Lily tem jóias mais vistosas que as da família do Xá da Pérsia, e elas serão leiloadas na Sotheby's FOTO: YAS-SELMY YASSUDA
Diamante nacional refinado
Lily Marinho descobre, viúva e na quadra dos 80 anos, que sua ligação com o Estado de Tocantins é tão forte quanto seus laços com a Bretanha e com Paris
Danuza Leão | Edição 4, Janeiro 2007
Lily Monique Lemb – já ouviu falar? Provavelmente não. Se algum dia na vida ela tivesse tido uma carteira de trabalho, nela poderia estar escrito, no espaço destinado à profissão: esposa. Esposa, mãe, e, de quebra, gueixa. Lily foi feita para bem servir. E não nega. Ela nasceu na Alemanha, onde seu pai, um oficial britânico, servia temporariamente. Sua mãe e sua criação foram francesas. Ela cresceu num bairro bem burguês de Paris e estava destinada a um casamento convencional, sem mais histórias. Seu pai era severo ao extremo, mas sua mãe, com uma cabeça arejada, fez com que a filha tivesse aulas de piano e de teatro, para ter – quem sabe? – uma vida um pouco mais agitada. Lily, porém, não tinha nada a ver com palcos e, apesar de ter feito pequenos papéis em dois filmes, logo viu que não era por aí. Foi quando surgiu o concurso de Miss Pavillon. Ela tinha 16 anos.
As candidatas desfilaram com vestidos discretos (nada de maiôs) num grande cinema dos Champs-Élysées. Quando Lily entrou, a platéia veio abaixo. Bravo! Bravo! gritavam os embasbacados messieurs. Por motivos fortuitos, ganhou outra moça. Nem tão fortuitos: a mãe da vitoriosa, diziam as famigeradas más línguas, tinha um caso com o cantor Maurice Chevalier.
O resultado provocou tamanho bafafá que os organizadores do concurso foram obrigados a criar um outro título, o de Miss Paris, que Lily ganhou por aclamação.
Foi na condição de Miss Paris que Lily conheceu seu primeiro marido, Horácio Carvalho, um potentado carioca dos anos 30, neto do barão de Amparo. Foi uma paixão grandiloqüente, de ambas as partes. O nababo brasileiro a pediu em casamento no ato. Lily aceitou num impulso. Talvez ela tenha sido empurrada pela lembrança de que, quando tinha dez anos, uma cartomante disse a sua mãe que ela casaria duas vezes, com dois sul-americanos.
Os dois se instalaram num apartamento no Leme, mas não puderam se casar logo porque ela estava sem a certidão de nascimento – só trouxera o passaporte. Lily não falava uma palavra de português, e suas primeiras experiências com a língua foram aprendidas com uma cozinheira baiana. Horácio ficou horrorizado quando, um dia, ela soltou um “Ó xente!” Onde ela tinha aprendido isso? Com a baiana, naturalmente. Os amigos de Horácio logo adoraram a mocinha. Já os seus pais, que esperavam que ele se casasse com uma moça brasileira de família tradicional, demoraram um pouquinho para se render ao charme de Lily. Como o amor é impaciente, quando os documentos dela chegaram ao Brasil, o filho Horacinho já havia nascido. O casamento (civil e religioso) foi celebrado no mesmo dia em que chegaram os documentos dela. Lily Lemb, que ninguém conhece, desapareceu. Surgiu Lily de Carvalho.
Além de rico aos potes, Horácio de Carvalho era um homem bonito, simpático, sedutor, boêmio e, previsivelmente, sensibilíssimo às mulheres bonitas. Era bom de garfo e de copo e gastava dinheiro aos tubos. Para ele, as noites não acabariam nunca. Lembro de um dia em que nos encontramos, em Paris, para almoçar numa brasserie. Findo o repasto, ele me pediu para acompanhá-lo à Place Vendôme, para ajudá-lo a escolher umas jóias para Lily. Em seguida, fomos comprar roupas para ela nas maisons Saint Laurent e Chanel. Lá pelas seis da tarde, ele teve a idéia: “Vamos à Brasserie Lipp para comer um pied de cochon“. Pois fomos e, sem remorso, traçamos um pé de porco estupendo.
