ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2006
Parabéns pra você
Como comemorar o aniversário cansando os convidados
Marcos Sá Corrêa | Edição 4, Janeiro 2007
Bem que o dono da festa avisou. Na saída de São Bartolomeu, havia uma casa na beira da estrada, a última que se veria dali para a frente. Era uma daquelas construções com telhado de quatro águas, paredes decorosamente caiadas e outros detalhes anacrônicos que a arquitetura rural foi deixando para trás no interior do país. Lá de dentro saía o som daquela manhã de sábado. Não era televisão aos berros, nem coro de culto pentecostal. Alguém, naquele ermo, escutava Paulinho da Viola em surdina.
Bem-vindo ao método do professor Claudio de Moura Castro para descobrir Minas Gerais. Ele abrira os trabalhos, meia hora antes, com uma pequena aula sobre o que os convidados deveriam esperar do programa. Eram cerca de quarenta pessoas, além de três cachorros, todos aquecendo os músculos para a largada. Portanto, um auditório inquieto. Para ser ouvido, ele subiu no parapeito de um coreto, acrescentado em 1958 à matriz de São Bartolomeu, um dos prédios mais antigos do barroco mineiro. A cidade do século XVII chegou ao século XXI com pouco mais de oitocentos habitantes. Faz uma goiabada que disputa com a de Ponte Nova a fama de ser a melhor de Minas Gerais. Mas sua vantagem incontroversa é um sino de madeira, muito raro, na torre da igreja. Sem o badalo, que ninguém é de ferro. Era de prata e foi roubado anos atrás.
A matriz serviu de ponto de encontro para uma caminhada até Ouro Preto. Era a versão 2006 da romaria anual que comemora o aniversário do carioca Moura Castro desde que ele veio morar em Belo Horizonte, depois de uma década fora, emendando cargos em Genebra, como chefe da Divisão de Políticas de Formação da Organização Internacional do Trabalho, e Washington, como economista de Recursos Humanos do Banco Mundial e diretor da Divisão de Programas Sociais do BID.
Ele fazia 68 anos e estava vestido a caráter. Usava na cabeça o chapéu de couro trazido de trilhas na Patagônia. A mochila, surrada como manda o figurino do andarilho, ostentava um escudo nepalês, suvenir de uma expedição ao Himalaia. “Hoje temos no grupo um pediatra e um cardiologista”, disse antes da partida. “Vocês podem escolher com quem querem ficar.” Não havia só médicos. O círculo mais íntimo de Moura Castro incluía economistas e arquitetos, vários PhDs, o dono de um banco de investimentos, o vice-presidente da Federação das Indústrias de Minas Gerais, o presidente da Federação Brasileira de Vôo Livre, os donos de uma pousada na montanha, um especialista em computação científica, um fabricante de móveis para escritório e gente que ele conheceu nas picadas.
Schumann, a cadela dos Moura Castro, integrava a comitiva, como sempre. O nome estava escolhido antes que ela entrasse para a família, porque Norah, a mulher do aniversariante, é pianista. Eles queriam um labrador macho. Veio uma fêmea, e Schumann deixou de ser Robert para virar Clara, sem necessidade de maiores explicações.
O roteiro foi descrito com precisão didática, como é do estilo de Moura Castro. De saída, haveria um longo estirão para encher a manhã, seguindo o caminho histórico do Sabarabuçu, num tronco secundário da Estrada Real. Na prática, seriam uns 10 quilômetros de marcha sem passar por outro carro afora um jipe da polícia florestal.
No descampado da capela de Santa Quitéria, no distrito de Catarina Mendes, haveria uma pausa para reabastecer as barrigas com broas, queijos, empadas, doces caseiros, uma picape carregada de coco e música ao vivo no gramado. Para isso veio especialmente de Ouro Preto o trio Elegante, com direito a viola, acordeão e um repertório do gênero “eu sou o canarinho que cantou no seu terreiro”.
O futuro vem rondando Catarina Mendes. Há três anos, sua capela oitocentista foi assaltada. O ladrão levou sete santos barrocos e quatro castiçais de madeira, deixando um prejuízo de 600 mil reais. Moura Castro recomendou que “os timoratos ou fracos das pernas” ficassem por ali mesmo, o último ponto onde os carros poderiam buscá-los. Adiante, só haveria trilha.
Alguém aproveitou a advertência para espalhar que “a cada aniversário ele perde cinqüenta amigos”. Mas a verdade é que o cortejo só tem aumentado, desde que em 2003 ele inaugurou essa modalidade olímpica de aniversariar no percurso Ouro Branco – Lavras Novas. “Nasci com bicho-carpinteiro”, avisa.
Na adolescência, apostou corrida de lambreta com seriema nos campos de altitude da Serra do Cipó. Seu pai tocava uma siderúrgica em Itabirito e Moura Castro já escalava as montanhas da região antes de saber muito bem o que estava fazendo. Nos anos 60, saindo de um curso de verão em Harvard para o doutorado na Universidade da Califórnia em Berkeley, ele atravessou sozinho mais de 5 mil quilômetros de território americano, da Nova Inglaterra à Califórnia, numa motocicleta Honda Dream de 300 cilindradas que comprara de segunda mão. Condenado a sobreviver com uma bolsa de US$210 por mês, dormia ao relento, em saco de dormir, na beira das estradas.
Diretor da Capes na década de 70, coordenava cursos de pós-graduação e comparecia a reuniões carregando a asadelta, que às vezes amarrava no teto dos carros que iam buscá-lo. Foi o segundo brasileiro a praticar vôo livre, em 1974, no tempo em que as asas se espatifavam a cada pouso. Introduziu o ultraleve em Brasília. No Rio de Janeiro, deu carona ao prefeito Marcos Tamoio num salto da Pedra Bonita, para convencê-lo de uma vez por todas a liberar a praia de São Conrado para aterrissagens. No Banco Mundial, correndo continentes como missionário da reforma educacional, sempre incluiu na bagagem a mochila do parapente. Em Genebra, terminava o expediente com vôos sobre os Alpes.
Moura Castro já andou em parques nacionais desde o Quirguistão até o monte Roraima, passou férias com a família atravessando a França numa chalupa pelo canal do Midi, costeou as geleiras do Alasca em canoas e encarou o inverno do Canadá em trenó puxado por huskies da Groenlândia. Tudo isso consta do livro Cinqüenta anos no limiar do perigo, cuja pior crítica ele ouviu da própria mãe, dona Márcia: “Tem tudo o que o Claudio não devia fazer”.
Há cinco anos, com uma aposentadoria pelo BID e um stent no coração, ele voltou ao Brasil, para presidir o conselho da Faculdade Pitágoras, onde espera que candidatos à administração de empresas leiam os filósofos gregos antes de aprender as leis do mercado. Um mês depois de desempacotar a mudança, em vez de resmungar sobre a eterna crise nacional, estava falando da Serra do Cipó como se nunca tivesse saído de Minas Gerais. “O melhor das caminhadas”, ele discursou no aniversário, encerrando o programa com um rega-bofe em Ouro Preto, “é que nesses lugares a gente nunca encontra um chato”.