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diários do pantanal

No rastro das onças-pintadas

Expedição pelo Pantanal acompanha animais como forma de medir preservação do ambiente enquanto se prepara para entrar na zona de queimadas

Hugo Fernandes | 25 set 2020_12h00
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No quarto dia de expedição pelo Pantanal, o biólogo Hugo Fernandes se deparou com uma cena não tão incomum no bioma: um animal silvestre atropelado na estrada. O professor e pesquisador da Universidade Estadual do Ceará (Uece) estava a caminho de Corumbá (MS), junto com os outros integrantes do grupo, para fazer um sobrevoo pelo Parque Nacional do Pantanal Matogrossense, quando avistaram uma irara, que havia sido atropelada. No dia anterior, o pesquisador acompanhara o rastreamento de onças-pintadas. Espécie símbolo do bioma, ela é essencial para a detecção da qualidade daquela região. Isso porque, segundo o pesquisador, ela está no topo da cadeia alimentar. Nesses diários, escritos a pedido da piauí, Fernandes relata como tem sido seu trabalho cotidiano num dos biomas com maior biodiversidade do mundo e que tem sofrido com os maiores incêndios já registrados.

(Em depoimento a Luiza Ferraz)

 

Quarta-feira, 23 de setembro

Hoje repetimos as atividades que fizemos nos outros dias: acompanhamento das câmeras, avistamento de onças-pintadas. Avistamos mais duas utilizando o rastreio via rádio. O rádio colar dessas onças emite um sinal GPS por meio do qual os pesquisadores conseguem acompanhá-las em um computador. Eles também conseguem localizá-las através de uma antena especializada que recebe um sinal de rádio emitido pelo colar. 

Após a captura da onça Hipotenusa, carinhosamente chamada de Nusa, que nasceu em 2013 e vive aqui no Refúgio Ecológico Caiman desde então, procuramos saber junto ao corpo de veterinários como era feita a captura desse animal. A técnica que eles utilizam é a do laço. O animal passa numa trilha previamente conhecida e há uma estrutura de armadilha que prende a pata dele quando passa. Muito importante dizer que, embora a cena possa parecer um tanto quanto invasiva, não há qualquer tipo de sofrimento animal. Trata-se de uma técnica bastante segura principalmente porque, ao disparar uma linha, também dispara um sensor que avisa o corpo de especialistas onde quer que eles estejam. Então o animal fica pouco tempo preso pela pata. Gravei um vídeo em que coloco a minha mão para mostrar que não dói, não fere e não causa nenhum injúria.

Há também vídeos de câmera trap que são as armadilhas fotográficas, quando o animal passa pela trilha e elas são acionadas gravando um vídeo – um outro tipo de trabalho que o Onçafari desenvolve por aqui. O trabalho consiste em espalhar essas armadilhas fotográficas para entender de que forma as onças utilizam todo o Refúgio Ecológico Caiman. 

Um habitat que apresenta uma alta densidade de onças-pintadas representa um habitat conservado. Por quê? Porque a onça é um topo de cadeia. Para que ela exista, principalmente em bom número, é preciso que haja alta densidade de suas presas, que o território esteja muito bem conservado. Coletar resultados para saber onde a onça se encontra é de suma importância para aferir o estado de conservação do território. No caso do Pantanal, temos diferentes tipos de habitat: mata fechada, zonas alagadas, campo aberto, área agricultável… Entender como a onça se utiliza de cada um desses tipos de mata é muito importante para entender a relação entre a espécie com outras e, principalmente, traçar estratégias: que áreas devem ser protegidas, que áreas podem ser manejadas – esse é um dos grandes exemplos.

Uma onça bem monitorada indica para a gente as melhores áreas. Diante de uma emergência, como incêndios, localizar as onças é, automaticamente, localizar as áreas de refúgio não só para ela, mas para várias outras espécies.

Ontem (22) choveu em algumas áreas do Pantanal. Acompanhei, na internet, as pessoas, com muita justiça, comemorando essa chuva mas, ao mesmo tempo, achando que ela estava banhando o Pantanal inteiro. Isso é reflexo do desconhecimento delas em relação ao Pantanal – elas acham que o bioma ocupa uma área homogênea e muito pequena. O Pantanal inteiro, incluindo as partes do bioma que chegam até o Paraguai e a Bolívia, é do tamanho do Reino Unido e a chuva atingiu poucas áreas. Podemos supor que, se o Reino Unido estivesse pegando fogo, as pessoas estariam comemorando o fato de ter batido uma chuva muito fina em Londres. O Pantanal é gigante, e as poucas chuvas que caíram não são, nem de longe, suficientes para apagar o que está acontecendo. Amanhã iremos partir para a linha de fogo do bioma.

Crédito: Hugo Fernandes


No começo da tarde, uma notícia alarmante: o nosso parceiro, coronel Rabelo, uma das pessoas que historicamente domina a questão dos incêndios na Amazônia, noticiou que o Parque Nacional do Pantanal Matogrossense está pegando fogo. O coronel sobrevoou a área e emitiu um alerta para que a gente se preparasse porque, amanhã, provavelmente, iríamos para lá. Iremos até Corumbá para fazer esse sobrevoo. O que a gente espera é que esse fogo seja breve e que possa ser contido.

 

Quinta-feira, 24 de setembro

Acordei ainda em Miranda (MS) e peguei o carro  em direção a Corumbá, onde agora estou descansando para amanhã encarar de fato a linha do fogo. Vamos sobrevoar a região do Parque Nacional do Pantanal Matogrossense e a Serra do Amolar. No caminho até aqui, de Miranda a Corumbá, registramos um dos problemas mais graves para a fauna do Brasil: o atropelamento de fauna silvestre nas estradas brasileiras. Vimos uma irara atropelada e morta na estrada. Todos os anos, mais de 400 milhões de animais morrem nessas condições. O Pantanal, por ser um ambiente com uma malha rodoviária muito movimentada, guarda números e cenas impactantes sobre esse problema.

Crédito: Hugo Fernandes


Em Corumbá, nenhum descanso. Hora de preparar equipamentos para o início do maior desafio, o maior propósito da expedição: documentar os impactos onde o fogo arde sem dó. Falo no plural, porque é hora de revelar meu grande parceiro: Lawrence Wahba, um dos documentaristas mais renomados do país, está ao meu lado registrando cada momento. Mas não só. Ele é um dos principais articuladores da campanha que organizamos: levantar fundos para montar as duas brigadas permanentes que mencionei dias atrás. A campanha se chama Brigada Alto Pantanal e está aberta para doações. 

À noite, nos encontramos com o Coronel Angelo Rabelo, diretor do Instituto Homem Pantaneiro e coordenador-geral da campanha. Com décadas a serviço do Pantanal, já tomou tiro no peito ao defender o bioma na década de 1980. Ele nos colocou a par de todo o nosso cronograma daqui pra frente. “Queridos, amanhã vocês pegam um avião que vai descer no Parque Nacional do Pantanal. A situação lá está mais caótica do que ontem, e vocês vão levar os mantimentos que já conseguimos comprar para os brigadistas indígenas que estão lá tentando salvar o território”, disse o coronel.

Vou dormir, porque só tenho cinco horas de sono até lá.

 

Leia também: A primeira onça “Agora eu cheguei ao inferno”

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