Ambos eram ciu-men-té-rri-mos. Horácio via os homens se derretendo em volta dela. Não sem motivo: ela era a mulher mais bonita do Rio. Isso não é uma opinião pessoal. Todos – homens, mulheres, gays, lésbicas, travestis, indecisos, frutas etc., – todos achavam Lily a mais linda da cidade. Moçoilas de pedigree variado, igualmente, arrastavam a asa para Horácio. Às vezes, praticamente se atiravam em cima dele. Ele resistia ao assédio – mas nem tanto, nem sempre, e, o que é pior, com graus variáveis de discrição. Resultado: quando saíam para a noite, Horácio policiava Lily e Lily policiava Horácio. Quem estava perto, percebia o pesado climão policial. Com freqüência, voltavam para casa entretidos em estridentes discussões.
Horácio de Carvalho tinha um jornal importante, o Diário Carioca, e a vida social que levavam era intensa. Cocktails, jantares, festas, shows, esticadas em boates se repetiam alucinadamente. Lily, além da beleza, chamava atenção pelos vestidos – Lanvin, Dior, os mais bonitos que havia – e pelas jóias, de cair o queixo. Horácio também tinha uma mina de ouro, a Morro Velho – que tal?
Como todo dono de jornal, ele era doido por política. No apartamento onde moravam, de frente para o mar, em Copacabana, passavam senadores, ministros, embaixadores, e até presidentes da República. Desses jantares – só de homens, como mandava o machismo de então – Lily não participava. Uma noite, Jango Goulart, na época vice-presidente, foi jantar em seu apartamento. Às três da madrugada, ela acordou. Percebeu que Horácio ainda não tinha se deitado, foi à sala. Encontrou-a numa grande desordem, com copos espalhados, cinzeiros cheios e a porta da entrada escancarada. Lily logo matou a charada. Só podiam estar no Sacha’s, a boate onde se ia terminar a noite. Não teve dúvidas. Telefonou e mandou chamar Jango ao telefone. Como o vice tinha uma vida sentimental, digamos assim, bem movimentada, ele atendeu e ela lhe passou um carão: “Como é que o senhorrrr vem jantarrrr na minha casa e carrrrrega meu marrrrido para uma boite, ainda porrr cima deixando a casa toda aberrrrta?” Jango só fez pedir desculpas – até porque ele era baixinho, atarracado e provinciano, enquanto ela é alta, esguia e até hoje fala com um sotaque francês carregadíssimo.
O casamento com Horácio durou 45 anos e pode ser dividido em duas fases. Os primeiros 25 foram uma mistura de paixão e ciúmes que fizeram Lily sofrer. Essa etapa se encerrou com a morte de Horacinho, num acidente de carro na estrada que o levava à fazenda da família em Maricá, no qual morreu também a cantora Silvinha Telles. Acabaram os ciúmes, e o casal nunca mais saiu de casa para festas e badalações. Foram anos de sofrimento indescritível. Lily se submeteu a todos os tipos de tratamento, no Brasil e na Suíça, na tentativa de engravidar. Não conseguiu. Um dia chegou a perguntar a Horácio se ele não teria, talvez, nalguma aventura fora do casamento, tido um filho. Se tivesse, ela tentaria adotá-lo e criaria como se fosse dela. Horacio não tivera filhos fora do casamento.
O casal decidiu adotar uma criança. Assim, o menino João Baptista ganhou o sobrenome Carvalho. A saúde de Horácio começou a declinar, e Lily se dedicou inteiramente a ele e ao filho, como nem Florence Nightingale faria. (João Baptista nasceu com problemas de saúde e não é autônomo). Foi uma dedicação de 24 horas por dia, durante anos a fio. Além de cuidar dos dois, ela evitava qualquer coisa que aborrecesse Horácio, fosse o que fosse. Resolvia o que podia e guardava os aborrecimentos com ela, para poupá-lo.
