Apoiadores golpistas de Donald Trump invadem o capitólio em 6 de janeiro: brasilianista compara movimentos de extrema direita no brasil e nos Estados Unidos ALEX EDELMAN/AFP
A surpresa
O trauma do 6 de janeiro em Washington e o triunfo da democracia brasileira
Trabalhar como brasilianista nos Estados Unidos desde 2016 tem sido tão bizarro que é quase indescritível – mais ou menos como assistir a duas adaptações da mesma novela, uma delas com a trama um pouquinho mais adiantada em relação à outra, com Jair Bolsonaro no papel de Donald Trump, Eduardo e Flávio nos papéis dos irmãos Eric e Donald Junior, e Steve Bannon no papel de… bem, no papel de Steve Bannon, com uma participação pequena mas relevante nas duas versões da novela, sempre atiçando os piores instintos dos protagonistas e sempre encontrando um modo de não ir para a cadeia.
É inevitável que eu seja acusado de exagerar na comparação dos dois casos: “Ei, Brian, você sabe que Brasil e Estados Unidos são dois países diferentes?” Claro. Mas eu entrevistei o falecido Olavo de Carvalho em sua casa na área rural da Virgínia e fui apresentado à sua coleção de rifles, enquanto a tevê, ao fundo, estava ligada na Fox News. Fiquei horrorizado ao ver, de longe, Eduardo se encontrar com a família Trump em Washington na véspera dos tumultos ocorridos em 6 de janeiro, e depois lamentar publicamente que os insurgentes não tivessem “se organizado [melhor]… para poder matar todos os policiais do lado de dentro ou os congressistas que eles odeiam”. Há alguns anos, tive uma conversa com Bannon. Ele me perguntou como Bolsonaro estava “lidando com a questão da imigração”. Pareceu surpreso quando eu disse que os estrangeiros são menos de de 1% da população brasileira. Dois dos influenciadores brasileiros pró-Bolsonaro mais importantes moram no Sul da Flórida. Jason Miller, conselheiro de Trump, esteve no comício de Jair Bolsonaro em Copacabana no Sete de Setembro. Certa vez, Bolsonaro fez uma live no Facebook na qual ligou a tevê e ficou em silencio, assistindo Trump falar por quase 10 minutos!
Meu ponto é: sim, existem diferenças importantes entre os dois países, mas também existem dois movimentos, lá e cá, travando uma guerra sobre os mesmos temas. Os dois movimentos frequentemente trocam figurinhas no WhatsApp ou no Gettr e, muitas vezes, dão os mesmos passos, sobretudo quando se trata de contestar eleições democráticas.
Sendo assim, para mim e outros analistas, foi uma surpresa testemunhar que as eleições presidenciais brasileiras transcorreram sem maiores crises institucionais. Claro, Bolsonaro não reconheceu explicitamente o resultado, e as multidões de bolsonaristas reunidas diante de quartéis do Exército, implorando para que as Forças Armadas de algum modo devolvam o mito no que julgam ser seu devido lugar, podem ser sinais de problemas futuros. Mas, apesar das ressalvas, o processo eleitoral foi bem menos traumático do que muitos esperavam. Foi um triunfo evidente, ainda que imperfeito, da democracia brasileira. Quais as razões para isso? O que isso nos diz sobre o futuro do Brasil e dos Estados Unidos?
Já houve quem tentasse reescrever a história para sugerir que Jair Bolsonaro, na verdade, sempre foi um democrata, e qualquer sugestão de um “6 de janeiro brasileiro” não passou de mera invenção de globalistas de má fé, de jornalistas em busca de cliques ou de brasilianistas paranoicos que estabeleciam falsos paralelos com seu país natal. O fato é que Bolsonaro, depois de esperar 38 dias para reconhecer a vitória de Joe Biden em novembro de 2020, mais tempo do que qualquer outro chefe de Estado relevante no mundo, à exceção do norte-coreano Kim Jong-Un, pareceu começar a trabalhar quase imediatamente para evitar o mesmo destino de Trump.
Semanas mais tarde, em março de 2021, quando ainda havia barricadas em torno do Congresso norte-americano, Bolsonaro fez uma reforma ministerial cujas mudanças mais notáveis foram a do ministro da Defesa e a dos chefes das três Forças Armadas, em uma clara tentativa de colocar pessoas leais em posições decisivas. “Trump não foi inteligente o bastante para fazer isso”, me disse, na época, uma fonte próxima à família Bolsonaro. No entanto, com as pesquisas mostrando Lula com uma liderança considerável, Bolsonaro entrou de cabeça no modo “as eleições são uma fraude” e chegou a convocar o corpo diplomático em Brasília em julho para apresentar o hoje tristemente famoso PowerPoint ressaltando as vulnerabilidades imaginárias do sistema de votação. No final, a maior parte dos governos estrangeiros, dos legisladores brasileiros, da comunidade empresarial, dentre outros, não tinha dúvidas de que Bolsonaro tentaria manipular as eleições caso surgisse a oportunidade.
