ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2007
O sonho acabou
Uma esquina melancólica
João Moreira Salles | Edição 5, Fevereiro 2007
Em menos de um mês, Jean-Baptiste Kim, sul-coreano radicado na Inglaterra, personagem de uma Esquina de piauí no mês passado, foi tomado por um sentimento doloroso. Entre o Natal e o Ano-Novo, ele perdeu a fé – não em Deus, mas em Kim Jong-Il, líder da Coréia do Norte, de quem se dizia agente e sobre quem declarara à revista: “É o meu herói”. Deixou de ser. Depois de se desdobrar em oito para organizar um festival de rock em Pyongyang, o que Jean-Baptiste Kim recebeu em troca foi ingratidão. De súbito, ele percebeu que o regime ao qual servia tinha traços autoritários.
Ao ser entrevistado por uma rádio inglesa, Kim declarou o que já havia dito a piauí: não gostaria que o filho de Kim Jong-Il sucedesse o pai. Melhor alguém do Exército, disse no ar, para que a coisa não parecesse dinástica. Afinal, Kim Jong-Il já herdara o trono do pai, Kim Il-Sung, a quem, depois de morto, uma emenda à Constituição concedera o título de “presidente pela eternidade”. Jean-Baptiste Kim imaginava que, com isso, ao menos simbolicamente Pyongyang liquidara a questão – qualquer outro Kim seria um excesso. Além disso, Kim Jong-Nam, 35 anos, filho mais velho e herdeiro presumido de Kim Jong-Il, não lhe parecia ideologicamente confiável. Em maio de 2001, foi preso ao tentar entrar no Japão com um passaporte falso da República Dominicana. Desmascarado, confessou: “Eu queria visitar a Disney” (a de Tóquio).
As opiniões de Jean-Baptiste Kim a respeito da sucessão não agradaram ao governo da Coréia do Norte, de onde começaram a chegar telefonemas ameaçadores. Tudo isso o fez refletir bastante. Em 11 de janeiro, num café em New Malden, a mesma cidadezinha a quarenta minutos de Londres onde teve a primeira conversa com piauí, ele explicou: “Na verdade, não houve nenhum grande acontecimento. Minha mudança foi espiritual. Me dei conta da verdade”.
Kim decidiu cortar relações com o regime. No dia 1º de janeiro, tirou do ar o material sobre a Voz da Coréia, a rádio que administrava, e no mesmo endereço, www.voiceofkorea.org, pôs a página de uma loja de telefones celulares – a TNT Telecommunications N Trade -, comprada com a ajuda da comunidade sul-coreana. “Assim que rompi com Pyongyang, eles me deram os parabéns e me emprestaram o dinheiro. Antes, todos me odiavam.” Um link na página da TNT levava ao manifesto com o qual Jean-Baptiste Kim se dissociava de seus antigos mestres. Intitulado “O Meu Coup d’État – A Consciência contra as Razões de Estado”, é um texto amargo. “O atual regime da Coréia do Norte não está a serviço do povo, mas da família real, que domina o povo. Continuo contra a política imperialista dos Estados Unidos. Lamento ter dedicado os últimos dez anos da minha vida à República Democrática Popular da Coréia, mas não repetirei o mesmo erro no futuro. E preciso anunciar que o festival Rock for Peace será suspenso junto comigo [sic]. Por razões sentimentais, manterei o endereço eletrônico da Voz da Coréia, que passará a ser o da minha loja de celulares”.
Terminada a conversa, Jean-Baptiste Kim voltou para a sua loja no número 42 da High Street de New Malden, condado de Surrey. Quando o vimos pela última vez, estava atrás do balcão, embrulhando o telefone Motorola que acabara de vender a uma senhora. Os negócios vão bem. Ele já tem dois funcionários e planeja abrir um call-center.