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    No ano passado, a Águas do Rio foi uma das pessoas jurídicas com maior número de processos na Justiça do Rio: 29 mil, ao todo Foto: Reprodução

questões urbanas

Torneira aberta de lambanças

Contas de mil reais em apartamentos de 65 m² e outros problemas (novos e antigos) dos serviços de água concedidos à iniciativa privada no Rio

Amanda Gorziza, do Rio de Janeiro | 20 maio 2024_10h15
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Adrian Poggi, 44 anos, é síndico de um prédio na Glória, bairro da Zona Central do Rio de Janeiro. Cabe a ele administrar as contas de água dos moradores, tarefa que sempre cumpriu com zelo. Habituou-se a boletos que cobravam, em média, 120 reais por apartamento. Até que, em abril de 2023, Poggi foi surpreendido com uma conta espantosa: a Águas do Rio, uma das concessionárias responsáveis pelos serviços de água e esgoto na cidade, estava cobrando 50 mil reais de um dos blocos do edifício, em uma fatura única. Como o bloco tinha 53 apartamentos, isso equivalia a quase mil reais por condômino. Uma conta sem pé nem cabeça, considerando, além de tudo, que não são apartamentos grandes, a maioria deles com 65 m² de área.

Nos meses seguintes, os boletos seguiram na mesma ordem de grandeza: às vezes somavam 50 mil reais, em outras 58 mil. Poggi foi atrás de explicações e descobriu a causa do aumento: a Águas do Rio, de uma hora para a outra, tinha mudado o cadastro do prédio – que, em vez de ser cobrado como um conjunto de 53 apartamentos, passou a ser cobrado como um único imóvel. A tarifa no Rio cresce conforme o consumo de cada unidade habitacional (a cada 15 m³ de água usados, muda o cálculo da tarifa, que vai ficando progressivamente mais cara). Por isso, o prédio, ao ser cadastrado como se fosse uma casa, foi jogado para uma faixa de preço altíssima – afinal, era como se uma só casa estivesse consumindo o equivalente a um prédio, e estivesse então sendo punida por um desperdício enorme de água.

Poggi acionou seus advogados, que não se surpreenderam com a notícia. Meses antes, o prédio tinha processado a Águas do Rio por aquilo que eles consideravam uma irregularidade nas contas: em vez de cobrar exatamente o que os moradores tinham consumido de água, a empresa vinha adotando um cálculo chamado “mínimo multiplicado pelas economias”. É uma conta feita por estimativa: em vez de cobrar o que foi usado, a empresa pega o valor mínimo de consumo e multiplica pelo número de apartamentos. Como, em média, as pessoas no Rio consomem menos que o valor mínimo, de 161 reais, o cálculo é vantajoso para a empresa, que consegue arrecadar mais.

Os advogados não se surpreenderam porque, segundo eles, a Águas do Rio vinha alterando o cadastro de vários prédios que a processavam na Justiça. Era uma “represália”, explicou Eduardo Figueira, engenheiro e perito judicial que defende Poggi e uma centena de outros clientes nessa área do direito.

Essa prática é comum desde os tempos da Cedae e continua acontecendo com frequência sob a gestão da iniciativa privada. “Isso é feito de maneira recorrente para postergar os processos e tentar inibir outros prédios que queiram entrar na Justiça”, afirma Patrícia Finamore, engenheira ambiental e pesquisadora do Laboratório de Estudos das Águas Urbanas da UFRJ. 

As concessionárias de águas no Rio de Janeiro têm recebido um número crescente de reclamações. Entre janeiro e março deste ano, a Águas do Rio, a Iguá e a Rio+Saneamento – as três empresas que compraram a concessão de parte dos serviços que eram da Cedae – foram alvo de 612 queixas no Procon, o equivalente a metade de todas as reclamações em 2023 inteiro.

A maioria das queixas é direcionada à Águas do Rio, que administra o serviço de água e esgoto nas zonas Central, Sul e Norte da capital, e também em outras cidades do estado. Clientes reclamam do aumento dos preços, mas também de serviços não prestados e interrupção do fornecimento de água.

No ano passado, a Águas do Rio foi uma das pessoas jurídicas com maior número de processos na Justiça do Rio de Janeiro: 29 mil casos, ao todo. Perdeu somente para o próprio Estado do Rio e para as distribuidoras de energia Light e Enel (antiga Ampla), que também acumulam reclamações.

 

A Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (Cedae), uma empresa de economia mista, teve três de seus blocos leiloados em abril de 2021, e um quarto bloco em dezembro. O valor arrecadado foi de 24,9 bilhões de reais, na época – quantia 130% maior que o lance mínimo definido pelo governo. Foi a maior concessão desse tipo já feita no Brasil, o que acabou abrindo caminho para outras. Em São Paulo, a Assembleia Legislativa aprovou no ano passado a privatização da Sabesp (que ainda não se consumou). Em Porto Alegre, a prefeitura estuda a privatização da Dmae.

