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    Kalil observa entrevista de Tramonte: cabo eleitoral sem êxito Imagem: Divulgação

questões políticas

Vida e morte de um outsider

A trajetória de Alexandre Kalil, que não conseguiu levar seu candidato ao segundo turno em BH, ajuda a entender a conturbada política mineira

Roberto Andrés, especial para a piauí | 18 out 2024_08h55
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O personagem mais forte da política de Belo Horizonte nas duas últimas eleições municipais sofreu um grande revés. Um revés que talvez encerre, ou abale, sua meteórica carreira política. Para sobreviver, ele terá a difícil tarefa de se reinventar pela terceira vez em um curto espaço de tempo. Trata-se de Alexandre Kalil, o ex-cartola de futebol e ex-prefeito que, há quatro anos, parecia uma liderança imbatível na cidade. Com seu candidato à prefeitura, Mauro Tramonte (Republicanos), fora do segundo turno (a ser disputado por Fuad Noman, do PSD, e Bruno Engler, do PL), Kalil não teve somente um baque eleitoral – ele perdeu dois dos principais ativos da política: a confiança dos eleitores e a expectativa de poder futuro. Entender a ascensão e queda desse personagem ajuda a compreender a conturbada política mineira dos últimos anos.

Para isso, precisamos voltar a 2008. Lula estava no meio de seu segundo mandato presidencial. Fernando Pimentel, do PT, terminava uma gestão bem avaliada à frente da prefeitura de BH. Já eram dezesseis anos de governos de esquerda na cidade, e as coisas iam bem. O caminho natural seria trabalhar pela eleição de um sucessor, do PT ou de um partido aliado. Mas Pimentel não viu vantagem nesse arranjo – seria difícil para ele garantir que o candidato fosse de seu grupo, o que poderia fortalecer adversários dentro do partido; de outro lado, se perdesse a eleição para o PSDB do governador Aécio Neves, sairia menor do pleito. Assim, o então prefeito fez um movimento inusitado: aliou-se ao governador para apoiar um candidato de consenso. O escolhido foi Marcio Lacerda, um milionário que residia em um condomínio fora da cidade – e um ilustre desconhecido na política, que se filiou ao PSB às vésperas da disputa.

Eleitoralmente, a coisa deu certo. Pimentel e Aécio se uniram na campanha, gravando peças em que celebravam a união de seus partidos. Era a versão mineira do “consenso de centro” – termo da cientista política belga Chantal Mouffe para tratar da dissolução da disputa entre direita e esquerda, que marcou muitos países entre os anos 1990 e 2000. O problema, na visão da autora, é que esse movimento dos polos rumo ao centro mina a alternativa dos eleitores, que deixam de poder optar por projetos políticos distintos. A resposta ao consenso de centro é a emergência de outsiders. Em BH, quem ocupou o vácuo em 2008 foi Leonardo Quintão, do atual MDB. Com um carregado sotaque mineiro e um estilo “capiau sincero”, o então deputado foi ao segundo turno e chegou a ameaçar a aliança entre prefeito e governador. Quintão falava com o povo, o que destoava da parca habilidade retórica de Lacerda. A elite local reagiu e empreendeu um cordão sanitário que, junto com as máquinas dos governos, elegeu o candidato do PSB.

Em sua primeira gestão, Lacerda manteve funcionando uma geringonça em que PT e PSDB conviviam no governo. Mas a tônica do prefeito era a de gerir a cidade como se fosse uma empresa. Ele abusava de vendas de bens públicos, remoções de ocupações urbanas, proibição do uso de praças e outras políticas nessa linha. Logo nasceu uma forte oposição de novos grupos à esquerda, que cresciam naquele momento e que marcaram a cena da cidade com atos de contestação como a “Praia da Estação”. Não demorou para que o PT fosse desembarcado da coalizão de Lacerda, às vésperas da eleição de 2012. Sem alternativa, o partido tirou do bolso na última hora um candidato de oposição: o ex-prefeito e ex-ministro Patrus Ananias, à época muito popular na cidade. Mas a candidatura ficou sem discurso, já que o PT participara da gestão contra a qual precisava se opor. Lacerda foi reeleito no primeiro turno, com 52,69% dos votos válidos, enquanto Ananias teve 40,80%. Seria difícil imaginar que, mesmo com uma candidatura improvisada, esse seria, de longe, o melhor resultado do PT na disputa pela prefeitura da cidade nos anos seguintes.