Por ter sido namorada de Horacinho, fiquei íntima de Lily. Quando Horácio morreu, Manuel, que era o braço-direito da casa, me ligou de manhã para dar a notícia. Corri para lá e Horácio ainda estava na cama, de pijama. Lily, com um macacão verde e branco, andava pelo quarto e batia com a cabeça na parede, fora de si; uma desolação. Foi preciso abrir seus armários, para encontrar meias, sapatos, um vestido preto; levei-a para o banheiro e vesti-a, como se faz com uma criança. Começaram a chegar os amigos mais íntimos, e o velório foi no próprio apartamento. Na manhã seguinte, antes do enterro, a sala começou a se encher. A primeira pessoa que entrou foi Roberto Marinho, o dono da Globo.
Mais uma vez, foram tempos difíceis. Lily, com a ajuda de Délio Matos, seu advogado da vida inteira, se inteirou dos negócios de Horácio e se ocupou das fazendas, que eram muitas. Algumas eram de gado, em outras se plantava arroz, em outras café. Duas, três vezes por semana, ia visitá-las, e era como se tivesse nascido fazendo aquilo. Perdeu toda a vaidade: estava sempre de calças compridas, camisa simples, não ia ao cabeleireiro e nem as unhas pintava.
Quem a ajudava era João Baptista. Para Lily, é mais fácil viver tendo alguém de quem cuidar.
Devagarzinho, recuperou a alegria de viver; começou a sair, a receber amigos, e até a viajar – ela que tinha (e tem) pavor de avião. Um dia, foi convidada por Lily Safra (proprietária da rede de varejo Ponto Frio, casada então com Edmond Safra, dono do banco com seu sobrenome) para um jantar em seu apartamento em Genebra, na Suíça, em benefício do WWF, o World Wildlife Fund. Segundo Lily, foi o jantar mais lindo a que compareceu, onde só de flores foram gastos US$ 50 mil. O convidado de honra era o príncipe Philip, do Reino Unido, que tinha à sua direita a filha do rei da Dinamarca e, à esquerda, Lily Carvalho. Ela foi para a mesa, pensando: mas o que é que eu vou falar com ele? Começou por perguntar como devia chamá-lo. O príncipe, que fala um francês impecável, disse logo Philip, bien sûr, e ainda acrescentou “e não me chame de vous, me chame de tu“, coisa que ela não fez, naturalmente, pois nunca tinha visto o príncipe mais gordo. Papo vai, papo vem, Lily contou que existia no Rio uma feira clandestina de aves, e que todos os sábados ia lá, comprava todos os pássaros, levava para a fazenda e os soltava. O príncipe, ambientalista convicto, ficou encantado com a história. Tempos depois, ela recebeu um cartão, agradecendo pela companhia no jantar, e assinado – contrariando todos os protocolos – apenas Philip. Detalhe: há quem diga que Lily jamais foi vista na tal feira de pássaros, mas isso, convenhamos, é apenas um detalhe.
Nesses tempos de viuvez, Lily teve vários admiradores, para não dizer apaixonados, mas não se encantou com nenhum deles. Nunca mais se casaria, havia decidido. Um dos galantes, um mago das finanças, passou a aparecer todas as tardes na sua casa. Fez-lhe um pedido de casamento algo canhestro, mais afirmando que indagando: “Seria bom se a gente se casasse”. O pedido, tão pouco romântico, teve uma resposta evasiva a ponto de não se constituir numa negativa. Estávamos num restaurante com amigos. Um deles lhe perguntou, na lata: “Ele queria te comer?” “Mas clárrooo!, respondeu ela, na bucha.
Uma vez, quando João Baptista a atazanava a propósito de algo, ela disse ao filho que voltaria a se casar. “Com o Roberto Marinho?”, o jovem perguntou. Lily, que jamais havia falado no empresário, ficou encafifada. O roamence terminou por se materializar, e está relatado, com fortes tinturas românticas, em Roberto e Lily, livro no qual ela conta que, quando eles se reencontraram, o empresário lembrou da primeira vez em que a viu, quatro décadas antes, e descreveu como ela estava vestida, coisa que toda mulher adora ouvir. (Foi tão importante para Lily esse livro, que ela visitou mais de cinqüenta cidades do Brasil para lançá-lo.)