Concessão não é o mesmo que privatização. A autorização para distribuir água para as cidades do Rio de Janeiro não foi vendida, e sim transferida para a iniciativa privada por um prazo de 35 anos. A Cedae continua existindo nos municípios que não estavam incluídos nos blocos leiloados. Além disso, a empresa ainda é responsável por operar parte do sistema hídrico do estado.

A concessão da Cedae para a iniciativa privada era uma pauta antiga no debate político do Rio, em parte por causa dos interesses econômicos envolvidos, mas também por causa das várias reclamações que a empresa sofria. Cobranças indevidas e falhas de abastecimento eram corriqueiras, acompanhadas de eventuais queixas sobre a má qualidade da água (como no verão de 2020, quando a geosmina dominou as águas do Rio de Janeiro).

Os problemas, no entanto, não só continuaram ocorrendo como ganharam novos contornos. A começar pelas cobranças por estimativa: a prática, que era adotada há muitos anos pela Cedae, foi vedada em 2010 por uma súmula do Tribunal de Justiça do Rio. Pouco depois, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) também a proibiu. Os juízes entenderam que, nos prédios onde há hidrômetro, não há motivo para fazer estimativas. Hoje, no entanto, essa é uma das reclamações mais frequentes contra as concessionárias do Rio.

Contribuiu para esse imbróglio um decreto do governador Cláudio Castro, publicado em outubro de 2022. O texto mudou algumas regras sobre a atuação das empresas que cuidam da água no estado. Autorizou, entre outras coisas, que elas fizessem a cobrança de água por estimativa.

“O decreto foi cirúrgico em anular todas as defesas de consumidor”, lamenta Figueira, o perito judicial. O advogado João Victor Mallet, que também representa clientes em processos contra as concessionárias, concorda: “Essa alteração gerou insegurança jurídica. Tem um lugar dizendo uma coisa, e tem súmulas na Justiça e o Código de Defesa do Consumidor dizendo outra.”

Em 2021, o caso voltou ao STJ, que deverá decidir se, afinal, a cobrança de água por estimativa é legal ou não. Enquanto isso não acontece, a Justiça tem dado ganho de causa aos clientes. Os desembargadores entendem que a súmula do Tribunal de Justiça do Rio, publicada em 2010, se sobrepõe ao decreto do governador. “O problema é que são poucas as pessoas que têm acesso à Justiça no Brasil”, afirma Figueira. Muitos prédios sequer notam que estão sendo cobrados por um consumo maior do que tiveram. Outros notam, mas preferem não enfrentar o desgaste e os custos de um processo judicial. 

“Os prédios que entram na Justiça são os de renda mais alta”, diz Finamore, a pesquisadora da UFRJ. “Isso causa um subsídio reverso, já que quem tem mais dinheiro acaba pagando menos do que quem tem menos dinheiro.”

O decreto do governador abriu outras brechas. As concessionárias agora podem, por exemplo, cobrar uma tarifa para ligar e desligar a água dos imóveis. “Nessa primeira fase, o objetivo das concessionárias é ter ganhos financeiros para depois fazer investimentos maiores. Como são empresas do mercado financeiro, elas têm uma lógica de gestão comercial”, argumenta Ana Lucia Britto, professora que também faz parte do laboratório da UFRJ e do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (Ondas).

Procurada pela piauí, a Águas do Rio argumentou que a cobrança por estimativa é legal, respaldada no decreto de Cláudio Castro. A empresa ressaltou, no entanto, que o procedimento padrão é conferir o hidrômetro dos prédios para, com base no consumo, calcular a conta. Não respondeu por que a cobrança no prédio da Glória desconsiderou os números do hidrômetro. Nem por que o prédio foi cadastrado, equivocadamente, como uma casa.

 

Além dos problemas antigos que se agravaram, há problemas novos. Advogados e moradores ouvidos pela piauí relatam episódios de constrangimento causados por funcionários das concessionárias de águas, negativação dos clientes e cortes súbitos de abastecimento em casos de inadimplência. Este último raramente acontecia sob a gestão da Cedae.

O prédio da Glória sofreu tentativas de corte de água, mesmo tendo obtido uma liminar na Justiça que o protege desse tipo de investida (em algumas vezes, o corte só não aconteceu porque Poggi estava presente e impediu a entrada dos funcionários da Águas do Rio). O professor de música Tiago Machado, que mora com a família há catorze anos na mesma casa em Botafogo, diz ter se sentido intimidado pela Águas do Rio recentemente. Ele conta que funcionários da empresa bateram à sua porta carregando máquinas de cartão e pediram que ele quitasse, no ato, as dívidas que tinha.

