou em saltar sobre os escombros, mas a queda seria grande. Ela poderia morrer e ainda matar o homem ferido. Havia passado menos de um minuto desde a explosão.
Ghassan Salamé, consultor político de Vieira de Mello, correu do seu escritório até o 3º andar, onde se juntou a Pichon. Ao gritar o nome do chefe, não ouviu nenhuma resposta, mas na base dos escombros visíveis do corredor divisou o que Carolina havia visto: um homem com o corpo inteiro coberto de poeira, exceto os olhos, que pareciam piscar furiosamente. O homem acenou. Salamé achou que fosse Vieira de Mello. “Courage, Sérgio, nous venons te sauver!”, gritou. “Vamos até ele pelos fundos do prédio”, propôs a Pichon.
O capitão Kuhner, reservista do exército em Nova York, estava preocupado com os policiais e bombeiros nova-iorquinos de sua equipe. Dois deles já haviam entrado em colapso. Ao correrem rumo ao prédio, haviam parado subitamente. Um deles deu meia-volta. “Desculpe, capitão”, ele havia explicado. “Não consigo.” Estava tendo um flashback do World Trade Center, onde perdera amigos próximos quando as torres desabaram. O Hotel do Canal também parecia à beira da implosão. Kuhner, sem experiência em resgates, deduziu o óbvio: dado o tamanho das lajes dos escombros, os soterrados só seriam salvos se houvesse equipamentos de engenharia e de resgate em incêndios.
O português Ramiro Lopes da Silva, o substituto de Vieira de Mello, era o funcionário da ONU responsável pela segurança. Embora uma lasca de vidro estivesse encravada na sua testa, ele estava plenamente consciente. Lembrou das instruções de segurança: em caso de uma explosão, o pessoal da ONU deveria se abrigar num grande pátio fechado, coberto de ladrilhos azuis. “Sempre nos instruíram: ‘Vão para dentro, não vão para fora.’ Porque lá fora era onde uma explosão deveria ocorrer. Quando a explosão aconteceu dentro”, ele recorda, “não tínhamos nenhum plano. Não sabíamos o que fazer.”
Poucos minutos após o ataque, soldados americanos haviam começado a isolar a área, impedindo que a correspondente da CNN, Jane Arraf, alcançasse o complexo. A CNN tinha uma equipe no momento da explosão, filmando uma entrevista coletiva sobre desativação de minas. Em seu primeiro comentário, às 9h01 pelo horário de Nova York (17h01 pelo horário de Bagdá), Jane descreveu a cena da fachada destroçada do edifício e os helicópteros de socorro Black Hawk sobrevoando o local.. Ela explicou, erroneamente, que a ONU havia “aumentado muito a segurança, particularmente prevendo que alguém poderia tentar detonar um carro-bomba”.
Jeff Davie fizera o mesmo que outros colegas de Vieira de Mello: saíra à procura do chefe. Quando olhou para baixo por uma parte desmoronada da parede do escritório, viu a mesma pessoa avistada por Carolina e Pichon. O homem parecia estar numa parte do chão da sala de Vieira de Mello. Davie achou que o chefe poderia estar deitado na pilha de escombros perto daquele sujeito e desceu correndo as escadas à procura de outro ponto de entrada.
Na entrada do prédio, Carolina cruzou com Mona Rishmawi. “Você o viu?”, perguntou desesperada. Um guarda de segurança iraquiano aproximou-se e disse que vira o chefe da missão da ONU sair andando do prédio. Embora Carolina tivesse deixado o escritório de Vieira de Mello dez minutos antes da explosão e falado com ele apenas dois minutos antes do atentado, e embora não fosse típico dele fugir de tamanho caos, o iraquiano pareceu tão seguro que ela se agarrou à esperança. Um soldado americano que tentava remover os feridos abordou-a com autoridade: “Madame”, disse mecanicamente, “você tem que se cuidar. Nós providenciaremos o resgate.”
Carolina correu em direção a uma escavadeira. Foi quando viu Ronnie Stokes, o chefe da administração. “Onde está Sérgio?”, ela gritou para ele enquanto corria. “Ele está vivo”, ele gritou de volta. “Foi encontrado.” “Mas onde ele está?”, ela berrou. Stokes apontou para a pilha enorme de escombros no canto do prédio. “Ali”, respondeu. “Está preso nos escombros.”
Andre Valentine, o bombeiro e especialista em emergências médicas de Nova York, foi um dos primeiros paramédicos a chegar. Soldados já haviam delimitado um perímetro de segurança, mas Valentine recorda: “Não sabíamos quem estava envolvido ou se os criminosos ainda estavam lá dentro.” Uns poucos militares americanos e funcionários da ONU haviam criado uma área de triagem e tratamento, num gramado na entrada do Hotel do Canal, mas a maioria dos funcionários zanzava para lá e para cá sem ajudar. “Não precisam ligar para as Nações Unidas em Nova York e contar que sua sede foi explodida”, Valentine disse, enfurecido com aqueles que falavam ao celular e obstruíam a passagem. “A esta altura, todo mundo já sabe. Enfiem o maldito telefone no bolso. Parem de fumar. Vocês poderiam me ajudar.” Ele instruiu os soldados em volta que proibissem a entrada de quem não fosse médico ou paramédico na área de 90 metros de perímetro. “Se alguém que não for um general quatro estrelas entrar aqui, atirem para matar”, ordenou.