A paixão de Roberto Marinho foi eloqüente como um carro de bombeiros a caminho de um grande incêndio. Num outro jantar (ele ainda casado), dessa vez em casa dela, havia quatro mesas redondas. Nosso companheiro foi ver no placement onde era o seu lugar e constatou que não estavam na mesma mesa. Como a sala de jantar tinha dois espelhos nas paredes, ele discretamente trocou o cartão que indicava o seu lugar por um outro, de onde poderia, pelo espelho, vê-la o tempo todo – e não fez outra coisa durante toda a noite. Noutra ocasião, numa cerimônia na Academia Brasileira de Letras, o lugar onde Lily costumava se sentar, na primeira fila (os acadêmicos ficavam todos juntos, numa mesa), estava ocupado, pois o casal chegou atrasado. Roberto Marinho pegou Lily pela mão e levou-a para sentar na mesa dos acadêmicos, quebrando todos os protocolos da casa de Machado de Assis. Ninguém ousou abrir o bico para dizer que não podia.
Concluído o divórcio do empresário, ela se mudou para a casa no Cosme Velho. Virou, finalmente, Lily Marinho, o nome pelo qual é conhecida. O que faria qualquer mulher nessa situação, até para se sentir mais segura? Levaria todo seu staff de empregados: Manuel, que já estava com ela há 40 anos, a cozinheira, a arrumadeira, todos, enfim, acostumados à sua maneira de viver. Qualquer uma, menos Lily. Ela chegou sozinha, com suas malas, sabendo que ia enfrentar um exército de empregados que estavam habituados a servir à administração anterior, ao que ela batizou de Segundo Império. Lily não precisou fazer nenhum esforço para marcar território. Não demorou muito para que todos estivessem rendidos. Se ela havia conquistado um dos homens mais poderosos do Brasil, como não haveria de conquistar todos que trabalhavam para ele?
Aos poucos, a casa foi modificada. Apesar de ser uma das mais lindas do Rio, com seus preciosos móveis, quadros e esculturas, ela não humilha ninguém. Para chegar à entrada da mansão rosada, é preciso contornar uma fonte. Na entrada, há um enorme arcaz, de uns quatro metros. Na sala principal, contempla-se uma imensa tapeçaria de Lurçat, um enorme Portinari e mais uns seis menores, vários Di Cavalcanti, vários Pancetti, santos barrocos, quatro candelabros de prata com quatro velas cada, uma sopeira de prata no meio em cima da mesa da sala de jantar. Numa espécie de jardim-de- inverno ao lado, um enorme e precioso pato, da Cia. das Índias, e um – va-lio-sí-ssi-mo – cavalo etrusco do século VIII a.C. Tem também um cavalo chinês, da época Tang, mas esse é jovem: é do século VI d.C.
Em cima do piano, fotos, fotos à beça de Roberto Marinho ao lado de gente famosa. Do presidente Bush, do general Eisenhower, da rainha da Dinamarca, do príncipe Philip, de Fernando Henrique Cardoso, e também fotos de família. Tudo é arrumado com tal harmonia, com tal discrição, que só um repórter bisbilhoteiro para notar as preciosidades. O único ruído que se ouve na casa é o do rio da Carioca, que cruza o jardim, cheio de carpas brancas e vermelhas, enormes, e, em alguns momentos, o pio de duas lindas cacatuas, cor-de-rosa com o penacho cinza. No fundo do jardim, os flamingos rosa-e-branco, presente de Fidel Castro ao casal.
Foram anos de intensa felicidade (inclusive no aspecto erótico). Tirando as aflições de quando iam passear de helicóptero e ela ficava com o coração na mão (mas um grande sorriso nos lábios), o casamento foi de uma felicidade total. Na casa do Cosme Velho passaram reis, rainhas, presidentes da República, daqui e de muitos outros países; Lily sempre sorridente, e Roberto Marinho encantado com a felicidade que lhe havia chegado, aos 84 anos.
