ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2007
Tem tupinambá no piauí
A Unidos de Lucas reescreve a história do estado
Roberto Kaz | Edição 16, Janeiro 2008
Eram seis e meia da tarde de uma segunda-feira recente quando o advogado Leonardo do Egito Carvalho, de 42 anos, deixou seu escritório no centro do Rio. De terno preto e camisa cáqui aberta no peito, foi na direção da sede do Cordão do Bola Preta, o mais antigo bloco de Carnaval carioca. Estava prestes a presenciar um momento único da diplomacia interestadual brasileira. Dali a poucas horas, a escola de samba Unidos de Lucas, do grupo B, apresentaria seu enredo para 2008: Piauí, Filho do Sol do Equador. Teresina, Terra do Sonho e do Amor.
Carvalho é carioca, mas, como seus avós, pais e quatro irmãos nasceram em Teresina, considera-se piauiense de coração. Seu escritório abriga a sede da Casa do Piauí, associação criada em 1999 para, segundo o estatuto social, “pugnar pela grandeza do Piauí e bem-estar do seu povo, lutando pelo progresso, desenvolvimento e prestígio dos piauienses no estado do Rio de Janeiro”.
Por volta das 7 horas, Carvalho e cerca de vinte membros da Casa do Piauí chegaram ao Bola Preta. Juntaram algumas mesas, sobre as quais puseram mapas do estado, fotos do Delta do Parnaíba e livros de conterrâneos ilustres, como Torquato Neto e Evandro Lins e Silva. O acervo exibia ainda outras três peças bibliográficas: a Grande Enciclopédia Internacional do Piauiês, de Paulo José Cunha, Teresina Vista do Céu, de Robert Meneses, e A Guerra do Jenipapo – A Independência do Piauí, de Francisco Castro. A culinária também foi lembrada. O grupo levou vinte garrafas de cajuína, cinco de cachaça Mangueira, uma caixinha de doce de buriti e 8 quilos de maria-isabel, mistura de arroz com carne-de-sol, fino exemplo da gastronomia piauiense. Para zelar pelo bom encaminhamento da noite, Carvalho providenciou uma pequena escultura do Cabeça-de-Cuia, figura máxima do folclore do Piauí. (Esclarecimento regionalista: Cabeça-de-Cuia é a alcunha de Crispim, um rapazote que, desgostoso com a sopa rala que a mãe acabara de lhe servir, matou a genitora arremessando-lhe um osso na testa.)
Quando o relógio marcou 9 horas, a Unidos de Lucas subiu no palco. Enquanto a velha guarda arriscava os primeiros compassos, o vice-presidente, José Luís Davalle, o Zequinha, exaltava, em tom heróico, a coragem da escolha do tema: “Até pouco tempo atrás, o Brasil não acreditaria que uma escola de samba pudesse desfilar com um samba-enredo sobre o Piauí. Este ano, somos uma das poucas escolas que não se submeteram à regra de falar sobre a família real. E estamos pagando um preço: não ganhamos subvenção da prefeitura”.
Com a bateria no ponto, o puxador Edmilton de Bem disparou o grito de guerra: “A Unidos de Lucas será eternamente a raiz do samba. Alô, comunidade, vamos chegando, a hora é essa!” O tamborim marcou a puxada, o cavaquinho acompanhou o refrão: “Obrigado, Piauí, lindo tema!/ Lucas conta sua história em poema”. Ouviu-se, então, a primeira parte da letra:
Piauí da nobre Teresina,
Sob o sol, que esplendor,
Sua história que fascina,
Um lindo sonho de amor,
Os negros traços de Luzia, Agô.
Seus encantos e magias,
Rica herança ancestral,
Cidades de pedra, fauna e flora,
A natureza em cartão-postal,
Neste paraíso tropical.
Depois desse breve aquecimento, o samba foi interrompido para que o palco recebesse o convidado especial da noite, o compositor e deputado federal Frank Aguiar, do PTB paulista, oriundo de Itainópolis, município ao sul de Teresina. Aguiar trocou afagos com os dirigentes e, para gáudio do público, declarou: “Eu agora estou vendo como o Piauí é querido em outros estados do Brasil”. Foi o suficiente para que a bateria retomasse o samba, embalada pelo segundo refrão: “Contam tabajaras e tupinambás,/ Os tupis vieram de além-mar”. Ao som desses versos, Leonardo do Egito Carvalho passou a distribuir a edição extraordinária do jornal publicado pela Casa do Piauí. Era um manifesto algo duro: “Como terra que tem o samba na raiz, o Piauí trouxe à Unidos de Lucas inspiração de um samba com forte melodia, embora estivessem ausentes alguns elementos fundamentais da cultura e identidade piauiense. Se a comunicação estivesse afiada entre os estados, a base que inspirou os artistas estaria mais fundamentada”.
Como a comunicação continuava desafinada, passistas entraram em cena para desfilar fantasias de índio, cangaceiro, bumba-meu-boi e biodiesel. O pessoal da Casa ergueu uma sobrancelha coletiva. O puxador seguiu em frente:
Chegaram os bandeirantes,
Fizeram a colonização,
Jesuítas aos índios ensinaram
Trabalho e religião.
Carvalho olhava para tudo e todos com ar de desalento: “O samba-enredo é ruim. Não falou da lenda do Cabeça-de-Cuia, das pedras de opala, da cajuína, da Guerra do Jenipapo. Também não fez menção ao Torquato Neto. Puxa… Em vez disso, foram falar de bandeirantes e tupinambás. Desde quando o Piauí é terra de tupinambá?” Pegou os livros que havia trazido – talvez na esperança de demonstrar por a + b as impropriedades históricas do samba – , guardou-os numa sacola e suspirou: “A crítica deve ser atenuada. Conseguimos reunir vários conterrâneos. Só o fato do Piauí ser citado já é um começo”.
Aos que quisessem mais informação, o dr. Adelson Roberto de Meneses, diretor jurídico da escola, explicava: “A idéia era fazer uma homenagem a um estado, cidade ou pessoa. Como um membro da escola conhecia gente da Secretaria de Turismo do Piauí, achamos que o tema poderia acabar rendendo uma ajuda financeira. Mas o contato dele com o estado, como se vê pela letra, não era muito próximo”.