A despedida de Caymmi
Pérola tardia na obra de Dorival Caymmi, Sargaço Mar foi composta quando ele tinha por volta de 62 anos. Parece um hino de despedida, como se fosse o ponto final da esplêndida carreira do compositor, a canção que encerra o seu legado.
Pérola tardia na obra de Dorival Caymmi, Sargaço Mar foi composta quando ele tinha por volta de 62 anos. Parece um hino de despedida, como se fosse o ponto final da esplêndida carreira do compositor, a canção que encerra o seu legado. Poucas músicas exercem tamanho fascínio sobre mim. Ouvi dizer que quando Caymmi a expôs ao mundo, durante uma temporada em Salvador, nos anos 1970, Caetano Veloso ia a todas as apresentações. E ia não apenas porque idolatrava Caymmi como “a mãe da palavra cantada”, mas porque se enamorara de tal forma de Sargaço Mar que ansiava por encontrá-la repetidamente, noite após noite, na ânsia de ampliar o arrebatamento amoroso. E chorava de beleza no teatro escuro.
Não sei se a história é verdadeira. Mas ainda que não seja, ela atesta a força da canção. Força que está ligada, creio, ao seu curioso poder de estranhamento. Sim, Sargaço é uma das canções mais esquisitas que já ouvi, o que me faz pensar na máxima de Baudelaire de que “a beleza nasce do espanto”. Ela simplesmente não se parece com nenhuma outra. Não aponta para gêneros, não revela filiações, nem se ancora no tempo. Está destacada do seu criador – ocupando um lugar algo solitário na obra de Caymmi – e até mesmo da voz que a canta. É o que ela própria, a Canção, expõe logo no primeiro verso: “Quando se for esse fim de som/ Doida canção que não fui eu que fiz”. É como num jogo de espelhos: se não foi feita pela “voz que canta”, então quem a fez jamais a cantou. O verso é animado por uma melodia igualmente insólita, que abre de modo hipnótico com quatro repetições sobre a tônica para depois se lançar em saltos crescentes até atingir a mesma tônica uma oitava acima (fechando um acorde menor) e então descer apoiando-se em notas fora da escala, desviando-se de notas mais previsíveis. A frase que poderia soar divertida (“Doida canção que não fui eu que fiz”) torna-se uma declaração enigmática. Alude a algo que é maior do que a voz que a canta – algo que, de fato, representa o aniquilamento dessa voz, e que perdurará mesmo depois que “se for esse fim de som”. Sargaço é uma canção sobre a morte. O que nela se afirma, antes de tudo, é o mais completo anonimato, pois todas as vozes que a cantam (e que ainda a cantarão) se eximem de sua autoria, mergulhando-a na mais profunda solidão. “Não fui eu que fiz”.
Onde nos ancorar, então? Como aliviar a dor do esquecimento? A saída está na própria canção. Depois da seção inicial, sobre um acorde menor desenham-se os seguintes versos: “verde luz, verde cor de arrebentação”. As primeiras palavras vêm num registro grave, cavernoso, atadas ao mesmo padrão repetitivo do início. O contraste torna-se evidente: é tudo muito claro – verde, luz, cor – e no entanto tudo está contido naquele trecho soturno de melodia. Contraste que arrebenta em “arrebentação”, quando a voz atinge a nota mais aguda e joga a canção num outro registro. A melodia ganha então o balanço das ondas, muda de comportamento rítmico, torna-se ampla, respira. Estamos no mar encantado do baiano. Surgem, cantadas sem nenhum esforço, as palavras sargaço (um tipo de alga), mar, ar, deusa do amor. Caymmi nos joga novamente no aconchego do mito. Morrer é voltar aos braços de Iemanjá odoiá, “mãe d’água”. Vida e morte tornam-se parte de um só movimento. Mais do que isso: revela-nos que a própria morte participa da sensualidade e do prazer da existência, e que pode, por isso mesmo, ser também desejável. Os versos finais talvez sejam os mais exagerados de sua obra: “Vou me atirar, beber o mar/ alucinado, desesperar/ querer morrer para viver/ com Iemanjá”. Mas a forma de cantar, serena e resoluta, tira deles o excesso de peso e os transforma na expressão melancólica do desejo de retorno a um lugar de origem. É desconcertante. Difícil pensar em algo mais belo.
OBS: Parte dessas reflexões sobre Sargaço Mar estão presentes em um programa que escrevi e narrei para a Rádio Batuta. Segue o link para quem quiser ouvir: http://radiobatuta.com.br/Episodes/view/13
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