Ambos eram, para variar, muito ciumentos. Em algumas conversas mais íntimas, dessas que ocorrem entre os casais, Roberto Marinho deixava às vezes escapar o nome de alguma mulher que havia passado por sua vida. Lily um dia resolveu cortar para sempre esse assunto, dizendo que ter tido qualquer coisa com essas mulheres ficava muito mal para ele. Ele também não deixava por menos. O retrato de Lily, feito pelo pintor Van Dongen, não lhe agradava, e acabou saindo da sala e colocado no segundo andar, discretamente. Aos poucos, sutilmente, ele fez Lily perceber que não lhe agradava que ela usasse as jóias que haviam sido presente de Horácio. Esse seria um imenso sacrifício para qualquer mulher, pois as jóias eram maravilhosas, mas para Lily, nenhum problema. Roberto, gentilmente, foi substituindo as antigas por outras novas, tão lindas quanto. Ela adora as suas jóias, claro. Mas as encara sem maiores dramas. Um dia em casa, distraidamente, ela levantou a tampa de uma sopeira (Cia. das Índias, óbvio) e disse: “Ah, que bom, encontrei meus brincos; uma noite eles estavam me apertando, eu botei aqui e me esqueci”. Os brincos, de brilhante, estão avaliados em US$ 800,000.
Outro traço curioso de Lily é a, para cunhar uma expressão, generosidade desmemoriada. Ela ajudou (e ajuda) muitas pessoas, mas esquece. Pois uma pessoa se aproximou dela e agradeceu-lhe a casa que lhe tinha dado de presente, dizendo que não sabia o que seria da sua vida sem essa ajuda. Lily não lembrou. E para ver se lembrava, começou a perguntar “mas onde é a casa mesmo?” Todas as suas compras, mesmo as que envolvem grandes somas, são pagas em dinheiro, cash. Para ela, só assim a transação está realmente sendo feita. Tem horror a talões de cheques e cartões de crédito, que não usa. Só acredita em dinheiro vivo.
Ela tem horror a fazer discursos. No primeiro que teve de fazer, em Brasília, numa homenagem a Roberto Marinho pouco depois de sua morte, pensou que fosse desmaiar. Num teatro com 3 mil pessoas, inibida e emocionada, ela teve vontade de chorar, mas sabia que não podia. Então inventou um método seu, personalíssimo: enquanto lia, pensava em coisas rigorosamente impublicáveis, e assim foi, até o final. Continua usando sempre o mesmo truque,o de imaginar coisas para lá de pecaminosas, sempre que fala em público e está emocionada.
Lily é de uma inacreditável simplicidade. Nas vezes em que recebeu a Legião de Honra da França, lhe veio o pensamento: “Ah, se mamãe estivesse aqui para me ver”. As três condecorações, nos graus de chevalier, comissaire e finalmente commandeur, lhe foram outorgadas não por ser mulher de Roberto Marinho, e sim pelo papel que ela teve na organização das exposições de Rodin, Monet, Bourdelle, Picasso e Camille Claudel no Brasil. Só falta ganhar a Cruz de Guerra; quem sabe, um dia? No dia em que foi tomar chá no Palácio de Buckingham com a rainha da Inglaterra, lembrou do pai, inglês, e também pensou: “Ah, se papai estivesse aqui para me ver”.
Com os amigos, ela é de uma franqueza desconcertante. Não deixa de responder a uma só pergunta, por mais embaraçosa que seja, e mais: nunca mente. Quer dizer: há pouco, num jantar num restaurante chinês na Lagoa, ela nos garantiu que não bebia. O curioso é que ela sorvia o seu segundo copo de caipirinha de lichia. Um mês depois, num outro jantar, num italiano em Ipanema, quando lhe notei a contradição, ela repetiu que não bebia. E contou que, dias antes, em São Paulo, havia feito um concurso com Hebe Camargo: quem conseguiria beber mais vodca. “Ganhei eu, que tomei oito doses”, comemorou Lily. Ela terminou a noite tomando Pernod.
Nesse jantar, perguntaram-lhe se ela fora viciada em jogo. Ela contou que seu filho Horacinho era apaixonado por corridas de cavalo, e ela se apaixonou também. Jogava, e botava as jóias no prego, se fosse preciso, para pagar as contas do filho, e as suas também, coisa de que nunca se arrependeu. Parou completamente de jogar, da noite para o dia. Muito mais tarde, começou a comprar cavalos manga-larga. Levou a criação a sério. A ponto de ter recebido uma proposta de Olavo Monteiro de Carvalho, que era criador. Ele queria comprar um lote de dois garanhões e éguas dela. O lote lhe havia custado R$ 20.000; ela venderia, sim, e sem pestanejar disse o preço: US$ 600,000. Olavo propôs pagar em três vezes, e ela aceitou. Isso mesmo: comprou por 20 mil reais e vendeu por 600 mil dólares. E olha que Olavinho não é de rasgar dinheiro.