A secretária Lyn Manuel não se movera. Estava escorada na entrada do prédio, enquanto dezenas de colegas histéricos passavam por ela. Tentou atrair a atenção de alguém que tivesse um telefone celular, para avisar o marido em Nova York. Lyn temia que o coração da mãe idosa não resistisse à notícia de um ataque ao quartel-general da ONU. As pessoas que olhavam para ela rapidamente viravam a cabeça. “Não estou bem”, ela gritou para Shaw-bo Taher, o assessor curdo iraquiano. “Não estou bem”, ela repetiu. Taher tentou tranqüilizá-la: “Não, Lyn, você está bem. Não há nada de errado com você. São apenas ferimentos leves.” Mas como recorda Taher: “Seu rosto era um pedaço de carne, um pedaço de carne vermelha sangrenta.” Lyn, ainda se esvaindo em sangue, começou a perder a consciência. Mas deu para observar o cenário à sua volta. Estava cercada de corpos beges e inertes.
Nas três horas seguintes, os caminhões e helicópteros transportaram cerca de 150 feridos para mais de uma dúzia de hospitais americanos e iraquianos na área de Bagdá, e depois para instalações mais aparelhadas em Amã e na cidade do Kuwait.
Jeff Davie começou a sondar os escombros no local, nos fundos do prédio, onde imaginou ser a sala em que Vieira de Mello teria feito a reunião. Quase imediatamente após remover parte do concreto mais leve e abrir uma pequena fenda, ouviu uma voz que soou como aquela que vinha procurando. Davie espremeu-se até a cintura entre o que pareceu uma laje do teto e uma do 3º terceiro andar, e gritou para a pessoa que havia feito o barulho. Milagrosamente, Vieira de Mello respondeu, dessa vez com clareza. “Jeff, minhas pernas”, ele disse. Mais de meia hora decorrera desde que Davie chegara ao Hotel do Canal.
Vieira de Mello, que Davie não conseguia visualizar, mas podia agora ouvir, estava consciente e lúcido. Imobilizado sob os escombros, não conseguia ver nem sentir as pernas. Davie subiu nos escombros e encontrou uma abertura de meio metro entre duas lajes de concreto. De lá, viu o mesmo homem que lhe acenara quando estava no 3º andar. Davie esticou o braço através dos destroços para segurar-lhe a mão e falou com ele através da abertura. O homem disse que perdera parte de uma das pernas. Contou que se chamava Gil. Era Gil Loescher, o especialista em refugiados que chegara de Amã naquela manhã. Davie disse a Loescher que iria buscar ajuda.
Ao correr em torno do hotel, Davie agarrou o primeiro soldado americano que conseguiu encontrar. Era o bombeiro William von Zehle. “Temos pessoas soterradas”, Davie informou. Ele escoltou Von Zehle ao redor do prédio até o monte de destroços onde Loescher estava soterrado. Davie contou ao soldado que a única forma de alcançar o homem seria, provavelmente, pelo buraco no 3º andar. Não achou que pudesse ter acesso a Vieira de Mello, que parecia distante o suficiente – ao menos três metros – para precisar de um segundo resgate. Depois de medir a pulsação de Loescher, Von Zehle rapidamente deixou a pilha de escombros e abriu caminho dos fundos até a entrada do prédio, por onde esperava alcançá-lo.
Annie, a primeira mulher de Vieira de Mello, e seus dois filhos, Laurent e Adrien, ainda ignoravam o ataque. Tinham passado a tarde na casa à beira do lago, na França, onde ela e Vieira de Mello foram tantas vezes durante as férias dos filhos. Ao voltarem à margem e atracarem o barco, Annie viu a mãe de sua cunhada vir em disparada até o cais. “Houve um ataque!”, ela gritou. “Aconteceu algo com Sérgio!” Annie passou correndo por ela e voou de carro até Massongy. Laurent e Adrien seguiram no carro atrás. Nervosos, giravam o dial do rádio na esperança de ouvir notícias, mas só conseguiram confirmar que o quartel-general da ONU em Bagdá fora atacado. Ao chegarem em casa, ligaram a televisão e viram a pilha monstruosa de escombros sob a qual seu pai estava soterrado. As legendas na parte inferior da tela davam esperança. Diziam que seu pai se ferira na explosão, mas que recebera água.
