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    Crédito: Hugo Fernandes

diários do pantanal

A primeira onça

Biólogo relata dia a dia de expedição para rastrear felinos e mergulha em região do Pantanal onde a ameaça do fogo convive com um pedaço de natureza que ainda resiste

Hugo Fernandes | 23 set 2020_08h30
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Em meio às chamas que atingem o Pantanal, o biólogo Hugo Fernandes investiga o impacto do fogo na fauna da região e, em especial, nas onças-pintadas. Professor e pesquisador da Universidade Estadual do Ceará (Uece), Fernandes está em Mato Grosso do Sul como participante da Expedição Pantanais, cujo nome faz referência às diferentes formações ecológicas dentro do bioma. O trabalho começou por uma parte do bioma que está verde – foi destruída por um incêndio no ano passado e, agora, está se recuperando aos poucos. Logo no primeiro dia, Fernandes se deparou com uma onça-pintada, muito comum por lá. A espécie, no entanto, tem sofrido com as queimadas que assolam o Pantanal. Nesses diários, escritos a pedido da piauí, Fernandes relata como tem sido seu trabalho cotidiano num dos biomas com maior biodiversidade do mundo.  

 

Em depoimento a Luiza Ferraz

 

Segunda-feira, 21 de setembro

Hoje é o meu primeiro dia nessa “Expedição Pantanais”, que se chama assim porque são onze pantanais – não só de formações ecológicas diferentes, mas também de situações diferentes em relação ao fogo. Eu vou visitar quatro. Essa primeira fase da expedição vai mostrar um Pantanal vivo, um pantanal de esperança, de resiliência. Eu estou no Refúgio Ecológico Caiman, onde funciona um safári, um programa de ecoturismo voltado para onças-pintadas e outros elementos da flora pantaneira. Este ano não vi fogo por aqui. Mas 60% do território do refúgio foi incendiado no ano passado. A flora e a fauna estão em recuperação. Vim até aqui para entender como um programa de turismo voltado para a conservação conseguiu manejar, ao longo deste ano e depois da tragédia que aconteceu aqui, para que seus recursos, principalmente da fauna, fossem mantidos e relativamente recuperados.

Cheguei em Campo Grande às 4h50 da tarde, peguei um carro, parei um pouquinho na estrada, cheguei às 10 horas da noite e, ainda fora da porteira do refúgio, na estrada, encontrei um tamanduá-bandeira – seria o sinal de que eu veria, ali, a riqueza que o Pantanal tanto oferece. Ainda de noite, conseguimos avistar a primeira onça-pintada – o que é um registro incrível. A primeira vimos à meia-noite. Ficamos até 1 hora da manhã. Infelizmente, não conseguimos registrar em foto. Mas acordamos às 4 horas da manhã para tentar avistá-la de novo. Não vimos. Mas encontramos um casal de cervos, de veados campeiros, lutando.

O Onçafari é um projeto de ecoturismo que tem diversas vertentes: turismo; ciência, que é o que eu estou fazendo aqui, com pesquisas sobre ecologia, história natural, veterinária; educação, uma parceria com escolas locais; social, um trabalho junto às comunidades; Onçafari Re-wild, com a reintrodução de indivíduos na natureza que sejam órfãos ou estejam machucados; e o Onçafari florestas, em que eles adquirem mais áreas protegidas, não só no Pantanal como no resto no Brasil, e financiam estudos de viabilidade para aumentar essas áreas, que são de outras entidades.

O projeto fica no Refúgio Ecológico Caiman. Você se hospeda no refúgio e tem a oportunidade de, assim como num safári africano, observar várias espécies na natureza. Aqui, a taxa de visualização de onça-pintada é de 98%, ou seja, 98% dos hóspedes conseguem ver uma onça-pintada. Anos atrás, a taxa de visualização era de menos de 10%. O que aconteceu para ter tanta onça? Soltaram onça? Na verdade, houve sim reintrodução de dois indivíduos, mas não é isso o que explica o sucesso. É a proteção de todo o território, mitigando as ameaças para que as onças pudessem se reproduzir naturalmente. Hoje, são cerca de sessenta onças-pintadas.