Depois de catorze anos de vida social, política e cultural frenética, Lily sai menos. Está mais voltada para a família e para os amigos (a começar por d. Fátima e d. Pedro de Orleans e Bragança), e menos para a grã-finagem. Recebe os netos para jantar duas vezes por semana, no fim do ano faz uma festa de Natal para todos eles (ela considera os de Roberto Marinho seus também) e ainda os sete bisnetos dele. Não freqüenta mais grandes acontecimentos sociais, mas está sempre pronta para qualquer homenagem a. Roberto Marinho, mesmo que seja numa pequena prefeitura de uma pequena cidade do interior. Ultimamente, encantou-se com o estado do Tocantins. Foi lá diversas vezes, dá-se com os políticos locais, e até emprestou a sua coleção de telas para uma exposição oficial em Palmas, a capital.
Por outro lado, ela raramente vai a Paris. Numa viagem à França, aliás, descobriu-se irremediavelmente brasileira (apesar do sotaque). Ela voltou à Bretanha, o departamento francês que mais amava, pouco depois da morte de Roberto Marinho.Viajou com o filho predileto dele, João Roberto, a mulher, Gisela, e a mãe de Gisela. “A viagem foi ótima pela companhia, pelo que vimos, pela descontração, pelo afeto demonstrado pelo João”, ela conta. “Mas não me reconheci na Bretanha, não era mais o país selvagem do qual tinha lembranças tão nítidas.”
Outra viagem marcante foi a do 4 de julho de 2004, o ano do Brasil na França. A pedido dos governos brasileiro e francês, ela organizou uma soirée de gala, beneficente, no Palácio de Versalhes. Na hora agá, Marisa Lula da Silva (cujo marido vinha de levar a denúncia do mensalão pela proa) e Bernadette Chirac cancelaram a presença. A festa minguou tanto que as maiores autoridades presentes eram, vejam só, Tasso Jereissati e Luiz Paulo Conde. Lily foi em frente, e vestiu sua maravilhosa saia de Oscar de La Renta – acho que nunca vi nenhuma mais linda na vida -, que ela usou com uma blusinha simples, era toda de babados. Babados pequenos, de uns cinco centímetros, e a saia imensa, daquelas do século retrasado. Lily mandou passar a saia no hotel em que estava, e a passadeira passou cada um dos babados como se eles fossem plissados – e eles não eram. Catástrofe total, a lavanderia do hotel já fechada, como resolver o problema? Pois quem foi em seu socorro foi a princesa d. Fátima, que pegou um ferro e passou todos os babados da saia (uns 5 mil), tirando o plissado, até que ela ficasse como era, originalmente. Isso é que é ser amiga.
Três dias depois da festa em Versalhes, Lily tomou champanhe com amigos no café Flore, em Saint-Germain. Chegou, poderosíssima, numa Bentley prateada, com chofer a caráter. Depois do aperitivo, jantou em frente, na Brasserie Lipp. Com bom humor, fez ver aos amigos, que elogiavam a festa, que, por ser realista, sabia muito bem que, sem Roberto Marinho, o seu poder de atração sobre o grand monde era restrito. Mas não se importava com isso. O froufrou, na sua vida atual, é supérfluo e dispensável.
Realismo – por detrás das camadas de afeto, generosidade, amor, elegância -, talvez a palavra que melhor defina Lily seja realismo. O seu realismo não se confunde com o conformismo, e, muito menos, com o pessimismo. Ela sempre tirou da vida o que ela lhe ofereceu de melhor. E, nas horas de sofrimento, enfrentou a barra. Hoje, ela avalia, está numa boa fase. Sua relação com os três filhos, as noras e netos de Roberto Marinho é excelente. Eles lhe pagam todas as contas, inclusive as das duas fazendas que conservou, no Estado do Rio, onde tem 23 empregados. “Já o lucro das fazendas, quando vendo algumas cabeças de gado, fica comigo, é o melhor dos mundos”, diz ela. Dá-se bem também com os netos, os quatro filhos de João Baptista, com mulheres diferentes.