Nas eleições de 2016, o mundo já era outro. Fernando Pimentel tornara-se governador, e fazia um governo sem brilho e mal avaliado. Vivia-se o auge da Operação Lava Jato, e acabara de ocorrer o impeachment de Dilma Rousseff. O PT estava em baixa, e seu principal rival, o PSDB, começava também a ser alvejado pela operação. Aquele foi o ano de chegada de outsiders na política brasileira – um deles foi Alexandre Kalil. Ele já era uma figura conhecida na cidade, pela sua atuação como presidente do Atlético Mineiro, que levou à primeira conquista da Copa Libertadores da América pelo clube, em 2013. Candidatando-se pelo minúsculo PHS, e com duas outras legendas pequenas  (Rede e PV) na coligação, Kalil tinha 23 segundos de tempo de televisão para sua propaganda. Seus principais adversários tinham 5 a 10 vezes mais tempo. 

Mas o ex-cartola chegou com tudo. Seu slogan era “Chega de político. É hora de Kalil”. Uma de suas peças de campanha recuperava imagens da aliança entre Aécio Neves e Fernando Pimentel, mas agora em chave negativa, como uma crítica à política de padrinhos. Seu jeito carrancudo emanava um carisma singular, que a torcida do galo já conhecia. A “autenticidade”, característica atualmente debatida à exaustão nas análises da extrema direita, era o ponto forte do candidato. Mas Kalil não é da extrema direita. É um populista clássico, que captura a insatisfação popular para construir sua narrativa. Como em 2016 ele foi para o segundo turno contra João Leite, do PSDB, logo tratou de trazer a esquerda para seu barco. Encaixou em seu discurso uma prioridade social, que soava sincera – embora algo paternalista e autoritária. Após terminar em segundo lugar no primeiro turno, Kalil virou o jogo no segundo e elegeu-se prefeito. 

Após a posse, a capacidade de comunicação continuou em alta. Kalil de certa maneira reeditou a geringonça de Lacerda, montando um secretariado com quadros do PT e do PSDB, mas seguiu com um discurso de oposição a esses partidos. Por incrível que possa parecer, funcionou. Tornou-se assim um tipo raro na política: um populista de centro. As características do populismo – oposição do povo contra elites, construção de uma narrativa polarizada, alta voltagem na comunicação – estavam todas ali, mas a agenda do prefeito era moderada, de centro. Kalil aparecia pouco, o que dava a sensação de que trabalhava muito. Quando se pronunciava, era um acontecimento.

Com a chegada da pandemia de Covid, o prefeito se destacou ainda mais. Nomeou um comitê de especialistas e fez escolhas duras. Embora a gestão fosse técnica, a comunicação era, mais uma vez, popular. Não era fácil bancar medidas de isolamento social, quanto mais frente a um presidente da República que boicotava as medidas preventivas e chamava o povo para sair às ruas sem máscara. Kalil bancou. Disse mais de uma vez que estava “com medo”, de uma forma que gerou empatia. Não soava como um político tecnocrata que pede o cumprimento de medidas sanitárias, mas como o tio turrão que dá uma bronca na molecada irresponsável. Assim o prefeito terminou o primeiro mandato com alta popularidade, e tornou-se odiado pela direita bolsonarista.

 

Quando concorreu à reeleição, Kalil já estava no PSD. Seu partido anterior, o PHS, fundira-se com o Podemos, devido às novas regras de cláusula de barreira. Kalil negociou com Gilberto Kassab a entrada no PSD em 2019, e passou a contar com maior estrutura. Às vésperas da definição da chapa, a popularidade do prefeito estava nas alturas. Assim, ele não precisou negociar o cargo de vice para compor uma coalizão e escolheu seu secretário da Fazenda, Fuad Noman, também filiado ao PSD, para ser seu companheiro de chapa. Economista de formação, Noman trabalhara na presidência de Fernando Henrique Cardoso e ocupara duas secretarias nos governos de Aécio Neves em Minas – a de Fazenda e a de Transportes e Obras Públicas. A ampla experiência administrativa tinha como outra face o total desconhecimento do público – poucos na cidade sabiam quem era o vice de Kalil. 

