Ilustração: Carvall
A Bíblia cancelada
Projeto em tramitação no Congresso pretende limitar uso da palavra bíblia – sob pena de prisão
Muitos disparates já agitaram o Congresso, mas a criatividade de alguns parlamentares não encontra limites. Num ano como este de 2022, marcado pela pandemia, pela guerra, pelos conflitos nas redes sociais e pelas disputas em torno das próximas eleições, o plenário da Câmara dos Deputados quase colocou em regime de urgência o projeto de lei 02/2019, que pretende limitar o uso da palavra bíblia sob pena de prisão.
Matérias graves como guerra, requisições civis ou militares, intervenção federal nos estados já nascem urgentes, diz o regimento interno da Câmara. Urgência, como é óbvio, implica relevância e necessidade de solução imediata, tanto assim que, por aprovação de maioria, só duas proposições podem tramitar ao mesmo tempo em regime acelerado. O plenário poderia ter apreciado o pedido de urgência na sessão de 10 de março de 2022. Diz a ata que não foi submetido a voto “por encerramento da sessão”, ou seja, não teria havido tempo para apreciação. É mais fácil apostar numa súbita inspiração a iluminar a Mesa Diretora, até porque, em seguida, alguns deputados que tinham assinado o pedido se retrataram.
Que urgência, efetivamente, poderia haver em regular o uso da palavra bíblia? Quem faz o vocabulário ortográfico é a Academia Brasileira de Letras. Quem esclarece o significado e o uso das palavras são os dicionários, com base na tradição do idioma e dos usos adotados pelo povo.
Em tese, uma gramática pode recomendar o uso de um vocábulo, ou a construção de uma frase. A ortografia pode ser e é objeto de tratados internacionais, visando harmonizar o uso da língua entre os vários povos que a praticam. Nunca, porém, se tinha ouvido falar que uma lei jurídica, e não meramente gramatical, pudesse impor determinado uso a uma palavra, ou proibir seu uso em determinado sentido.
Acontece que o deputado federal Pastor Sargento Isidório (Avante-BA) quer ver aprovado com urgência o projeto de lei n° 2, que apresentou em 2019:
Art. 1° – “Fica terminantemente proibido [sic] os termos ‘Bíblia’ e/ou ‘Bíblia Sagrada’ em qualquer publicação impressa ou eletrônica de modo a dar sentido diferente dos textos consagrados há milênios nos livros, capítulos e versículos utilizados pelas diversas religiões cristãs já existentes, seja católica, evangélica ou outras mais que se orientam por este livro mundialmente lido e consagrado como Bíblia.”
O projeto, além de proibir o uso do termo bíblia fora do contexto religioso, pretende transformar em crime, embora de modo pouco técnico, qualquer outro uso do termo:
“Art. 2° O uso indevido dos termos ‘Bíblia’ e/ou ‘Bíblia Sagrada’ será passível de punição conforme tipificado no crime de estelionato (Artigo 171 – obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento) e também o Artigo 208 (escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso), ambos previsto [sic] no Código Penal.”
Palavras unívocas são aquelas suscetíveis de apenas uma interpretação. São raras, pois basta uma metáfora para ampliar seu alcance, e ninguém pensaria em condenar um Guimarães Rosa por enriquecer nosso vernáculo.
Já as palavras que podem ter vários sentidos são chamadas de multívocas, e seu sentido é facilmente descoberto a partir de seu uso. Ao pedir um sorvete de manga, ninguém duvida de que estamos nos referindo à fruta, cujo suco pode até cair na manga da camisa. Quando Chico Buarque fala em ver a banda passar, logo imaginamos músicos tocando, embora se fale também em banda larga, banda podre etc.
A palavra bíblia pode ter vários sentidos. O Aurélio a conceitua, em primeiro lugar, como o conjunto de textos sagrados, ou ainda o livro em que se reúne esse conjunto de textos da tradição religiosa. Mas ensina que se usa bíblia também para um “livro de importância capital e/ou ao qual se tem predileção incomum”. Dá até os exemplos de Coelho Neto, que tinha sua bíblia no Elucidário de Viterbo, e de Joel Silveira, que em jovem tinha por bíblia o secular Rubayat, de Omar Caiam, cuja sinopse até hoje o nomeia “Bíblia da Incredulidade”.
O Houaiss vai mais longe, e inclui no conceito de bíblia um livro de importância capital, ou que condensa o pensamento ou a doutrina de um movimento, uma filosofia, um período. Ou ainda inclui um livro a que se atribui interesse ou autoridade particular e que se consulta com frequência.