Ela esteve recentemente no médico, um clínico-geral de quem é amiga. Perguntou-lhe quanto tempo ainda duraria, e se antecipou à resposta avaliando que tem uns “quatro ou cinco anos” com boa saúde. Para usar a frase de Roberto Marinho, ela já está com tudo absolutamente organizado “se um dia ela vier a faltar” (Lily tem 85 anos). Um trust vai se ocupar do que ela deixar, administrando para que nada falte, nunca, ao filho e aos netos. Tudo que possui está devidamente catalogado, fotografado e segurado, para que nada desapareça. Além disso, ela pretende fazer um leilão fora do Brasil, na Sotheby’s, de todas as suas jóias, que não são poucas mas que ela não usa mais. Hoje em dia, não mais do que duas pérolas nas orelhas, duas alianças, a dela e a de Roberto Marinho, e o relógio que ele usava e que não sai do seu pulso.
A casa do Cosme Velho continua a funcionar maravilhosamente. O braço-direito dela é o mordomo, Edgard, que está sempre pronto a responder a qualquer pergunta. Em que ano mesmo foi a exposição Rodin? Ele sabe. Como era o nome daquele amigo do Roberto de quem eu não gostava muito? Edgard sabe. O que foi mesmo que servimos no jantar para Fidel Castro? Ele sabe. Edgard tem tudo na ponta da língua. Em dezembro, quando Lily teve de se internar para cuidar de uma perna quebrada, foi Edgard quem tocou a mansão.
Numa tarde, no mês passado, Lily me guiou num pequeno tour pelo segundo andar. Ela preveniu: “É uma desordem total, mas vamos assim mesmo”. Foi modesta: a desordem é muito maior do que qualquer pessoa possa imaginar. Na sala de cinema, para umas cinqüenta pessoas, quase todas as cadeiras estão ocupadas por revistas, livros, jornais, caixas, pacotes, e sei lá mais o quê.
Seu closet não é um closet, mas um grande quarto cheio de araras – umas quarenta? cinqüenta? – repletas de vestidos. É o maior cômodo da casa. Fica no lugar onde estava a pinacoteca do marido, transferida para a Fundação Roberto Marinho. Em cada uma das araras há montes de roupas, sem nem um centímetro de espaço entre um vestido e outro. Dá para sentir uma relativa ordem na arrumação, mas nada de muito organizado. Os tailleurs coloridos em uma, os vestidos pretos em outra (outras), os longos separados, os muitos Guccis, que ela ainda não usou, todos juntos. Existe uma arara só de blusas, outras duas para calças. A quantidade de itens é tamanha que, para ver tudo e ter uma noção mais exata do guarda-roupa, precisaria passar outras tardes, olhando arara por arara. Lily aponta alguns que ela lembra que usou em ocasiões especiais, mas tem sempre que olhar a etiqueta para lembrar em que maison comprou. Há os Armani, os Dior, os St. Laurent, os Chanel às dúzias. Há um pelo qual ela tem um carinho especial. É um Givenchy maravilhoso, num estampado gigantesco, bem colorido, que ela ganhou numa tômbola de caridade, em Paris. Como se vê, até os muito ricos adoram ganhar um sorteio.
Sua lingerie é guardada em armários especiais, com circulação de ar no inverno e aquecimento no verão. Um alfaiate exclusivo se encarrega dos consertos, reformas e de tudo o que precisa ir para o tintureiro. Há uma lavadeira e uma passadeira, mas a única pessoa autorizada a tocar nas roupas de Lily é a arrumadeira Cristina – seja para lavar as peças mais finas, seja para repassá-las. No seu antigo banheiro há uns trinta pares de sapato à mostra. São os que ela usa com maior freqüência. Num armário fechado, estão os que ela calça de quando em quando. Deve haver uns 3 mil pares. Duvido que a Daslu, em seus bons tempos, tivesse em estoque a quantidade de vestidos que Lily tem. Nem em quantidade, nem em qualidade, nem em bom gosto.