Vamos voltar a campo, para poder ir atrás da onça-pintada com um método chamado rastreamento por rádio. Funciona da seguinte forma: a onça tem um rádio-colar que permite o rastreio pelos pesquisadores com uma antena receptora. A partir dessa localização, a gente consegue, com muito esforço e muita sorte, localizar esse indivíduo.

Como todo brasileiro preocupado com o meio ambiente, o sentimento às vezes é de desespero, mas também de querer ser proativo em ajudar. No meu caso, a ajuda é colocar a ciência a serviço de respostas que podem solucionar os problemas do Pantanal hoje – o que é muito difícil, afinal, estamos falando de um incêndio de grandes proporções. 

Crédito: Hugo Fernandes

 

Terça, 22 de setembro

O segundo dia foi o dia de entender a área. Há outro programa dentro do Refúgio Ecológico Caiman que se chama “Instituto Arara Azul”, que cuida das araras-azuis – outra espécie salva da extinção através do trabalho dos cientistas. Depois, fomos atrás das onças-pintadas. Eu quis participar desse processo de imersão que um turista faz. A gente visualizou um indivíduo e tirou uma foto bem ruim, porque ele passou correndo, mas deu para ver. No final do dia, durante a noite, toca o rádio e a gente recebe a notícia de que a equipe de veterinários capturou uma onça-pintada. A gente foi lá em disparada para poder acompanhar esse processo, e eu, como biólogo, também entender e colaborar de alguma forma.

A onça que eles capturaram nasceu em 2013. Ela é aqui do Onçafari, nasceu em condições naturais. Eles acompanham isso, sabem quem é a mãe… Mas ela não tinha o rádio colar, que é aquele rádio usado para monitorar por onde ela está andando – e isso ajuda a responder diversas coisas. A instalação dele é muito importante no contexto das queimadas do Pantanal porque, uma vez que uma área pega fogo e uma onça com o equipamento consegue fugir e se abrigar em um lugar, aquilo pode indicar que ali é uma área de refúgio para várias espécies da fauna. Assim, é possível agir localmente em prol dessas espécies, por conta desse rádio colar. 

Como biólogo, tento atuar em várias frentes. A primeira delas é a frente de informação. Procuro educar e informar as pessoas sobre todos os motivos para esses incêndios. Começa com a questão do fogo criminoso – mais de 90% dos incêndios no Pantanal são criminosos – mas isso se alastra por conta de vários outros fatores: estamos numa seca histórica, o Rio Paraguai que, em julho deveria estar perto de 5m, está abaixo de 2m, 50% a menos do registo de chuva para aquilo que é esperado no Pantanal… Então esses são outros fatores. Obviamente, os cortes violentos no orçamento dos órgãos de fiscalização do Ministério do Meio Ambiente também influenciam – em 2019 houve 34% menos autuações ambientais em relação a 2018 do que é esperado para o Brasil, a menor taxa em 24 anos. Há um componente governamental muito grande que precisa ser considerado, além de todas as questões biológicas e ecológicas que ajudam a fazer com que esses incêndios se alastrem. 

A segunda frente é a científica. Estou mostrando um Pantanal que, este ano, ainda não pegou fogo, mas no ano passado 60% dessa área queimou. Estou aqui para analisar os dados científicos e mostrar o que aconteceu para que isso pudesse ser mitigado e, principalmente, mostrar o quanto a fauna pode ser recuperada. Essa é minha maior função aqui, colocar a ciência a serviço da análise da valoração do recurso ambiental. Que significa entender que a cadeia econômica que gira em torno de uma onça-pintada viva é muito mais lucrativa do que a que gira em torno de uma onça-pintada morta.

A terceira frente é de realmente ajudar a apagar o fogo. Estou na organização de uma campanha que já coletou centenas de milhares de reais para montar duas brigadas permanentes de combate ao incêndio no Pantanal. Elas terão barco, combustível, alojamento e apoio a hospitais veterinários de animais silvestres – uma no Mato Grosso e outra no Mato Grosso do Sul. Precisamos realmente mitigar os incêndios não só de hoje, mas principalmente os de amanhã.

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Leia também: No rastro das onças-pintadas e “Agora eu cheguei ao inferno”

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