Sim, talvez seja uma pitada podre de egocentrismo norte-americano, mas raciocinemos juntos: será que o 6 de janeiro nos Estados Unidos não acabou ajudando a impedir que algo do gênero ocorresse no Brasil? Depois de nosso trauma nacional, ninguém mais podia dizer que “uma coisa dessas é impossível”, especialmente com um elenco tão claramente inspirado no original. Também é verdade que o Brasil tinha uma “vantagem” sobre os Estados Unidos – memórias recentes, vívidas, sentidas na carne, dos horrores do autoritarismo e de como as democracias podem desaparecer com facilidade. Sejam quais forem seus motivos, muitas instituições e indivíduos no Brasil reagiram com uma clareza e uma coragem que suas contrapartes norte-americanas ou não tiveram ou não acharam necessárias em meio a névoa de 2020.
A carta em apoio à democracia assinada por mais de um milhão de brasileiros, incluindo pessoas muito conhecidas da sociedade civil e da comunidade empresarial, foi um sinal inequívoco de que, dessa vez, ao contrário de 1964, o establishment não acompanharia Bolsonaro em uma aventura autoritária. Muitos governos estrangeiros expressaram forte confiança no sistema brasileiro de votação. Em privado, o governo Biden deixou claro aos militares brasileiros que qualquer desvio da democracia colocaria em risco as relações bilaterais em áreas como vendas de armas e compartilhamento de informações. Imediatamente depois do anúncio oficial da vitória de Lula, o presidente da Câmara de Deputados Arthur Lira, aliado de Bolsonaro, declarou que “a vontade da maioria, manifestada nas urnas, jamais deverá ser contestada”. A declaração acabou definitivamente com as chances que Bolsonaro talvez ainda tivesse de contestar o resultado. Como norte-americano, é impossível deixar de imaginar poderíamos ter evitado nossa própria catástrofe caso Mitch McConnell (líder do governo Trump no Senado) ou Kevin McCarthy (líder na Câmara) tivessem falado com a mesma clareza em 2020.
Não foi uma história perfeita. Os comandantes das Forças Armadas, embora não tenham criado obstáculos à transição, jamais deixaram de flertar com Bolsonaro e ainda fizeram pronunciamentos preocupantes — antes e depois das eleições – mostrando, de modo inequívoco, que pretendem continuar a se envolver na política, o que simplesmente não acontece nas democracias saudáveis. As ações do Tribunal Superior Eleitoral (tse), embora por vezes apropriadas, também levantaram questões preocupantes sobre possíveis vieses políticos e sobre o equilíbrio entre censura e prevenção de fake news. Também é verdade que Bolsonaro teve outras razões para se comportar bem. O forte desempenho eleitoral de seus aliados no Congresso e as vitórias para governos estaduais foram um incentivo para que Bolsonaro saia agora, de modo ordeiro, para voltar ao combate mais tarde. Em suas 48 horas de silêncio depois do resultado, foram seus amigos – e não os inimigos – que tentaram convencê-lo a não fazer uma política de terra arrasada ao sair do governo.
Pode ser que tudo isso acabe se revelando apenas um breve intervalo, e Bolsonaro e seu estilo particular de política logo ressurjam. Muita coisa dependerá de Lula, e de sua capacidade para retomar pelo menos em parte a magia dos anos 2000, ao mesmo tempo em que mantém o grande grupo de aliados que permitiu sua vitória – apertada – em 30 de outubro. Se as comparações entre Bolsonaro e Trump são inevitáveis, o mesmo ocorre com as similaridades entre Lula e Biden. O líder envelhecido, possivelmente já tendo vivido seu auge, lutando para manter unida uma coalizão que se criou em nome da democracia, mas que se divide em grandes divergências. No momento em que escrevo, Biden é o presidente menos popular a esta altura do seu mandato na história dos Estados Unidos. Nada será fácil.
Caso estejamos mesmo vivendo em um mundo de paralelos, os meses finais de 2022 nos deram alguns motivos de esperança. Apenas duas semanas depois de as instituições brasileiras terem passado por seu teste, as eleições de meio de mandato nos Estados Unidos mandaram uma mensagem igualmente positiva. Dos republicanos aliados de Trump que negavam explicitamente o resultado das eleições de 2020 – e estavam concorrendo a cargos para supervisionar futuras votações –, todos foram derrotados. Em outras palavras, o povo norte-americano permanece conservador, mas parece estar reconhecendo — e rejeitando — candidatos que colocariam a democracia em risco.
Até mesmo o anúncio de Trump de que concorrerá à Casa Branca em 2024, realizado algumas semanas depois, foi recebido com pouco entusiasmo pelo eleitorado republicano. Ficou a sensação de que o momento de Trump pode ter passado. Na noite das eleições, acompanhei os resultados num bar no estado da Pensilvânia, onde um candidato republicano que contesta o resultado das eleições de 2020 perdeu a disputa para o governo estadual. “Eu não podia votar nele”, um eleitor me disse, sacudindo a cabeça. “Sou conservador, mas não sou maluco. Tem uma diferença, sabe?”
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