A ciência no ringue
“Queremos ver sangue.” Assim o mediador explicou à plateia o que esperava do debate que estava prestes a se iniciar. O confronto oporia as opiniões de dois cientistas sobre a participação brasileira num dos mais importantes projetos internacionais de pesquisa em astronomia. Na reunião anual da SBPC, que acontece esta semana em Goiânia, o mesmo formato foi usado para a discussão do novo Código Florestal e da construção da usina hidrelétrica de Belo Monte.
“Queremos ver sangue.” Assim o biólogo Aldo Malavasi, secretário-geral da SBPC, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, explicou à plateia o que esperava do debate que estava prestes a se iniciar. O confronto oporia as opiniões de dois pesquisadores sobre a participação brasileira num dos mais importantes projetos internacionais de pesquisa em astronomia.
O evento era parte da série de debates “Ciência em ebulição”, promovida pela SBPC desde o seu último encontro anual. Na reunião deste ano, que acontece esta semana em Goiânia, repetiu-se a dose. A proposta é apresentar controvérsias científicas num modelo que emula os debates eleitorais na TV, com perguntas, respostas e réplicas rigorosamente cronometradas.
No debate que inaugurou a série, o que esteve em questão foi a adesão do Brasil ao Observatório Europeu do Sul (ESO), instalado no deserto do Atacama, no Chile, que prevê a construção do maior telescópio instalado no planeta. A posição foi defendida pelo astrônomo Kepler de Souza Oliveira Filho, da UFRGS – batizado, como o pai, em homenagem ao alemão que determinou as leis dos movimentos planetários no século 17.
Kepler alegou o aumento do número de pesquisadores da área para defender a adesão do Brasil ao ESO – aprovada no fim de 2010 pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, em decisão que ainda precisa ser ratificada pelo Congresso. “Metade ou mais dos astrônomos não tem instrumentos necessários para pesquisa”, afirmou. “Os telescópios Gemini e Soar, aos quais temos acesso hoje, só atendem a parte da comunidade.” Ele lembrou ainda que os telescópios do ESO respondem pelo maior número de publicações na área.
No contraponto de Kepler, o astrônomo João Steiner, da USP, defendeu que o Brasil não deveria aderir a esse projeto por conta de seu grande custo – os gastos seriam da ordem de 600 milhões de reais até 2020. “Isso dá uma média de um milhão de reais por semana”, criticou. Segundo ele, a astronomia representa cerca de 1% da ciência brasileira em número de pesquisadores e de artigos publicados. “Se formos investir o mesmo valor proporcional em todas as áreas, seriam 60 bilhões de reais. Temos esse dinheiro?”
Steiner criticou também a forma como se daria a participação brasileira – os projetos conduzidos nas instalações do ESO são selecionados por seu mérito científico, embora a contribuição de cada país seja proporcional ao seu PIB. “Vamos pagar o mesmo que a Itália, mas usar muito menos, porque eles têm três vezes mais astrônomos que o Brasil, em média mais bem treinados que os nossos”, alegou. “Na prática, vamos subsidiar a ciência europeia.” O astrônomo da USP defendeu que o país apostasse em projetos mais baratos e de maior impacto científico para o país.
Como a organização do evento esperava, o debate se inflamou no momento em que foi aberto para as questões do público. A maior parte parecia se alinhar com o ponto de vista defendido por João Steiner. Mas partidários da participação brasileira no ESO também vieram ao socorro de Kepler. Um deles foi o presidente da Sociedade Astronômica Brasileira, que criticou o modelo do debate. “Esse assunto está sendo conduzido de maneira um pouco caricatural”, afirmou. “Ele é muito sério pra ser ridicularizado assim.”
Código Florestal
O debate foi menos exaltado no dia seguinte, embora o tema tivesse muito mais apelo popular – o novo Código Florestal. Para atacar o texto aprovado em maio pela Câmara, foi escalado o biólogo Sergius Gandolfi, da USP. Ele abriu o debate combatendo o novo código com os argumentos abraçados pela maior parte da comunidade científica – a voz que a SBPC quer que seja ouvida antes que o projeto seja votado pelo Senado.
Gandolfi mostrou como a redução das áreas de proteção permanente nas margens de rios e topos de morro proposta no novo código deve levar à derrubada da mata ciliar, à erosão do solo e ao assoreamento dos rios e reservatórios de água para consumo humano e para a agricultura. “Teremos um apagão hídrico”, resumiu o biólogo, alarmado com a perspectiva de aprovação do texto pelo Senado.
Coube ao engenheiro florestal Sebastião Valverde, professor da Universidade Federal de Viçosa (UFV), a ingrata tarefa de se contrapor ao ponto de vista defendido pela maioria dos presentes. Valverde não fez propriamente uma defesa do novo Código. Ele procurou mostrar, a partir de uma discussão jurídica, como a lei atual inviabilizaria a sustentabilidade de alguns produtores, especialmente nas pequenas propriedades em regiões acidentadas.
Ele relatou as conclusões de uma aluna de mestrado orientada por ele que buscou entender se a lei era cumprida na prática. “O estudo constatou que nenhum produtor aplicava a lei e que ela podia comprometer sustentabilidade econômica e social da propriedade agrícola”.
“A Constituição Federal é muito generalista, quer adotar única lei pro país todo”, criticou o engenheiro florestal. A solução, em sua opinião, seria permitir que estados e municípios tivessem mais autonomia para regulamentar o manejo florestal em função de suas realidades. Gandolfi discordou da proposta do colega. “A poluição gerada num estado vai parar em outro”, argumentou. “Se eu libero o plantio nas margens de rio num estado, os sedimentos vão para o rio e seguem para o estado seguinte, onde vão comprometer o abastecimento de água.”
Apesar do potencial mobilizador do debate, o público praticamente não se manifestou. Só ao final se ouviram palmas discretas para algumas tiradas de Gandolfi. Valverde foi vaiado quando questionou a aprovação do código na Câmara com grande participação da bancada de esquerda. “Será que os deputados foram enganados?”, ironizou. “Fala sério!”, alguém protestou da plateia.
A série Ciência em Ebulição se encerra nesta sexta, com um debate sobre outro tema com potencial explosivo – a construção da hidrelétrica de Belo Monte. Resta saber se público e debatedores virão com a faca nos dentes, como espera a SBPC.
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