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    Protesto do movimento negro na França; Assa Traoré (de turbante), cobra justiça para a morte do irmão - Foto: AFP

questões raciais

Adama, o Floyd francês

Quem é o jovem negro cuja morte motiva protestos contra o racismo na França e obrigou o governo a proibir o estrangulamento em abordagens policiais

Andrei Netto | 11 jun 2020_10h15
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Adama Traoré comemorava seu 24º aniversário em 19 de julho de 2016, dia exato em que morreu. Eram 19h05 no momento em que os socorristas do Serviço de Atendimento Médico de Urgência abandonaram os esforços para sua reanimação iniciados mais de uma hora mais cedo. A morte de Adama abriu um novo capítulo na luta contra o racismo na pátria que tem a igualdade como um de seu lemas. O rosto de Adama se tornou um estandarte nas manifestações como as que têm se repetido nas últimas semanas na França e voltaram a ocorrer nesta quarta-feira (10 de junho) – e quem o empunha é Assa Traoré, 35 anos, sua irmã e líder do Justice pour Adama (Justiça por Adama), o mais audível movimento negro da Europa.

A morte do jovem na cidade de Beaumont-sur-Oise, situada na periferia, 45 km ao Norte de Paris, traz os mesmos elementos da tragédia de George Floyd, que mobiliza os Estados Unidos contra os desmandos da polícia norte-americana. Adama, filho de uma família de imigrantes do Mali, morreu sob a custódia de agentes da Gendarmerie, a polícia militar francesa, minutos após ter fugido de uma interpelação porque não portava sua carteira de identidade. Com passagens pela polícia por delitos menores, ele havia sido abordado por agentes que visavam seu irmão, Bagui Traoré, ele sim investigado em um inquérito sobre extorsão violenta.

Nos minutos que se seguiram, jamais reconstituídos de forma oficial pela Polícia e pela Justiça da França – fato que por si só causa estranheza –, Adama foi detido uma primeira vez. Fingindo procurar seus documentos, ele acabou se livrando de um primeiro agente, antes de ser detido uma segunda vez e algemado. Ainda assim, teria reagido e fugido, até ser pego em definitivo.

Então teve início seu desterro. Flagrado no interior de um imóvel, foi imobilizado de bruços, face ao chão. Relatórios de testemunhas e dos agentes convergem para o fato de que três policiais, juntos, o dominaram, em uma carga que somava cerca de 250 kg sobre o corpo do suspeito. Peito prensado contra o chão, comprimido pelos agentes sobre suas costas, não opôs mais resistência. Ainda assim, foi dominado até perder o ar. Mais de uma vez, sinalizou aos policiais que não conseguia respirar. Ainda assim, a mando dos agentes, teria se levantado e caminhado com dificuldade até o carro de polícia que o conduziria à delegacia da cidade vizinha de Persan, situada a quatro minutos do local da prisão.

Segundo o relato dos policiais, Adama teria então dado sinais de que passava mal. Incontinente, urinou-se e foi levado, supostamente ainda respirando, ao interior da delegacia. Lá, algemado, teria sido colocado em Posição Lateral de Segurança (PLS), de forma a facilitar sua ventilação, segundo os agentes. Às 17h46, quando os socorristas do SAMU chegaram, Adama estava com o peito e o ventre ao solo, sem pulso. 

A primeira autópsia no corpo do jovem foi apenas o início de uma disputa judicial que perdura até hoje. O diagnóstico solicitado a especialistas nomeados pela Justiça indica que Adama não teria morrido por asfixia, mas por um problema de saúde, a anemia falciforme, uma alteração genética nos glóbulos vermelhos do sangue que afeta em particular negros – mas que nenhum outro membro da família Traoré porta – e que pode ser associada a problemas cardíacos. A família da vítima contesta a versão de que ele tinha a anemia falciforme. Especialistas independentes ouvidos no processo, se não são unânimes em afirmar que Adama sofria do problema, o são em assegurar que a anemia falciforme não explicaria a morte por asfixia.

Desde que as primeiras perícias legais vieram à tona, Assa, irmã mais velha do jovem, passou a levar o rosto do irmão em camisetas negras estampadas com as palavras Justice pour Adama. O movimento nasceu na  periferia e hoje ganha o coração de Paris. Em sua cruzada pela condenação dos três policiais por homicídio, Assa primeiro tornou-se porta-voz da insatisfação familiar antes de se consolidar como líder de uma mobilização nacional contra a violência policial na França.

Na terça-feira, 2, enquanto o mundo tinha os olhos voltados às manifestações de negros americanos no movimento Black Lives Matter, em memória de George Floyd, um protesto gigante reuniu em Porte de Clichy, no extremo Norte de Paris, dezenas de milhares de manifestantes em protesto contra o racismo policial no país. A mobilização desafiou a proibição do Ministério do Interior – órgão que controla as polícias – que tentava impedir reuniões sociais em meio à pandemia de Covid-19. A tentativa de conter a massa saiu pela culatra, e a manifestação acabou em revolta e depredações.

