minha conta a revista fazer logout faça seu login assinaturas a revista
piauí jogos

    No topo esquerdo, Wladyslaw Strzeminski, pintor construtivista; no topo esquerdo, Boguslaw Linda, ator que interpreta o pintor em "Afterimage"; no canto esquerdo inferior, o diretor Andrzej Wajda; e, no canto direito inferior, pintura de Strzeminski.

questões cinematográficas

Afterimage – a despedida de Andrzej Wajda

Diretor preservou até o fim a convicção de que a experiência histórica da Polônia tinha interesse universal

Eduardo Escorel | 24 ago 2017_10h22
A+ A- A

Não é a primeira vez que cito neste site o título do livro de Michelangelo Antonioni (1912-2007), publicado quando ele chegou aos 87 anos, após 57 de carreira – período em que fez alguns marcos do cinema moderno. Começo a Entender (Comincio a Capire, na edição original) é o nome do volume de 59 páginas que sempre me pareceu uma demonstração de sabedoria e modéstia.

Ao assistir há dias a Afterimage, de Andrzej Wajda (1926-2016), ocorreu-me, porém, que há também algo de melancólico no título de Antonioni. Afinal, quando o livro foi publicado em 1999 haviam se passado, pelo menos, três décadas desde que ele deixara de fazer filmes à altura dos que marcaram uma era na década de 60, época na qual ainda não completara 60 anos.

Wajda, reverenciado na Polônia e admirado mundo afora, também escreveu um livro com lições de sabedoria e, pelo menos, uma demonstração de modéstia. Tinha 60 anos quando Um Cinema Chamado Desejo foi publicado na França, em 1986, e três anos depois editado no Brasil. No caso dele, não há como negar, igualmente, que nos trinta anos seguintes não realizou nada comparável aos filmes que fez a partir da trilogia da guerra – Geração (1955), Canal (1957) e Cinzas e Diamantes (1958) – até os dois que serviram de manifestos para o movimento Solidarnosc (Solidariedade) – Homem de Mármore (1977) e Homem de Aço (1981).

Sem o mesmo poder de síntese do título de Antonioni, Wajda recomendou em Um Cinema Chamado Desejo que os diretores dissessem “nosso filme” em vez de “meu filme”: “‘Meu filme, minha ideia, meu roteiro…’, repetem sem parar os diretores. Durante a filmagem, é melhor, no entanto, dizer nosso filme, o que reforça a unidade da equipe, encoraja-a a um esforço comum, condições essenciais a um bom trabalho. Eu diria que, se o filme teve sucesso, pode-se continuar a dizer tranquilamente ‘nosso filme’, visto que os espectadores e os críticos só guardarão o seu nome – o do diretor. Em caso de fracasso, ao contrário, o diretor deve assumir a estrita responsabilidade: será ‘meu filme’” – lição de recato mal assimilada.

Depois de estrear no 41º Festival de Cinema de Toronto, Afterimage teve exibição especial fora de competição, em setembro de 2016, no Festival de Cinema de Gdynia, cidade no litoral polonês do Mar Báltico. Wajda esteve presente e foi ovacionado, um mês antes de morrer, aos 90 anos. Assim, ao ser lançado comercialmente em janeiro deste ano, na Polônia, o filme se tornara a obra de despedida do veterano diretor.

No último capítulo de Um Cinema Chamado Desejo, Wajda escreveu que na sua juventude esperou que “se pudesse mudar o mundo – e melhorá-lo. O cinema – arte do século XX – devia ser um dos meios eficazes para isso. Acreditamos que homens de diversos países, de diferentes raças e continentes aprenderiam a se conhecer graças ao cinema, que chega a sensibilizar todo mundo, e que eles se tornariam amigos e aliados. No entanto, o mundo parece gravemente enfermo; por mais que lhe sejam fornecidos brinquedos sempre novos, como a uma criança, ele não irá se curar”.

Não sei como a queda do Muro de Berlim (1989) e, dois anos depois, o fim da União Soviética, afetaram Wajda. No livro, publicado pouco antes desses eventos históricos, ele afirma: “Os filmes dos países socialistas não interessam a ninguém do Ocidente. O público desses países os julga tão antediluvianos como as lutas pelos direitos sindicais na Inglaterra do tempo de Marx. Assim, nossos esforços aqui, na Europa Oriental, não são de nenhum ensinamento para esse público que acredita na permanência do mundo atual.” Apesar disso, escreveu: “tenho certeza de que amanhã essa experiência [única que acumulamos aqui, no leste] interessará ao mundo inteiro!” E ainda: “os filmes destinados às elites, aos happy few, não são aceitáveis para mim, vindo da velha tradição do cinema: eles representam, a meus olhos, um fracasso definitivo”.

Afterimage demonstra que Wajda preservou até o fim a convicção de que a experiência histórica da Polônia tinha interesse universal. Situado entre 1948 e 1952, o filme trata da resistência individual de um artista ao autoritarismo do regime comunista. É um embate duro e sofrido entre vanguarda e realismo socialista, com desfecho trágico. O que não parece ter ocorrido a Wajda é a incongruência que mina Afterimage e, como já foi escrito, exclui o filme “do panteão de suas maiores realizações” – de um lado, defesa da inovação formal da pintura do construtivista Wladyslaw Strzeminski (1893-1952), revivido em interpretação de alto quilate por Boguslaw Linda, de outro, estrutura e narrativa clássicas, para não dizer convencionais, sem a menor inquietação com os parâmetros neorrealistas da linguagem adotada.

Wajda conclui seu livro dizendo ser “contra a ideia de que a arte do cinema é um mistério, e o público um mal necessário a expressão do artista”. Foi por isso, ele diz, que aderiu ao movimento polonês de Solidariedade. “Sou fiel a seu ideal, pois vejo nele o único remédio para nossa solidão estéril, para o vazio que ameaça as pessoas que estão prontas a sacrificar o bem comum por seu conforto, para quem a palavra paz só significa o seu desejo de que lhe deixem em paz…”

Em entrevista por e-mail, em setembro do ano passado, à crítica e curadora Ela Bittencourt, disponível na íntegra aqui, Wajda contou, um mês antes de morrer: “fiz Homem de Aço a pedido de um trabalhador do estaleiro de Gdansk, que me fez entrar na reunião do comitê de greve. Ele me disse: ‘Por que você não faz um filme sobre nós?’ ‘Qual tipo de filme?’, eu perguntei. ‘Homem de aço’, ele disse [dessa maneira sugerindo o título]. Meu principal desafio era fazer o filme antes que a Polícia Militar, que recebeu ordem para ‘pacificar’ o sindicato Solidariedade, ocupasse o estaleiro. Eu fiz. E graças à intervenção em minha defesa das pessoas que supervisionavam a indústria cinematográfica polonesa, fui até autorizado a mostrar meu filme em Cannes, onde ganhou a Palma de Ouro.”

Nessa mesma entrevista, Wajda recomendou aos jovens diretores poloneses que tirassem “lições do mundo à sua volta. Não há nenhuma outra maneira – eles precisam aprender a fazer filmes sobre eles mesmos dirigidos a seus contemporâneos”.

Assine nossa newsletter

Toda sexta-feira enviaremos uma seleção de conteúdos em destaque na piauí