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    Ilustração: Carvall

questões raciais

Impressões de uma pesquisadora negra na Suíça brasileira

Socióloga conta experiência de analisar branquitude e apagamento da população afrodescendente numa cidade marcada pela imigração europeia

Carol Canegal | 25 nov 2022_11h40
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Sou uma mulher negra carioca, jornalista e socióloga. Atuo como pesquisadora no Observatório da Branquitude, primeira organização da sociedade civil brasileira fundada em 2022 e dedicada à análise da identidade racial branca e suas estruturas de poder. Quando chegou o convite para participar da Festa Literária de Nova Friburgo (Flinf), no início de novembro, tive certeza de que o tema seria incômodo. Que tensões poderiam emergir da conversa sobre branquitude, privilégios brancos e estruturas de poder em um município cuja história lhe garantiu a alcunha de “Suíça brasileira”? Como seria estar na cidade sendo uma mulher negra em lugar de prestígio e falar sobre hierarquias raciais?

A preparação para a viagem a Nova Friburgo foi povoada por essas reflexões. No evento, compartilhei a mesa “A mulher na luta antirracista” com a professora Márcia Lobosco sob a mediação da curadora Maria Fernanda Macedo. Lobosco abordou a agenda do racismo a partir dos resultados de sua pesquisa de mestrado, na qual investigou a trajetória de professoras negras em Nova Friburgo. O foco é a construção dos processos de ser “negra-mulher-professora” na “Suíça brasileira” friburguense – periferia da perspectiva geográfica no estado fluminense e ao mesmo tempo central ante o prisma da raça. De acordo com o Censo de 2010 (IBGE), citado na pesquisa de Lobosco, a população da cidade serrana é composta por 72% de autodeclarados brancos contra 27% de pardos ou pretos. A dissertação de mestrado foi defendida no programa de pós-graduação em relações étnico-raciais no Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (Cefet/RJ).

Ao ouvir Lobosco, aprendi muito sobre a “história que a história não conta” naquele lugar, cuja colonização europeia conviveu com a economia do café movimentada pelos corpos negros escravizados. Lobosco e Macedo, assim como parte do público, ressaltaram a figura do Barão de Nova Friburgo, que seria um dos maiores escravagistas do Brasil. Essa pretensa harmonia entre colonos suíços, portugueses e negros escravizados deixou rastros no município fundado sob a ótica compulsória da europeização. E que, na leitura dos estudos críticos de branquitude, confere lugar, valor e humanidade de modo restrito aos portadores de brancura em dose extra, legitimada pela descendência estrangeira.

Dentro desse raciocínio, pessoas negras parecem configurar as outras dos outros em Nova Friburgo. Não são brancas e, nascidas no Brasil, descendem de indivíduos sequestrados da África para o projeto de escravização. Nessa esteira, a contribuição e a presença negra desaparecem, marginalizadas, estrangeiras, dado o protagonismo de brancos suíços na disputa pela formação simbólica e material de Nova Friburgo em detrimento, inclusive, da participação alemã. A pesquisa de Lobosco possibilita entrever, na percepção das professoras entrevistadas, a interdição sentida e sofrida nos processos de ascensão social. A sensação de não pertencimento persiste, fruto da opressão racial.

 

Minha fala abordou a branquitude como um sistema de dominação que coloca brancos no topo da pirâmide social. Atribui racialidade e subjetividade estigmatizantes a quem considera não branco, sendo essa a pedra fundamental do racismo. É nesses lugares de poder, onde há uma sobrerrepresentação de brancos, que o Observatório da Branquitude pretende atuar. Somos resultado do diagnóstico de que, embora haja um conjunto de organizações negras pulsantes, atuantes e fundamentais para a democracia, faltava uma que centralizasse a branquitude como máquina das desigualdades raciais. Portanto, o Observatório surge da necessidade de tirar o hiperfoco das relações raciais nos negros e indígenas e debater a responsabilização dos brancos.