Depois de deixar Loescher aos cuidados de Von Zehle, Davie voltou correndo à abertura por onde falara com Vieira de Mello. Mas no breve intervalo em que se afastara, a brecha que limpara havia se enchido parcialmente de lama. A explosão da bomba destroçara o concreto e arrebentara os canos d’água, de modo que a argila e água estavam se misturando, forçando os sobreviventes e as equipes de resgate a se preocuparem com deslizamentos de lama e asfixia. A voz de Vieira de Mello havia enfraquecido. “Jeff, não consigo respirar”, ele disse. Davie, prejudicado pela exigüidade de espaço, pôs-se a remover a lama e detritos do buraco. Após cerca de dez minutos, a voz de Vieira de Mello tornou-se mais clara: “Consigo respirar”, ele falou. “Consigo ver luz.”
Davie emergiu de novo da abertura. Os americanos trouxeram pequenas pás, com uns trinta centímetros de comprimento, praticamente inúteis na remoção de lajes da parede e teto. No local, havia 450 homens, mas faltavam especialistas em resgate e equipamentos.
Por cerca de uma hora, Pichon juntou-se a Davie na tentativa de remover o entulho da abertura. Davie continuou falando com Vieira de Mello, principalmente para mantê-lo consciente e tentar descobrir sua exata localização. “Estou de frente para um grande objeto achatado”, Vieira de Mello disse. “Está escuro. Minha cabeça e um braço estão livres.” Ele pediu água, mas Davie não conseguiu alcançá-lo para fornecê-la. Vieira de Mello repetiu várias vezes: “Jeff, minhas pernas.” Indagou também constantemente sobre os membros de sua equipe. “Jeff, os outros… onde estão… quem está tratando deles?”, perguntou. “Onde está Carolina? Onde estão Gaby e os outros? Por favor, procure-os. Por favor, não os abandone… não vá embora.”
William von Zehle era técnico em emergências médicas desde 1975. De missões anteriores, aprendeu que a melhor forma, e com freqüência a única, de tirar pessoas soterradas de prédios desmoronados era agir por dentro. Olhando a cratera de escombros por cima, sentiu-se como que na varanda de um hotel. Dispunha de um rádio, mas estava sem recepção, de modo que ligou pelo celular a Scott Hill, seu comandante. “Diga à minha esposa e filhos que os amo, porque posso não voltar para casa”, ele informou. Hill ficou surpreso. “Recebido e entendido!”, ele respondeu. Von Zehle retirou o colete à prova de balas e preparou-se para entrar no buraco.
Ele usou as barras de reforço que se projetavam do concreto estraçalhado para firmar as mãos na descida. Os escombros eram tão instáveis que, ao se encostar no entulho, eles muitas vezes desmoronavam. Sabia que um dos maiores riscos para os soterrados era que, na tentativa de alcançá-los, se desencadeasse uma miniavalanche, o que poderia matar a todos.
Depois de Von Zehle ter descido pouco menos de 5 metros, o buraco se alargou ligeiramente. Quando alcançou Loescher na base, viu outra pessoa. O homem estava virado sobre seu lado direito. Com as pernas soterradas no entulho, ele parecia estar preso entre duas lajes de concreto. “Você está o.k.?”, Von Zehle gritou. “Estou vivo”, o homem respondeu. “Sou Bill”, Von Zehle apresentou-se. “Qual é o seu nome?” “Sou Sérgio”, ele disse. Perguntou se alguém fora morto. Von Zehle disse que sim, mas que não sabia quem nem quantos eram. “Não vou conseguir sair daqui, vou?”, Vieira de Mello perguntou. “Não se preocupe”, tranqüilizou-o. “Você tem minha palavra: vamos tirar vocês dois daí.”
Com quase 1,90 metro e mais de 80 quilos, Von Zehle era corpulento demais para manobrar no espaço entre Loescher e Vieira de Mello. Conseguira inserir um tubo intravenoso no braço direito de Loescher. Mas Vieira de Mello não estava a seu alcance, e tudo que pôde fazer foi tentar afastar os destroços com as mãos e escorar algumas lajes de concreto mais pesadas, para estabilizar os entulhos à sua volta.
Von Zehle perguntou a Vieira de Mello se ele conseguia mover os dedos dos pés. Ele respondeu que sim. “E os dedos das mãos?” Também conseguia. “Que dia da semana é hoje?” “Terça-feira”, ele respondeu. Von Zehle ficou satisfeito por ele estar lúcido e poder ser resgatado. “Carolina está o.k.?”, ele quis saber. “É sua mulher?”, Von Zehle indagou. Vieira de Mello gemeu que sim. Von Zehle ficou surpreso e pensou: “Não creio que a mulher dele esteja aqui com ele em Bagdá.” Mas Vieira de Mello não parecia delirante. “Eu não sabia quem era aquele homem”, recorda Von Zehle, “mas era óbvio que era um tipo de sujeito que assumia o comando.” Ele fez várias perguntas. “Qual a gravidade da explosão?”, quis saber. “Quantas pessoas estão feridas?”
