ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2008
E com vocês… Los Kents!
Expoentes roqueiros da decadência capitalista renascem das cinzas
Roberto Kaz | Edição 20, Maio 2008
Numa tarde recente, o baterista Carlos René Carnero Petrus, de 58 anos, entrou numa sapataria em Vedado, bairro central de Havana, sem nenhum sapato para levar ou buscar. Deu uns passos até os fundos e, mais uma vez, se viu diante de uma bateria, um bongô, um teclado, um baixo e duas guitarras. É lá que, uma vez por semana, Petrus e sua banda – Los Kents – ensaiam os grandes sucessos do rock anglo-americano.
Os Kents surgiram em 1965, seis anos depois de a revolução cubana ter estatizado fazendas, indústrias e hotéis e acabado com a propriedade privada do país. A União Soviética passou a ser a nação-irmã, e a música jovem em inglês virou crime contra o socialismo. Proscritos, Elvis, Beatles, Rolling Stones e outros expoentes da decadência capitalista só entravam na ilha em discos escassos, negociados em vielas escuras. “O rock era tão malvisto que nem instrumentos havia”, conta Petrus. “O primeiro baixo da banda foi feito com cordas de piano presas numa tampa de privada.” (Imagine-se o som do grupo.)
Impedidos de tocar em lugares públicos, os Kents ficaram restritos ao nicho das festas de amigos, onde a vigilância era menor. Para exercer legalmente a profissão de músico e ter direito a salário, um dos integrantes trocou o conjunto por uma orquestra erudita. Outros dois se mantiveram fiéis ao sonho, mas foram sonhar em paragens mais receptivas ao rock: bandearam-se para os Estados Unidos e a Espanha. Em 1974, seguindo a triste sina de bandas como Los Jets, Los Pacíficos e Los Dinámicos, o conjunto finalmente se desfez. Petrus virou técnico em eletrônica.
O silêncio dos roqueiros duraria 26 anos. Os primeiros sinais de mudança vieram em 1989, com a queda do Muro de Berlim, e viraram ruína econômica dois anos depois, com o desmantelamento da União Soviética. O PIB cubano encolheu cerca de 12% ao ano entre 1991 e 1993.
Na tentativa de injetar dinheiro na ilha, Fidel Castro imitou seus vizinhos caribenhos: abriu-se ao turismo. Em 1993, um decreto-lei autorizou a abertura de pequenos negócios como bares e restaurantes. Mais seis anos e o jornal Granma, órgão oficial do Partido Comunista, arrolou John Lennon entre os líderes mais influentes do século XX, ao lado de Fidel, Lênin e Che Guevara. No ano seguinte, com o argumento de que o Beatle combatera a guerra ame-ricana contra o Vietnã, o governo homenageou Lennon com uma estátua e um show na Tribuna Antiimperialista, um palco a céu aberto em frente à Seção de Interesse dos Estados Unidos, única representação americana em Cuba. Como precisavam de alguém capaz de cantar Help!, chegaram aos remanescentes de Los Kents.
O grupo voltou a se apresentar em grande estilo. “Compramos umas guitarras usadas, que pelo menos já eram Fender ou Ibanez”, conta Petrus. “Antes, só havia instrumentos da União Soviética e da Alemanha Oriental.” Para os vocais, foi arrancado das trevas do esquecimento o quase sessentão Guillermo Quesada, ex-Jets, que trazia no currículo a experiência de contador, diretor de loja, chefe de armazém e superintendente administrativo do Instituto de Cardiologia. Não cantava há duas décadas. “Foi uma época negra”, rememora.
O show teve um sucesso retumbante. Dias depois, os Kents puseram seus versos em inglês a serviço do Estado: foram contratados pela empresa pública que gerencia músicos e bandas, a Benny Moré, tábua de salvação para artistas idosos no ocaso da carreira, que recebem um salário mensal entre 600 e 800 pesos (de 27 a 36 dólares). Como a maioria dos grupos, os Kents ganham por show, mas são obrigados a repassar 30% do cachê ao governo. Em 2007, chegaram a cobrar 10 mil pesos – ou 450 dólares – para se apresentar no Festival Nacional Arañando la Nostalgia. Descontados os impostos, sobraram perto de 44 dólares para cada um dos sete roqueiros.
Os Kents jamais gravaram um disco e não tocam músicas próprias. Das 44 peças do repertório, apenas duas são em espanhol. O resto vai de Elvis a Bon Jovi. “Nossas principais influências são The Animals, Steppenwolf, Deep Purple e Bob Dylan”, explica Petrus. Nas apresentações, batem continência hinos do rock como Day Tripper, dos Beatles, e Another Brick in the Wall, de Pink Floyd.
A banda se apresenta nos fins de semana. Às sextas, cantam no hotel cinco estrelas Habana Libre, antigo Hilton, primeira sede do governo revolucionário. Sábado é a vez da casa noturna La Maison. Domingo é dia de matinê no Café Cantante, uma boate colada à Praça da Revolução, onde outrora Fidel Castro dava vazão à sua caudalosa oratória. Embora nunca tenham se apresentado no Teatro Karl Marx, Petrus diz que os Kents estão felizes: “Somos a banda de rock mais antiga de Cuba, e a única que já tirou foto ao lado do Comandante!”