Detalhe da fachada do colégio, na Vila Mariana, Zona Sul de São Paulo
“A saída dele é um fracasso coletivo”
As motivações de um pai que tirou o filho do Colégio Bandeirantes, de São Paulo, depois de episódios de racismo
No final de abril, um aluno bolsista do segundo ano do Ensino Médio do Colégio Bandeirantes chegou calado e com o rosto fechado à sua casa na Penha, bairro da classe média da Zona Leste de São Paulo. Depois de ser questionado por sua mãe, que trabalha como maquiadora, sobre o que havia acontecido, ele contou ter visto uma atitude racista de “uns babacas” de sua sala. Não era a primeira vez, contou, mas nesta havia um diferencial. Um colega de sala usou o termo “nigga”, que vem do inglês “nigger”, termo ofensivo para se referir à população negra, em mensagem no grupo de WhatsApp da sala. Nos Estados Unidos, a palavra, de tão pesada, costuma ser mencionada como “the N word” (a palavra N, em português).
Antes disso, o aluno havia relatado ao seu pai ter sido alvo de zombaria pelo seu cabelo black power e pelo tênis que usa. Também já se irritou com colegas fazendo piada e rindo de vídeos de conotação racista.
Com esse histórico, e a novidade da mensagem, seu pai, Wilton Queiroz, de 48 anos – que é formado em relações públicas e trabalha na comunicação do Sesc-SP –, tomou uma decisão. Primeiro contatou o Ismart, entidade filantrópica criada para preparar e dar acesso a alunos de baixa renda a colégios particulares de excelência. Cerca de dez dias após o primeiro contato do pai, o adolescente conversou com a analista do Ismart, relatou o que vinha sofrendo e entregou o print da conversa. O Ismart ficou de falar com o Bandeirantes em determinada data. Após o prazo combinado, Queiroz ligou para saber a devolutiva da escola. Segundo ele, o Ismart informou ter tratado de “temas mais urgentes” na reunião. “Eu falei então o que seria mais urgente do que um caso de racismo?”, recorda. No dia seguinte, dia 14 de maio, o Ismart acionou a escola sobre o episódio, informando ao pai sobre os seus limites por não ser responsável pela gestão da escola. A alternativa era procurar a instituição de ensino por conta própria.
No dia 8 de junho, o pai esteve na escola. Ele se identificou e pediu para conversar com a coordenação. Foi atendido por Enrica Gentilezza de Brito, orientadora educacional, e Silvia Helena, coordenadora pedagógica. A conversa durou pouco mais de duas horas, e terminou com um impasse. Queiroz afirma ter percebido a ausência de letramento racial em detrimento de uma preocupação com a imagem da escola. “Os argumentos que recebi estavam parados no século passado. Não existe sequer a menção à palavra racismo.” Ele cita algumas frases: “Seu filho não aparenta estar chateado com a situação”; “Seu filho reclamou, mas nem era com ele”; “O garoto com quem estavam fazendo a ‘brincadeira’ disse que não ligava”.
A escola não se predispôs a contatar os alunos envolvidos e seus pais, mas ficou combinado que haveria uma segunda reunião para abordar o assunto.
No dia 21 de junho, o pai foi à escola acompanhado de Kelly Adriano, educadora, gestora cultural e tia de seu filho. Foi outra reunião problemática, em sua avaliação. Pelo lado do Bandeirantes, estavam Maria Estela Zanin, diretora de convivência e mulher de Mauro de Salles Aguiar, acionista da instituição de ensino; Silvia Helena, coordenadora pedagógica; e Juninho Mariano, professor de basquete. Juninho era a única pessoa negra pelo lado da escola. No encontro anterior, Queiroz tinha mencionado a falta de diversidade. “O Juninho, admirado por muitos alunos, estava lá para servir como cota. Ele não tem autonomia em tomar decisões ali dentro”, disse Queiroz. Nesta reunião, pediu que os coordenadores relatassem o caso aos pais dos colegas de classe de seu filho. As coordenadoras pediram a prova do racismo, Queiroz lembrou do print de WhatsApp. “Elas alegaram que, apesar do episódio, viam o meu filho sorrindo e interagindo nos intervalos, o que seria a prova de que não estaria sofrendo. Eu expliquei que não é preciso estar com uma faca no pescoço para estar sofrendo racismo.” Esse foi o último dia de aula do primeiro semestre.
No dia 12 de agosto – portanto, depois das duas reuniões – a comunidade do Colégio Bandeirantes se viu diante de uma tragédia.
O aluno Pedro Henrique, de 14 anos, estudante bolsista do 9º ano do Ensino Fundamental, tirou a própria vida. O garoto era bolsista, negro, morador da perfieria e abertamente homossexual. No dia seguinte, apenas os alunos do 9º ano não tiveram aula. O caso repercutiu nas redes sociais e passou a ser tema de reportagens. Os alunos bolsistas foram chamados para uma reunião dois dias depois da morte, na qual a escola se colocou à disposição para conversar. Na ocasião, foi pedido para que não postassem nada nas redes nem se manifestassem de qualquer forma. “Por que reunião só com bolsistas? Foi uma pressão explícita de que poderiam ser penalizados”, avalia Queiroz.