Cerca de trinta minutos depois de Von Zehle descer no buraco, três rostos apareceram no alto. “Podemos ajudar você?”, um deles perguntou. Von Zehle não havia progredido muito em sua escavação solitária, mas temia que soldados bem-intencionados, sem experiência em busca e resgate, pudessem piorar ainda mais as coisas. “Algum de vocês tem treinamento nisto?”, ele perguntou. Dois dos homens acenaram que não com a cabeça, mas um disse as palavras que ele esperara ouvir: “Sou um bombeiro paramédico de Nova York.” Von Zehle examinou o homem de 1,70 metro e 70 quilos. Era Andre Valentine, o paramédico que estivera organizando a triagem na entrada do Hotel do Canal. “Sou grande demais”, explicou Von Zehle. “Desça aqui.”
Valentine tirou o colete blindado, depôs a arma e colocou as luvas. Von Zehle saiu da cratera, e os dois trocaram idéias sobre suas experiências. “Bem, ao menos duas pessoas em Bagdá já fizeram este tipo de trabalho antes”, Valentine observou. Olhando para o buraco repleto de escombros, disse, meio de brincadeira. “Deveríamos estar bem agora.” Von Zehle assentiu com a cabeça. “O que eu não faria pelo equipamento certo neste momento”, exclamou. Eram cerca de cinco e meia da tarde, mais de uma hora após o ataque. Davie tentou manter Vieira de Mello informado sobre o andamento do resgate. Um sargento médico chamado Eric Hartman apareceu.. “Eric é especialista nesse tipo de salvamento”, Davie lhe contou. “Ele tem uma equipe especializada e equipamentos de engenharia.” Vieira de Mello colocou suas esperanças no recém-chegado. “Sérgio, estamos tentando encontrar um caminho até você de duas direções”, Davie disse. Vieira de Mello respondeu: “Jeff, por favor, se apresse.”
Quando Carolina chegou aos fundos do prédio, os guarda-costas de Vieira de Mello e os soldados americanos a afastaram, agarrando-a rudemente pelos braços e tentando levá-la de volta para trás do cordão de isolamento. Ela ficou espantada ao ver quão poucas pessoas cavavam os destroços. A maioria dos soldados estava de costas para os escombros, mais concentrados em manter as pessoas longe da cena do crime do que em socorrer os soterrados. Carolina implorou aos soldados americanos que começassem a cavar. “Vamos usar os metais destroçados espalhados por aí”, ela tentou. Ao se inclinar na base da pilha enorme, cavou pateticamente com as mãos. “Achei que talvez se eu cavasse, mesmo que parecesse ridículo, eles captariam a idéia”, ela recorda. Mas os soldados cumpriam ordens e continuaram de costas para o edifício. Vários câmeras filmavam as tentativas de resgate, e ela implorou que eles se juntassem ao resgate. “Por favor, ajudem”, ela gritou. “Não filmem! Ajudem!”
O capitão Kuhner voltou para os fundos do prédio e se colocou entre Carolina e a pilha de escombros. Ela achou que, se Kuhner soubesse quem estava soterrado, faria com que os soldados americanos agissem. “O representante especial do secretário-geral da ONU está soterrado lá”, ela tentou. Kuhner insistiu que Carolina fosse para a Cidade de Barracas juntar-se aos outros sobreviventes. “Você só vai dificultar ainda mais as coisas para nós”, ele disse. “Não, eu não vou embora”, ela respondeu. “Você não pode me obrigar.”
Sobre os ombros de Kuhner, Carolina viu que Davie e Pichon pareciam ter encontrado um meio de se comunicar com Vieira de Mello por um buraco. Ela fingiu que pretendia voltar à Cidade de Barracas, fazendo Kuhner baixar a guarda, e aí conseguiu seguir adiante. Ele ainda tentou alcançá-la, em vão.
Carolina enfrentou ainda a resistência dos colegas da ONU. Pichon, mais embaixo nos escombros do que Salamé e Davie, tentou acenar para que se afastasse, mas ela persistiu. “O que você faria se sua mulher estivesse lá embaixo?”, ela perguntou. Salamé, em cima, argumentou: “Carolina, você vai fazer os destroços desabarem sobre o Sérgio.” Mas ela não seria dissuadida. “Você é muito mais pesado do que eu, Ghassan”, gritou. Ela escalou rápido os escombros, temendo que os soldados americanos tentassem puxá-la. Na subida, suas sandálias ficaram presas na lama, e ela sentiu sua saia se prender numa barra de aço. Continuou subindo e fez uma careta quando a parte de trás da saia rasgou, expondo sua roupa íntima.
Ela enfiou a cabeça na abertura. “Sérgio, você está aí? Sou eu”, disse em espanhol. “Carolina, estou tão contente… você está o.k?”, ele quis saber. “Como você está se sentindo?”, ela perguntou. “Minhas pernas, elas estão doendo. Carolina, me ajuda”, ele disse. “Fica quieto, meu amor”, falou. “Vou tirar você daí.” Mas percebendo a necessidade de um trabalho de resgate mais efetivo e se achando a única imbuída de um senso de urgência, explicou que teria que deixá-lo temporariamente para obter ajuda apropriada. “Voltarei logo”, ela prometeu. “Volta rápido, te amo”, ele respondeu.