Machado explica que sua conta de água subiu de um patamar de 150 reais para 650 em maio, sem explicação plausível. “Não consigo fechar meu mês pagando esse valor, então tenho que trabalhar mais para conseguir pagar as dívidas”, lamenta o músico, que entrou na Justiça contra a Águas do Rio.

No início deste ano, o professor tinha três contas de água em aberto. Somente uma delas estava atrasada. “O funcionário pediu para eu pagar as três, e não só a que estava atrasada. O total daria 1,5 mil reais. Eles disseram que, se eu não pagasse, cortariam a água.” Machado diz que precisou pedir dinheiro emprestado para quitar o valor. Em abril, ele conseguiu uma liminar da Justiça que o permite depositar em juízo o valor que considera correto – isto é, que equivale ao seu consumo de água. O dinheiro ficará retido na Justiça até a conclusão do processo judicial.

 

O advogado Jorge Niemeyer, dono de um vasto portfólio de ações contra concessionárias de água, diz que já ouviu muitos clientes dizerem: “Nós éramos felizes com a Cedae e não sabíamos.” Ele concorda: “Eu não conheço ninguém que tivesse um protesto na época da Cedae.” Niemeyer se refere a um documento chamado “protesto”, cuja função é comprovar a inadimplência de uma determinada pessoa. Ao receber um protesto, a pessoa fica negativada, com o nome sujo. A Cedae, explica o advogado, cobrava dívidas, mas nunca negativava os consumidores. “Desde 2022, a Águas do Rio protestou muita gente”, lamenta Niemeyer. “Vieram muito agressivos.”

Sob a gestão privada, já houve três aumentos no preço da água no Rio. A qualidade do serviço, no entanto, ainda é contestada. Vários municípios da Baixada Fluminense sofrem com desabastecimento crônico. Em janeiro, parte da população de Nova Iguaçu ficou dezessete dias sem água. Rompimentos de tubulações são frequentes. Em São Gonçalo, moradores do bairro Laranjal relatam ter recebido boletos da Águas do Rio no fim de 2022, o que causou espécie: não apenas a região não é atendida pela rede de água encanada, como os moradores nunca forneceram seus endereços para a empresa.

Um levantamento do Instituto Trata Brasil analisou as condições de saneamento das cem cidades mais populosas do Brasil. Entre as vinte piores, quatro ficam na Baixada Fluminense: Belford Roxo, Duque de Caxias, São Gonçalo e São João de Meriti. O estudo usou como referência os padrões do Novo Marco Legal do Saneamento Básico, que visa garantir que até 2033 todos os municípios brasileiros atendam ao menos 99% de sua população com água potável e no mínimo 90% com coleta e tratamento de esgoto.

A mediação entre as concessionárias e a Cedae é feita pela Agência Reguladora de Energia e Saneamento Básico do Estado do Rio de Janeiro (Agenersa). Cabe a ela fiscalizar o trabalho das empresas e, em caso de irregularidade, multá-las. Os pesquisadores da área, no entanto, afirmam que a agência não tem estrutura grande o suficiente para dar conta da missão. Atualmente, cinquenta funcionários concursados trabalham na Agenersa.

A agência se respalda no decreto de Cláudio Castro e considera, portanto, que a cobrança por estimativa é legal. Até hoje, não aplicou nenhuma multa para coibir essa prática. Mas informou, por nota, que está aguardando a decisão do STJ. “Desde o início da concessão, em 2022, a Agenersa tem 99 processos abertos que podem gerar penalidades por descumprimento de cláusulas contratuais e/ou falha na prestação do serviço”, disse a agência.

O Ministério Público do Rio de Janeiro informou à piauí que estão em curso, atualmente, seis inquéritos civis para investigar possíveis abusos na cobrança feita pelas concessionárias. A Iguá e a Rio+Saneamento, assim como a Águas do Rio, alegam que a cobrança por estimativa está dentro da lei.

O prédio de Adrian Poggi recebeu cobranças exorbitantes durante um ano. Os boletos pediam, em média, 50 mil reais. Como o processo tramitava na Justiça, o síndico não pagou essas fortunas mensais. Em vez disso, depositou em juízo apenas o valor que seus advogados julgavam ser o correto – isto é, o valor proporcional ao que tinha sido consumido de água.

Somente em maio deste ano, depois de ser procurada pela piauí, a Águas do Rio corrigiu o cadastro do prédio, que voltou a ser considerado… um prédio. O valor da conta de água, com isso, despencou para 5,5 mil reais – o equivalente a 100 reais por apartamento. Um décimo do que vinha sendo cobrado.

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