ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2007
Barbatanas e pé de golas
Por que Lula não se arrisca a sair de casa sem o seu potente
Daniela Pinheiro | Edição 5, Fevereiro 2007
“O presidente é do tipo atarracado”, diz Maria. “E tinha a questão do pescoço”, observa Dôra.
Elas sabem do que estão falando. Em nove anos, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva acumulou 150 camisas feitas no pequeno ateliê da dupla no bairro da Graça, em Salvador. Elas também abastecem o senador Antonio Carlos Magalhães, o vice-presidente José Alencar, o empreiteiro Norberto Odebrecht e o ex-embaixador Paulo Tarso Flecha de Lima. São delas as camisas usadas pelo presidente nas duas posses. Também as dos programas eleitorais, as dos fins de semana no Alvorada e as das fotos com autoridades estrangeiras. A primeira peça é de 1997. Foi presente de Maria de Fátima Mendonça, mulher do governador da Bahia, Jaques Wagner.
A fidelidade de Lula às peças da camisaria Ernesto di Tomaso se deu porque a “questão do pescoço” pareceu finalmente resolvida. Ali, inventou-se para ele um tipo de colarinho capaz de disfarçar a nuca escassa: gola mais aberta que a inglesa, altura mais curta que o normal, tudo emoldurado em 44 centímetros de circunferência. Traduzindo: colarinho de altura baixa com os bicos da gola mais para fora. Foi batizado de “potente”. Por que razão, nem elas sabem dizer. “Com esse tipo de colarinho, a silhueta e o rosto se alongam”, explica Maria. “O caso não é a grossura do pescoço, é a distância pequena entre a cabeça e o tronco.” A maioria das camisas é de cores neutras, como o azul e o branco. Sem bolso, e nada de monograma bordado. Algumas têm estampas discretas – quadradinhos quase imperceptíveis – e nenhuma jamais tem listas avantajadas, ou excessivamente contrastantes, para não engordar a silhueta presidencial. “Arrisco dizer que 100% do que ele usa em público é nosso”, diz Maria.
Há dezessete anos, a baiana Maria Silva Santos, ex-modista da loja, assumiu o negócio, depois que o fundador, o italiano Ernesto di Tomaso, voltou para o país natal. Aos 56 anos (aparentando dez a menos), magra, mulata, mecha branca no encorpado cabelo preto, ela é o braço que entende de costura. Fala em “pé de gola”, “barbatana” e “bico de colarinho” como se todo mundo entendesse. Para os ignorantes, saca o livro Chic, da jornalista Glória Kalil, e aponta ali uma fotografia: “Isso é punho duplo, entendeu?”. A parte comercial e, digamos, de marketing, fica a cargo de Dôra, a mineira Maria Auxiliadora Junqueira, 39 anos, sócia desde 1995, quando se mudou com o marido para a cidade. Alta, loira e com um tom de voz professoral, foi dela a iniciativa de vender cuecas, meias e gravatas de grifes estrangeiras (expostas na vitrine da loja). Também quer montar um site para poder aceitar encomendas Brasil afora. É o modo de trazer a confecção para o século XXI.
Espremida entre uma lavanderia e uma loja de frutos do mar congelados, a Di Tomaso prospera. São quase 2 mil clientes cadastrados e a loja vive lotada. O staff é reduzido – treze costureiras que produzem cerca de 280 camisas por mês. Os preços são um grande atrativo. Cada camisa custa, em média, 185 reais, valor bem abaixo do cobrado pelas grandes grifes. Uma camisa social do estilista Ricardo Almeida, que faz os ternos presidenciais, sai por 600 reais. Como ensinam os bacanas, na Di Tomaso todas as peças são de algodão puro. As mais chiques, por 250 reais, são feitas de algodão de fio egípcio – amarrotam pouco e são confortáveis mesmo sob calor baiano. No entanto, a estrela da casa é, sem dúvida, o colarinho firme, elegante e moldado ao corpo de cada cliente.
Como Lula jamais provou uma peça, as primeiras levas foram produzidas com medidas pouco precisas. Foi Maria quem reparou, ao ver uma foto do presidente numa revista. A manga, comprida demais, embolava dentro do terno, o tórax apertava. Só o colarinho estava bom. A essa altura, as encomendas já vinham direto do Palácio do Planalto. Os pedidos eram feitos por Mônica, secretária particular do presidente, e Nazaré, sua estilista na época; elas escolhiam o tecido de acordo com as amostras enviadas pela confecção. Todas as camisas foram pagas, garantem as proprietárias. Diz Dôra: “Recebemos sempre um depósito em conta. Não sei quem põe, mas é pago. Temos todos os recibos”.
No ano passado, Maria foi chamada a Brasília durante a campanha da reeleição, com hotel, refeições e transporte pagos pela Presidência. Lula deixara de se sentir elegante: faltava qualquer coisa, o caimento não estava a gosto. Maria precisava medir pessoalmente seu cliente mais famoso. “Ele havia emagrecido e tinha mudado muito de corpo”, ela diz. Chegou na véspera e aproveitou a viagem para se encontrar com o marqueteiro João Santana, que queria um colarinho idêntico ao de Lula (“Mas o corpo é muito diferente. É difícil explicar isso para as pessoas”). No dia seguinte, amanheceu no estúdio onde eram gravados os programas eleitorais e esquadrinhou o presidente do quadril para cima. A mudança mais visível era a do tal do colarinho. De 46 para 44. Durante efêmeros quinze minutos, Maria encheu a camisa do presidente de alfinetes. Não o espetou nenhuma vez. Três dias depois, Lula receberia em mãos (via Sedex) a camisa perfeita.
Muitas vezes, foi preciso aprontá-las em menos de 24 horas. Como na ocasião em que ele recebeu de presente do presidente da Venezuela, Hugo Chávez, cortes de tecido nas cores branca, azul e amarela. “Era um tipo muito estranho de pano, duro, parecendo uma trama”, diz Dôra. Lula queria estrear o presente enquanto Chávez ainda estivesse no Brasil. As fazendas viajaram de Brasília para Salvador e voltaram às mãos dele já no dia seguinte. A foto dos dois presidentes abraçados, Lula com a versão amarela, foi estampada em todos os jornais. Para o guarda-roupa verão 2007, ainda não houve encomendas.
As peças da Di Tomaso se tornaram o presente preferido de quem quer agradar a certos políticos. ACM (colarinho 42) diz que não as compra há mais de três anos. Só ganha. “No Natal, chego a receber umas 25. Várias repetidas. Tenho que mandar trocar”, conta. O deputado Paulo Magalhães, do PFL baiano e sobrinho do senador, encomendou pessoalmente as mais de vinte com que já presenteou o ministro Nelson Jobim (colarinho 44 com monograma NJ bordado) do Supremo Tribunal Federal. As do banqueiro Daniel Dantas (que prefere as de colarinho branco) são sempre presente da mãe. A fama da loja pode ser conferida na pastinha preta de recortes, organizada pelas donas, com todas as menções à camisaria já publicadas na imprensa. Há também fotos em que elas aparecem abraçadas a Lula e dois closes de um cheque de 4 661 reais assinado pelo vice José Alencar em agosto de 2003. “Já que não conseguimos tirar foto com ele, pelo menos temos a prova de que ele é cliente”, diz Dôra. Se elas votam no presidente? Maria diz que sim. A outra sócia já acha esse assunto muito particular.