Carolina deixou os escombros e foi até a Cidade de Barracas implorar por ajuda. Ela tentou envolver os funcionários mais graduados da ONU. A mais alta autoridade naquele dia, depois de Vieira de Mello, era o subsecretário-geral Benon Sevan, vindo de Nova York. Mas Sevan não voltou ao Hotel do Canal depois que chegou à Cidade de Barracas. Quando Carolina insistiu que ele assumisse o controle, Sevan recusou-se até a encará-la nos olhos. Lopes da Silva, o substituto de Vieira de Mello, não parava de falar pelo telefone com Nova York. Bob Adolph, o chefe da segurança, também estava no local. “Quem está no comando?”, Carolina perguntou. “Os soldados lá não têm a menor idéia de quem está sob os escombros! Sérgio está morrendo!” Os dois homens tentaram convencê-la de que o máximo estava sendo feito. “Nós estamos tentando tirá-lo dali, Carolina”, Lopes da Silva disse.
Não tendo conseguido ajuda, ela tentou chegar de novo aos fundos do Hotel do Canal. No entanto, o exército fizera um cordão de isolamento interno com militares, sacos de areia e caminhões, impedindo o acesso de funcionários e soldados não-especialistas. Embora tivesse prometido a Vieira de Mello que voltaria, não pôde fazê-lo.
De férias em seu rancho em Crawford, Texas, o presidente George W. Bush recebeu a notícia do ataque enquanto jogava golfe. Não interrompeu a partida de imediato. Uma hora depois, fez uma declaração, às 19h05, horário de Bagdá. “O povo iraquiano enfrenta um desafio, e enfrenta uma opção”, disse. “Os terroristas desejam voltar à época das câmaras de tortura e covas coletivas. Os iraquianos que querem paz e liberdade precisam rejeitá-los e combater o terrorismo.”
A ONU não tinha capacidade para descobrir quem perpetrara o ataque ou para submeter os criminosos à justiça. Mas a reação do FBI, logo após a explosão, foi impressionante. No momento em que o terrorista atacou, Thomas Fuentes, que dirigia a unidade do FBI no Iraque, estava no aeroporto de Bagdá. Orientado pelo GPS, chegou com uma equipe de agentes ao local do atentado. Uma hora depois, cerca de duas dúzias de agentes estavam na cena do crime colhendo destroços para a investigação. A bomba projetara fragmentos de indícios em centenas de direções, que acabariam sendo recuperados numa área de 13 quilômetros quadrados.
Valentine, o paramédico de Nova York, descia pela cratera. “Mantenham os olhos fechados, pessoal”, ele disse ao mergulhar no buraco. Temia a queda de entulhos. “Estou descendo!” Loescher respondeu: “Bom, preciso da sua ajuda.” Vieira de Mello estava calado. Em 28 anos de carreira, Valentine havia atuado em tragédias em vários prédios desmoronados, tendo certa vez retirado uma mulher presa sob um guindaste. Embora tivesse servido onze meses no Afeganistão, e quatro meses no Iraque, aquela era sua primeira missão de resgate de civis em tempo de guerra.
Valentine alcançou Loescher em torno das quinze para as cinco. Aplicou-lhe soro na veia e tentou mantê-lo consciente perguntando sobre sua família. “Você é casado, Gil?”, indagou. “Quantos filhos?” Loescher contou que tinha duas filhas, e Valentine disse que tinha seis filhos. “Vamos retirar você daí para que possa em breve dançar com sua esposa”, o paramédico prometeu. “Mas eu estarei engessado”, Loescher disse. “Você nunca dançou de muletas antes?”, brincou o outro.
As pernas de Loescher pareciam ter sido esmagadas abaixo dos joelhos. Vieira de Mello estava a 1,20 metro à direita dele. Sua perna e braços direitos permaneciam soterrados sob os escombros. Ao se agachar para cuidar de Loescher, Valentine alcançou Vieira de Mello. Conseguiu amarrar uma atadura ao redor de seu braço esquerdo e ministrar-lhe soro na veia. “Me tirem daqui”, Vieira de Mello pediu, pronunciando claramente cada palavra.
A tentativa de tirá-los dali foi tortuosamente lenta. Valentine era o único soldado com estatura para entrar no fundo do buraco. Ele se arrastava entre os dois homens, insistindo para que conversassem, oferecendo morfina ou soro quando possível, lutando contra o tempo enquanto tentava remover o entulho embaixo e acima deles. Valentine passou a maior parte do tempo com Loescher. Estava pessimista quanto a Vieira de Mello, imobilizado sob entulhos tão pesados que não via como retirá-lo. Começou a pensar em cortar-lhe o braço, mas não teria espaço para fazê-lo, ou em movê-lo para a base do buraco, depois que tivesse resgatado Loescher, que estava atrapalhando o acesso. Quando Valentine retirava entulho ao redor de Vieira de Mello, o único lugar onde conseguia colocá-lo era na cavidade onde Loescher jazia. “Eu tinha um plano. Eu tinha que retirar Gil primeiro, depois teria algum lugar onde pôr os escombros, e poderia tentar mover Sérgio para onde Gil estava”, Valentine contou mais tarde.