Pais e alunos organizaram um protesto na porta da escola. Entre as pautas, falavam de preconceito racial e criticavam o silêncio do Band sobre a tragédia. A escola mandou um comunicado anunciando uma reunião presencial aberta a famílias, que puderam se cadastrar para a ocasião. Queiroz esteve no encontro do dia 28 de agosto, com cerca de trinta pais e duração prevista de uma hora.
Queiroz relata que, passada mais da metade da reunião, em que apenas os coordenadores da escola tinham a palavra, pediu para falar e disse a seguinte frase: “O meu filho poderia ser o Pedro.” Na ocasião, o que mais causou sua revolta foi uma coordenadora, ao falar do caso do Pedro, ter dito que a escola não faria nada de diferente. “Pois foi muito pouco, uma pessoa morreu”, ele rebateu. “E falei que se me chamasse de vulnerável novamente eu me sentiria ofendido. O Pedro, no oitavo ano, pediu para mudar de sala por já sofrer questões”, diz. Igor Júnior, irmão de Pedro, confirma essa informação.
Para além de ser chamado de termo racista, o filho de Queiroz contou que se sentiu tolhido ao defender outro negro em sala de aula. Poucos dias após o caso do print de WhatsApp, quando seu pai ainda não tinha falado com o Bandeirantes, ele viu um colega negro ser chamado de “primitivo”. O filho de Queiroz foi à coordenação contar o caso, e escutou que deveria deixar aquilo de lado porque sequer era o alvo. Entendeu um recado para ficar em silêncio. Certa vez, ao mostrar a imagem de um homem negro em um slide, um aluno falou que ele “iria parar em uma plantação de algodão”, em uma referência a uma das atividades mais comuns entre escravizados em fazendas na região Sul dos Estados Unidos. Foi nesse dia, aliás, depois da fala do professor, que o termo “nigga” surgiu no WhatsApp de alunos da sala.
Em setembro, o filho de Queiroz chegou em casa e avisou seus pais: “Para mim, esgotou. Não é um ambiente saudável para mim.” O adolescente de 17 anos pediu para deixar o Band, onde tinha bolsa integral, com risco de perder o ano letivo. Seus pais entenderam e comunicaram o Ismart, que se prontificou a conseguir uma bolsa em uma nova escola parceira. O dia 11 de outubro, uma sexta-feira, foi seu último dia no colégio. Ele fez uma prova de bolsas em outra instituição, em que conseguiu 60% graças a sua boa nota, e a outra parte será custeada pelo Ismart. O jovem não vai repetir de ano.
“Algumas pessoas podem me perguntar: se o Band é tão ruim, por que eu queria o meu filho lá”, questiona Queiroz, para em seguida responder. “Porque o dia em que meu filho sair dali, os racistas venceram. Vamos estar ali pelo embate. Meu filho e o Pedro tinham direito de pertencer a esse espaço sem serem importunados. Mas o meu filho estava sofrendo. A saída dele é um fracasso coletivo.” Para a advogada Ana Paula Siqueira, presidente da associação SOS Bullying e estudiosa dos efeitos do cyberbullying no doutorado em ciências sociais na PUC-SP, a falta de transparência e de protocolos acarreta em frustrações e busca de reparos jurídicos. “A escola deve comunicar imediatamente os pais do aluno agressor e adotar uma postura transparente na resolução do problema. Além disso, a instituição precisa ter um programa de combate ao bullying registrado oficialmente em cartório ou na diretoria de ensino, que inclua procedimentos claros para lidar com denúncias, investigações e medidas corretivas.”
Sem essa formalização em cartório ou na diretoria de ensino, as escolas podem ser consideradas omissas, aumentando o risco de ações judiciais por parte dos pais das vítimas, que alegam falta de medidas preventivas e corretivas.” Nas ações judiciais impetradas pela família de Pedro em busca de reparações, o racismo e a homofobia, além do bullying, são parte das fundamentações do advogado Hédio Silva Jr., especializado na defesa de vítimas de violência racial. Casos de isolamento e bullying contra bolsistas, infelizmente, é uma realidade presente em diversos colégios particulares, como mostra esta reportagem do jornal Folha de S.Paulo.
Procurado pela reportagem, o Bandeirantes informou: “Não comentamos detalhes da jornada escolar dos nossos alunos.” O Ismart também se pronunciou por nota: “O Ismart não comenta especificidades sobre a jornada escolar de seus alunos, bem como decisões que competem às famílias. O instituto reforça que há 25 anos atua com o objetivo de promover mobilidade social a jovens em situação de vulnerabilidade por meio do acesso à educação de excelência, oferecendo suporte ao desenvolvimento socioemocional de seus estudantes durante toda a trajetória escolar.”
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