“Hoje nós estamos dizendo ‘Não!’, como o mundo inteiro diz contra a impunidade policial. Não à discriminação, não ao racismo persistente!”, disse-me Assa, em entrevista no dia seguinte ao grande ato. Articulada e feroz, a ativista fala rápido e sua voz traz um discurso afiado contra a polícia, sempre na ponta da língua. “Hoje, infelizmente, as pessoas que morrem, que são alvo de racismo, são as pessoas negras”, denuncia.

A sede de justiça e a revolta contra a violência policial foi incorporada por uma fatia da população francesa oriunda da imigração, não raro habitante das periferias, que se sente menosprezada pela sociedade e, sobretudo, segregada pelas instituições públicas. “Na marcha por Adama há de tudo. É uma luta na qual não importa de onde você vem. Pouco importa a classe social, pouco importa a cor da pele, pouco importa se é homossexual, pouco importa a religião”, argumenta. “Você não deve ser espectador da morte – não importa de quem seja.” 

Assa mira uma sociedade que ainda não se abriu, muito menos reconheceu o espaço devido às populações negras e imigrantes. “Na França, e eu penso que em vários outros lugares, nossos irmãos negros, nossos irmãos vítimas de racismo, não são considerados como participantes da construção deste mundo”, sustenta. Seu discurso encontra eco no peito de outros jovens que, como ela ou Adama, se sentem marginalizados. Em Paris, é provável que todo negro e imigrante de origem árabe saiba o que quer dizer “plaquage ventral” – a expressão francesa para “decúbito ventral”. E todos também sabem o que é o “contrôle au faciès”, uma espécie de seleção de quem será abordado ou revistado pela polícia com base em sua origem étnica. Há anos associações de defesa dos direitos humanos denunciam como discriminatória a prática, frequente na polícia da França, e que tem os franceses muçulmanos e de origem africana ou árabe como seus maiores alvos. Entre os jovens, a polícia é temida. 

Diante da onda de protestos nos Estados Unidos, e ciente do temperamento explosivo de amplos segmentos da opinião pública francesa, o governo do presidente Emmanuel Macron decidiu, enfim, agir. Quatro anos após a morte de Adama, e centenas de protestos depois, o chefe de Estado ordenou ao Ministério do Interior e pediu à Justiça que revise o caso, de forma a verificar se as queixas de manipulação de perícias médicas não estariam beneficiando indevidamente os três policiais. 

Pelo menos por um momento, a pressão mudou de lado. Na última segunda-feira, o ministro do Interior, Christophe Castaner, habitualmente um duro defensor da “firmeza” policial – a mesma empregada na repressão do movimento dos Coletes Amarelos, que deixou uma legião de pessoas cegas pelo uso abusivo de balas de borracha – teve de anunciar um pacote de medidas para enfrentar o racismo e a violência das forças de ordem. Em entrevista coletiva, ele pediu à corregedoria “tolerância zero” em relação ao racismo no interior da polícia, ainda que tenha afirmado não “existir uma instituição racista ou violência dirigida” a negros no país. Castaner anunciou, entre outras medidas, a proibição do estrangulamento como método de interpelação. O ministro prometeu ainda uma ampla reforma da Inspeção Geral da Polícia Nacional (IGPN), a corregedoria de polícias, com o objetivo de lhe dar mais independência em relação às forças de ordem que investiga. 

Já a ministra da Justiça, Nicole Belloubet, seguiu a determinação de Macron para que o caso Adama seja revisto pelas instituições e convidou pela primeira vez membros da família Traoré, entre os quais Assa, para uma reunião “de troca” de informações. A família recusou a cortesia. Assa, reconhecida nas ruas, é com frequência abordada por jovens negros que vêm elogiá-la pela liderança no movimento. Nas trocas, falam sobre violência policial e pedem uns aos outros: “Cuide-se”, em tom de advertência.

Nos meios policiais, as medidas anunciadas e a onda de questionamentos sobre a ética e o comportamento das forças de ordem gerou reações, como era de se esperar. Brigitte Jullien, diretora da corregedoria, saiu em defesa do órgão. “Eu não deixarei sujar sua honra”, ressaltou, seguindo o tom de sindicatos da categoria, que reclamaram de “abandono” por parte do governo.

Alheios à reação das polícias, milhares de manifestantes convocados pela ONG SOS Racismo se reuniram nesta terça-feira na Place de la République, em Paris, no mesmo momento em que George Floyd era velado nos Estados Unidos. No sábado, novo protesto será realizado no mesmo local.

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