Em seus breves diálogos, Vieira de Mello foi se irritando com Valentine. “Você é cristão?”, o paramédico perguntou. Vieira de Mello respondeu que não. “Você acredita no Nosso Senhor?”, Valentine continuou. Ele novamente resmungou que não. “Estamos numa situação difícil aqui”, Valentine disse. “Seria bom rezarmos juntos para Deus.”
Vieira de Mello não estava gostando nem um pouco daquilo. “Não quero rezar”, ele disse. “Se Deus fosse o que você diz, não me teria deixado aqui.”
“Deus tem razões para tudo que faz”, Valentine insistiu.
“Foda-se Deus”, Vieira de Mello disse. “Por favor, apenas me tire daqui.”
Valentine e Von Zehle estavam agradecidos por haver paramédicos passando, através de rachaduras externas, bolsas de soro, ataduras, morfina e água engarrafada. Mas era preciso que os outros se afastassem. Quando haviam quase conseguido remover os escombros de cima do tronco de Loescher, alguém lá fora mexeu em uma laje, provocando a queda de cimento quebrado sobre ele. Teriam que começar tudo de novo. Valentine estava furioso. “Digam que parem de atrapalhar”, ele berrou buraco acima. “Eles são imbecis?” Precisava de equipamento e auxílio profissional, não de ajuda amadora.
Às seis da tarde, meia hora depois de a equipe do FBI ter chegado à cena do crime, um especialista em explosões de bomba foi falar com o agente Fuentes. Ele segurava um fragmento de metal retorcido de 46 centímetros de comprimento, 8 de largura e 5 de espessura, em forma de banana. “Sei qual foi o tipo de bomba”, disse o analista. Fuentes fitou, incrédulo, a tira fina de metal. Ficou surpreso que um pedaço tão pequeno de ferro pudesse fornecer tamanha pista. “Foi uma bomba aérea de fabricação soviética da década de 1970”, continuou o analista.
A abundância de indícios só aumentaria. Após alguns minutos, outro agente do FBI se aproximou. Ele carregava o eixo do caminhão e parte da porta, contendo o número de identificação do veículo. Na manhã seguinte, um jornalista da CNN telefonaria informando que um grande pedaço de metal, do tamanho de uma mesa, aterrissara no posto de controle militar do outro lado da Estrada do Canal, a cerca de 1,5 quilômetro da explosão. Foram precisos três agentes e uma picape para recolher o metal, que continha a placa do caminhão. Completando as pistas, um analista do FBI mostrou a Fuentes a mão esquerda do terrorista. Ela havia sido decepada no pulso e ainda segurava parte do volante do caminhão. Foi encontrada no teto do prédio de operações civil-militares onde Von Zehle trabalhava.
Dentro do buraco, Von Zehle se transformara numa viga humana. Na metade do túnel vertical, tapara um lado da passagem com a cabeça e o outro com as nádegas, protegendo Loescher e Valentine de escombros. Servindo de intermediário numa lenta linha de montagem de remoção de destroços, continuava confiante de que os equipamentos de engenharia chegariam a tempo. Como as lajes do teto e chão haviam caí-do particularmente intactas, Von Zehle imaginou que buracos pudessem ser abertos nas lajes superiores, pinos pudessem ser inseridos, e um guindaste pudesse puxar uma laje inteira para cima. Von Zehle conhecia os riscos de tal procedimento. Embora a remoção de uma laje grande pudesse libertar uma pessoa presa, poderia também deslocar entulhos, pondo em risco tanto os sobreviventes quanto a equipe de resgate, que teria que permanecer no buraco para cuidar dos dois feridos. Von Zehle também sabia que, às vezes, vítimas de desmoronamentos permaneciam vivas somente porque o peso dos escombros retardava a hemorragia interna. Temia que a remoção rápida do concreto ao redor de Loescher e Vieira de Mello pudesse, paradoxalmente, acelerar-lhes a morte.
Valentine sabia que o tempo estava se esgotando e que a cavalaria não viria. Havia estabilizado Loescher, mas precisava tirá-lo do buraco para lhe garantir maiores cuidados médicos. Temia que, ainda que conseguisse deslocar a parede que cobria as pernas de Loescher, o prédio inteiro desmoronasse sobre eles. Concluiu que, para tirar Loescher dos escombros, só teria uma opção. “Gil, tenho uma pergunta para você e quero que reflita com cuidado”, ele disse. “Você está preparado para me autorizar a amputar suas pernas?” Loescher, ainda consciente, não hesitou. “Só me tire daqui”, ele disse. “Quero ver minha família.”