Há um interesse crescente da universidade brasileira pelo tema, o que parece indicar caminhos interessantes para a reflexão em torno das relações raciais, incluindo o grupo social branco na agenda de preocupações. Em junho passado, nossa primeira pesquisa apontou que 69% das publicações sobre branquitude feitas nos últimos anos foram publicadas entre 2018 e 2021, considerando os últimos vinte anos de produção acadêmica. O trabalho de desvelamento da ocupação de espaços de poder pelos brancos aponta para um viés no racismo brasileiro, por meio do qual nos acostumamos a ver apenas um lado, aquele prejudicado dentro dessas relações. Centralizar essa discussão na branquitude, contudo, é mirar a face que constrói as dominações raciais dentro da sociedade. E a identificação da sobrerrepresentação branca só é possível a partir desse deslocamento do holofote.

Conforme nos ensinam a literatura e a empiria, é típico da branquitude assumir quaisquer posições de elevada estima social como exclusivamente dela. A fidelidade com a supremacia branca está na base do sistema que atribui características positivas a indivíduos de pele alva e reserva os avessos àqueles vistos como outros, de pele alvo, como dispara Emicida em Ismália. No jogo de imagens entre o “eu” e o “outro do eu”, a posição de outra me é atribuída – o que revela, antes de tudo, o universo conceitual branco e seus fantasmas. A branquitude nos marca diferentes porque detentora do poder de enunciar quem é igual; inferiores porque se nomina superior; impróprias porque, segundo seus parâmetros, é apropriada; nos grita exóticas porque se intitula beleza padrão.

Houve constrangimento? Talvez. Digo que o constrangimento é esperado, mais que isso, é desejável e benéfico, dada a urgência em se fazer conhecer e comunicar os efeitos de tal sistema de dominação racial, motor das profundas desigualdades de raça entre nós. É imperioso elucidar os mecanismos de produção do violento conforto material e simbólico resultante da herança colonial que condecora pessoas brancas. Situá-las no centro da cena de construção e reconstrução de um país para poucos consiste em um passo crucial rumo ao alcance de um patamar civilizatório capaz de promover responsabilização, reparação e justiça históricas para populações negras e indígenas.

Existir em meio à branquitude exige o esforço de resistir, insistir no fluxo de criação de mundos em choque com cenários estáticos nos quais somos rechaçados. A branquitude, vale dizer, o-dei-a movimento. Integrante da segunda geração familiar com acesso ao ensino superior, fui criada em Ipanema com privilégios caros à classe média. No entanto, nunca me senti uma moradora do bairro em sua plenitude.

Outsider no território de maioria branca no qual nasci, valorizado do ponto de vista simbólico e mercadológico, rapidamente entendi que as representações sobre meu corpo e meu fenótipo, depreciados social e racialmente, aportam em primeiro lugar nas mentes enviesadas pelas engrenagens pálidas reducionistas. Sob tais lentes serei a outra e está posta aí uma questão indispensável: o problema não é do negro. A branquitude deposita em nós seus medos e fantasias racializadas no domínio da agressão e da sexualidade, levando em consideração a articulação entre raça e gênero, nos informa a intelectual lusitana Grada Kilomba.

Mas temos uma notícia: estamos vivos e nos recusamos a caber no reflexo unidimensional. Sem a abundância dos nossos saberes, das nossas tecnologias, dos nossos modos de vida, não há cidade e tampouco cidadania. Fenece a utopia de nação. Todos definharemos fitando uma imagem brutal, desconexa, monótona e inverossímil de nós mesmos.

Contudo, o não lugar é também um lugar. É espaço de invenção, subversão e insubordinação ao projeto hegemônico da branquitude. Insubordinação que se concretizou na edição 2022 da Flinf com um inédito baile charme na praça principal, no centro da Suíça brasileira. Capitaneados pelo coletivo Império das Negas, jovens negras e negros dançaram suas músicas pela primeira vez naquele espaço público e reverenciaram suas culturas numa inesperada noite de frio.

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