Passamos por um quarto razoavelmente normal, onde ela dorme com seu neto Anthony, de oito anos, quando ele vai visitá-la. Chegamos a seu antigo quarto, e, sabe quando a gente vai viajar e vai separando as roupas que pretende levar em cima da cama, das poltronas? Pois é. A cama coberta de pilhas de calças compridas, de camisas, de suéteres, de bolsas, de cintos, de meias, de lingerie, uma verdadeira loucura. Fora os livros não lidos, os jornais não lidos, as caixas abertas, os embrulhos, um pandemônio que só ela entende.
Desde a morte do marido, ela se mudou para o quarto dele. A cama é de casal, naturalmente, mas Lily dorme numa beirada, pois a outra metade está coberta de mais jornais, mais livros, mais revistas, mais pilhas, altíssimas, de coisas que ela não leu e provavelmente não lerá jamais, mas que guarda. Nas poltronas e no sofá do quarto, a mesma coisa. Se eu tivesse um desmaio, o único lugar em que poderia cair seria no cantinho em que Lily dorme, pois todo o resto está ocupado. (Lembro de um dia, numa outra ocasião, em que Lily ia me emprestar um casaco de peles para uma viagem. Fomos para o armário das peles, ela disse para escolher os que eu quisesse, e quando segurou um deles, ele se desfez em pó. Há anos ela não abria o tal armário, e o casaco se acabou. Uma pena, porque era lindo.)
Ela passou a usar também o banheiro de Roberto Marinho, e continuam em seus lugares seu robe de toalha, sua escova de dentes, seus cremes de barbear, o pincel, tudo exatamente como ele deixou. O mais incrível é que essa desordem é organizadíssima. A qualquer momento ela chama a arrumadeira e pede para trazer aquele suéter de listinhas que está na segunda gaveta do armário, ou pede a Edgard que pegue uma foto que está no antigo quarto dela, em preto-e-branco, da exposição Rodin, e tudo se materializa. Volta e meia dá de presente peças lindíssimas que sabe que não vai mais usar, para as amigas que têm a sorte de ter o mesmo corpo que ela. Aliás, se usasse três daqueles vestidos por dia, sem repetir, levaria uns vinte ou trinta anos, para usar todos.
Quando uma mulher muito rica chega numa cidade como Paris, ela nunca entra numa joalheria. Telefona, chama seu vendedor habitual, da Boucheron, digamos, e pede que ele leve a seu hotel o que tiver de mais novo e mais bonito. Ele chega com malas e malas de estojos, com o que há de mais bonito no mundo – é, no mundo – e ela vai escolhendo as peças de que gosta mais. Numa de suas antigas viagens, quando o vendedor chegou, Lily olhou, olhou, e disse, tranqüilamente: “Eu só gosto de pedras grandes”. No dia seguinte, outra visita, com vários jogos de brilhantes, esmeraldas, safiras, coral peau d’ange (aquele rosa bem clarinho), sendo que cada conjunto vinha com o colar, pulseira, anel, e três ou quatro pares de brincos, para poder variar à vontade. Aí ela pôde escolher o que mais lhe agradava.
As jóias de Lily requerem a abertura de um parágrafo, para tomar fôlego. Sou das poucas pessoas que as viu, no lugar seguríssimo onde estão guardadas. Vi esmeraldas do tamanho de um ovo cortado ao meio. Vi brilhantes que parecem botões de um blazer. Vi águas-marinhas rodeadas de diamantes. Vi algumas que chegam a parecer as jóias descomunais que Clovis Bornay usava no Carnaval. Com a diferença, como diria Orson Welles, que é tudo verdade. Verdade porque, refletido nas peças, se entrevê o amor que Horácio de Carvalho e Roberto Marinho tiveram por Lily, a riqueza deles, o poder deles, a influência deles, e o poder que ela teve sobre eles.
Há muitos anos tive ocasião de dar uma olhada, no cofre-forte de um banco em Teerã, nas jóias da família do xá da Pérsia. Juro: as de Lily não deixam nada a desejar, sendo que algumas são, francamente, mais bonitas, e de maior porte. Algumas ela nunca usou. Por quê?! Porque talvez não tenha tido tempo, ocasião, porque talvez seja preciso, tal como os vestidos, usar umas três por dia, durante anos, para poder usar todas.
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