Valentine tinha o consentimento do paciente, mas não dispunha de material cirúrgico. Ele gritou buraco acima, pedindo instrumentos. Em poucos minutos, soldados retornaram com uma serra de carpinteiro enferrujada, entregando-a na bolsa de mão buraco abaixo. Valentine teria que se virar com aquilo. Um cirurgião do exército americano apareceu no alto do buraco, e Valentine pediu permissão para começar a cortar. “Faça o que for preciso para retirá-lo daí”, disse o médico. Valentine injetou dez miligramas de morfina em Loescher, amarrou duas ataduras como torniquetes sob os joelhos, e usou sua tesoura e serra para começar a remover o que restava da parte inferior das pernas de Loescher, sobre o tornozelo. Loescher caiu em tamanho estado de choque que sequer gritou de dor.
Jeff Davie e Gabriel Pichon ignoravam que a equipe de resgate estivesse tão próxima de seu chefe. Eles continuavam se revezando à direita dos fundos do prédio, tentando cavar uma fenda para alcançar Vieira de Mello. O calor era insuportável. Uma hora e meia depois do início da tentativa de resgate, Davie havia desmaiado. Pichon o puxou para fora do buraco. Logo depois, o motorista também sucumbiu às altas temperaturas e foi substituído por um soldado americano. Davie foi atrás de água e, ao retornar dez minutos depois, perguntou ao soldado se ainda conseguia falar com Vieira de Mello. O soldado disse que não. Eram quase sete da noite.
A abertura que Davie e Pichon tentaram alargar parecia promissora. No entanto, mais de duas horas depois da explosão, o resultado era pífio. O último golpe foi quando começaram a cavar num canto do teto caído e descobriram que o “buraco” que vinham tentando desobstruir, no fundo do canto desmoronado, não passava de um orifício do isolamento de uma das paredes do teto. Havia mais dez centímetros de concreto abaixo. Eles estavam exaustos e não sabiam o que fazer. Davie virou-se para Pichon e verbalizou o que nenhum deles queria admitir: “Não dá para alcançar Sérgio por fora sem erguer o teto.”
No interior do buraco, Valentine não desistira. Com o passar dos minutos, Vieira de Mello reagia cada vez menos. “Preciso que você colabore, Sérgio. Preciso que fique acordado”, Valentine disse, cutucando-o e beliscando-o para que recobrasse a consciência. “Vou morrer, não vou?”, Vieira de Mello perguntou. Valentine não tinha uma boa resposta. Em torno das sete da noite, Vieira de Mello parou de puxar conversa, mas ainda conseguia responder com lucidez. Quando Valentine perguntava “Sérgio, Sérgio, você está o.k.?”, ele respondia que sim ou não. Mas, ao redor das sete e meia, Vieira de Mello só reagia a estímulos dolorosos, e sua respiração se tornava mais forçada.
Tendo amputado os pés de Loescher e conseguido soltá-lo, Valentine e Von Zehle puseram-no na maca de cortina improvisada por Ralph Embro, outro técnico em emergências médicas. Enquanto os homens no alto do buraco puxavam, Valentine e Von Zehle empurravam por baixo. Após oito da noite, Loescher atingiu o terceiro andar, com Valentine atrás dele. Valentine saiu e deitou-se no chão, exausto. Estivera lá dentro por quase três horas. “Estamos em cima, Gil”, ele disse. Loescher conseguira conservar parcialmente a consciência. “Obrigado”, agradeceu. Nenhum dos paramédicos tinha grandes esperanças na sobrevivência de Loescher, mas sabiam que, se ele chegasse ao hospital do exército americano em Landstuhl, Alemanha, poderia ser salvo. [Loescher sobreviveu.]
Embro ajudou a transportar Loescher numa padiola até uma ambulância, nos fundos do prédio, onde estava um helicóptero Black Hawk. Foi aí que Embro viu o local da explosão. “Puta merda”, exclamou em voz alta. Após deixar Loescher aos cuidados de outros, voltou à entrada do Hotel do Canal para ajudar no resgate de Vieira de Mello. Mas ao entrar, topou com Valentine, carregando sua bolsa médica, suando em bicas e coberto de sangue. “A outra pessoa não resistiu”, ele disse.
Por volta das 8 da noite, um oficial americano passou por Carolina a caminho dos fundos do prédio. Ela bloqueou sua passagem, e ele prometeu descobrir como estava Vieira de Mello. Logo depois que ele partiu, uma ambulância da Cruz Vermelha, sirene ligada, passou por ela e transpôs o cordão de isolamento rumo ao hotel. O americano retornou: “Tenho boas notícias”, ele disse. “Seu marido foi salvo.” E apontou para cima: “Você vê aquele helicóptero? Ele está lá dentro.” Mas o homem disse que também tinha uma notícia ruim. “Tivemos que amputar suas pernas”, informou. Ela suspirou aliviada. “Contanto que esteja vivo”, disse Carolina, “não me importo com suas pernas.”