Os melhores dicionários americanos e franceses mostram o mesmo sentido amplo, sendo que o Merriam-Webster destaca que, em inglês, se tornou obsoleto o uso da palavra bíblia como mero sinônimo de livro (book). Os dicionários destacam também que, por metonímia, os crentes, protestantes e evangélicos são popularmente chamados de bíblias: “os bíblias estão cantando na praça”.
Ora, os bíblias podem cantar e rezar onde bem lhes aprouver, mas não podem pretender mudar o idioma por força de lei, e menos ainda com ameaça de punição. Embora a Constituição de 1988 declare “inviolável a liberdade de consciência e de crença”, assegurando o livre exercício dos cultos religiosos e garantindo, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias, também consagra a laicidade do Estado. Efetivamente, é garantida a separação da Igreja e do Estado, sendo proibido ao poder público “estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”.
Prevalece entre nós, desde 1890, esse importante princípio da separação da Igreja e do Estado, consagrado já na primeira Constituição da República, de 1891. Desde então o catolicismo deixou de ser religião oficial do Estado e foi eliminada a proibição de outras religiões, o que abriu espaço para a prática e o crescimento dos cultos evangélicos.
Além de não caber em qualquer lógica, a proposição agride frontalmente a Constituição. O mesmo artigo 5°, que assegura a liberdade religiosa, garante também a liberdade de manifestação do pensamento, de consciência, de crença, de convicção filosófica ou política. É livre, entre nós, independente de censura, a expressão da atividade intelectual, científica, artística e de comunicação.
Uma lei dessa natureza, além de inconstitucional, criaria uma lista de obras proibidas, tais como, em rápida pesquisa, encontramos à venda nas livrarias: bíblias de alimentação, astrologia, ioga, ayurveda, bitcoin, fabricação de doces, cocktails, consultoria, escritores, fotografia, linux, madeira, manipulação, macho alfa, manipulação, maternagem, Microsoft Excel, reiki, óleos e mecânica, varejo, bolo vegano, vendas e viajantes, entre tantas outras.
Entre as bíblias mais vendidas, aliás, se destacam as dos atiradores, da cannabis, dos concursos de ingresso, do vinho e dos cuidados com a pele. O que o autor do projeto propõe que seja feito com tais livros? Queimados em praça pública? Isso tudo sem falar nas bibliotecas e nas bibliografias, indispensáveis nos trabalhos acadêmicos. O prefixo bíblias… passa a ser proibido?
Para entender a origem do disparate, é preciso ouvir os argumentos do autor do projeto. O deputado pretende evitar que alguns segmentos sociais, “intolerantes com a manutenção da verdade religiosa”, passem a utilizar as palavras “Bíblia” e “Bíblia Sagrada” para se referir aos seus próprios livros de ética. E abre o jogo: “Queremos prevenir mais uma violência contra os cristãos brasileiros. É o caso da polêmica do livro em edição que se especula chamar bíblia gay. Há indícios de que tal livro pretende tirar referências que condenam o homossexualismo. Seria uma verdadeira heresia e total desrespeito às autoridades eclesiásticas.”
Ainda, sempre segundo o Pastor Sargento, esse tipo de publicação abriria precedente para o surgimento de outros livros apelidados de bíblia para segmentos como “homicidas, adúlteros, prostitutos e mentirosos”. “Ou seja, livros chamados de bíblia para livrar todo tipo de pecadores.”
Ora, por incrível que pareça, a tal Bíblia Gay já existe e escapa por completo ao projeto do insistente deputado. The Gay Bible, editada em inglês de 2015, consiste justamente numa análise das sagradas escrituras, sob o prisma do amor de Deus por todos, incluindo a comunidade LGBTQ+ etc. A obra provocou indignação em certos círculos, diz a sinopse que houve até tentativa de morte contra a autora. Na verdade, trata-se simplesmente de uma digressão no campo da interpretação dos textos sagrados.
Assim como as palavras podem ter uma pluralidade de sentidos, também as religiões e os seres humanos são diversos. Embora diversos, todos são iguais perante a lei e qualquer discriminação é criminosa. Nem é preciso ler Hannah Arendt ou assistir aos filmes sobre o Holocausto para lembrar da tragédia acarretada pela discriminação e perseguição de seres humanos a pretexto de raça ou credo religioso.
Os “bíblias” podem nos atribuir pecados, mas não podem inventar crimes onde às vezes só há preconceitos. Vivemos num estado laico de direito, no qual prevalece a liberdade de uso das palavras e de opinião. Estelionato pode haver em muitas práticas, jamais no uso que cada um de nós faz das palavras, a não ser que seja para tomar dinheiro dos outros.
Ao lado da Bíblia, é preciso ler e respeitar a nossa Constituição. Ninguém pode, no estado democrático, cancelar um livro ou uma palavra, nem deputado, nem sargento, nem pastor.
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