Tendo esgotado todas as opções pelos fundos do edifício, Jeff Davie decidiu retornar ao 3º andar. Esperava encontrá-lo lotado pelo pessoal do resgate, mas o lugar estava vazio. Havia uma lanterna na entrada do buraco e Davie iluminou o local onde o homem que se identificara como Gil estivera deitado. Ele havia sumido, mas Davie viu as costas de outra pessoa. Rastejou para dentro da fenda e logo reconheceu Vieira de Mello. A remoção dos entulhos e a retirada de Loescher haviam exposto uma pequena área adjacente ao buraco. “Sérgio!”, Davie gritou. “Sérgio!” Não houve resposta.
Um grupo de soldados iluminou o buraco com suas lanternas. Um deles, um tenente-coronel engenheiro, desceu e ajudou Davie a tirar o entulho. Foi aquele engenheiro quem primeiro tocou no pescoço de Vieira de Mello, não detectando nenhuma pulsação. Davie, que vinha lutando havia quatro horas ininterruptas para resgatar seu chefe, entrou em desespero. Subitamente, sentiu-se esgotado.
Recuperar o corpo de Vieira de Mello continuava a ser uma tarefa arriscada, pois os entulhos ainda se deslocavam. Davie e o engenheiro removeram cabos elétricos que bloqueavam a passagem. Amarraram uma corda em torno da cintura de Sérgio, e os soldados no andar superior puxaram até ele ser enfim arrancado do triângulo protegido adjacente ao buraco. Foi a primeira vez que Davie conseguiu ver o corpo de seu chefe. As pernas estavam laceradas. A manga esquerda de sua camisa estava rasgada e a mão esquerda, coberta de sangue. Foi levado ao 3º andar e colocado numa maca. Eram cerca de nove da noite.
Ghassan Salamé foi chamado para identificar o corpo. Subiu as escadas e removeu o lençol. Vieira de Mello parecia calmo. O único sinal visível de trauma eram pequenas manchas de sangue no rosto de bronze. Foi levado ao necrotério numa base americana perto do aeroporto, onde já havia cerca de quinze corpos na barraca do exército.
Às 21h24 pelo horário de Bagdá, 14h24 pelo horário de Brasília, 13h24 pelo horário de Nova York, o correspondente da CNN Michael Okwu disse: “Soubemos, Kyra, pelo escritório do porta-voz da ONU, que Sérgio Vieira de Mello veio a falecer. Recebemos a notícia faz apenas alguns minutos.” Annie, sua ex-mulher, e os filhos Laurent e Adrien assistiram à declaração antes de receberem qualquer notícia da sede da ONU.
No Rio de Janeiro, a mãe de 85 anos de Vieira de Mello, Gilda, estava confusa. Moradores do seu prédio, membros da família e amigos próximos foram ao seu apartamento naquele dia. Até pessoas desconhecidas se reuniram na frente do prédio. Ela havia passado todo o verão temendo que o filho fosse confundido com um americano, o que fez com que aumentasse a dosagem do ansiolítico. André Simões, o sobrinho e afilhado de Vieira de Mello, Antonio Carlos Machado, seu melhor amigo de infância, e o Dr. Antonio Vieira de Mello, seu primo mais próximo, deram a notícia. Quando ela começou a gritar, o dr. Vieira de Mello deu-lhe sedativos.
No Hotel do Canal, Carolina continuava aguardando notícias. Em torno das nove da noite, quinze minutos depois da informação do oficial de que Vieira de Mello fora transportado de helicóptero ao hospital, ela ouviu Lopes da Silva comentando com alguém: “Sérgio está morto.” Ela gritou e correu na direção dele. “Diga que não é verdade”, implorou. Lopes da Silva virou-se e disse: “Ele se foi.”
Carolina foi levada para uma casa alugada por funcionários da ONU, e recebeu um sedativo. Ao nascer do dia, pediu para ver o noivo. Quando seus colegas se recusaram, ela deixou a casa sozinha e saiu andando sem saber direito para onde deveria ir. Um funcionário a alcançou, conduzindo-a ao seu hotel. De volta ao quarto em que ela e Vieira de Mello viveram por mais de dois meses, Carolina fez as malas, no total de oito, e apanhou um terno feito sob medida para Sérgio, bem como a gravata verde que ela havia lhe presenteado no aniversário.
Pichon e outro dos guarda-costas, Romain Baron, que deixara um hospital italiano apesar de uma grave ferida de estilhaços de bomba no ombro, levaram o terno ao necrotério. Ali lavaram o corpo do chefe e rasgaram as costas do terno para conseguir vesti-lo. Baron colocou um rosário na mão de Vieira de Mello.
Salamé acabou conseguindo que Carolina fosse ao necrotério. Quando ela chegou e correu para dentro, encontrou Vieira de Mello deitado sobre a mesa. O terno subitamente pareceu grande demais nele. Estava com a aliança de ouro, com o nome “Carolina” gravado, e a corrente de ouro que usara por muitos anos, com um “C” dourado que ele retirara do colar dela e transformara num pingente. A explosão privou-o de sua corrente de prata e da placa de identificação com seu nome, data de nascimento e a bandeira da ONU gravada.