A eleição de 2020 foi tranquila para o então prefeito. Uma de suas estratégias de campanha foi abordar publicamente as promessas não cumpridas. A fala soava sincera para o público e o blindava das críticas dos adversários – “o Kalil tentou mexer na caixa preta do ônibus, mas não tem jeito”, me lembro de ouvir de um eleitor em um grupo de pesquisa qualitativa durante aquele pleito. Assim ele venceu no primeiro turno, com 63,36% dos votos. Nenhum outro candidato chegou a 10%.

O sucesso fez com que Kalil passasse a ser visto como opção de poder, inclusive fora de Minas Gerais. Pouco após a reeleição, ele deu uma entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura de São Paulo, em que chamou a atenção do mundo político nacional. Sua boa capacidade de comunicação mostrou que havia alternativas populares no campo progressista, para além de Lula. Começaram as conjecturas de seu nome como possível vice em uma chapa presidencial em 2022. O outsider estava em lua de mel com a política.

No pleito de 2022, Kalil se aliou ao PT para ser o candidato de Lula ao governo do estado. Enfrentou o então governador Romeu Zema, que tinha a máquina do governo e uma gestão bem avaliada. Zema é um político sem graça, de discurso monocórdico, mas que dá a impressão de ser um gestor eficiente – embora a situação fiscal do estado esteja calamitosa. Desbancar o governador não seria fácil, mas muitos achavam que Kalil estava à altura da empreitada. Não foi o caso. O figurino novo não encaixou bem no personagem. Abraçado a Lula, Kalil deixava de ser o cara independente, de fora da política, e tornava-se mais um dentre os candidatos apadrinhados. Suas falas deixaram de soar autênticas e pareciam somente agressivas. Conta-se que houve uma série de desentendimentos entre Kalil e a cúpula do PT de Minas. Ao final, Zema foi reeleito no primeiro turno, com 56% dos votos, enquanto Kalil alcançou 35%. O ex-prefeito perdeu inclusive em Belo Horizonte, cidade que governava com alta popularidade meses antes do pleito. 

A Prefeitura de Belo Horizonte ficou nas mãos de Fuad Noman, o vice que era de confiança do prefeito. Durante os dois anos em que governou, Fuad foi um prefeito desconhecido, enquanto Kalil recolheu-se. Alexandre Silveira, que fora candidato ao senado também pelo PSD, tornou-se ministro de Minas e Energia do governo Lula (o ministro é, aliás, prócer da agenda mais regressiva do governo, como o projeto de explorar petróleo na foz do Rio Amazonas). Silveira é um político tradicional, que sabe articular com prefeitos do interior e parlamentares aliados. Já Kalil é um ator que joga sozinho, e tudo que tem a oferecer são seu carisma e sua boa comunicação. Parece não ter sido suficiente para que o governo Lula o trouxesse para perto. 

Às vésperas da eleição de 2024, Kalil estava hesitante. O natural seria apoiar seu ex-vice, mas dois fatores pareciam o afastar de Noman. O primeiro era que adversários reduziam seu espaço dentro do PSD (para o pleito de 2026, a tendência é o partido lançar o atual presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, como candidato ao governo de Minas, com possível apoio de Lula e do PT). O segundo é que Noman não emplacava nas pesquisas. Durante toda a pré-campanha, o prefeito de BH ficou com somente um dígito nas pesquisas e manteve-se desconhecido da maioria da população. 

Kalil começou a apontar para vários lados. Recebeu e deixou-se fotografar com diferentes postulantes à prefeitura, como Carlos Viana, do Podemos, Bella Gonçalves, do Psol, e Duda Salabert, do PDT. Seu apoio era desejado pelas candidaturas, já que seguia popular na capital. Na última hora, Kalil fez uma aposta ousada: decidiu apoiar Mauro Tramonte, do Republicanos, que liderava as pesquisas. O movimento era uma ruptura com a esquerda, já que Tramonte era o candidato do partido do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, possível desafiador de Lula em 2026. Além disso, poucos dias depois, Tramonte anunciou quem seria sua vice: Luísa Barreto, do Partido Novo, indicação de Romeu Zema. Na convenção que selou a candidatura, Kalil sentou-se à mesa junto com seu principal adversário.

Durante a campanha, Tramonte foi visto como um “Datena que deu certo”, já que ele vem do mesmo programa televisivo do apresentador paulistano e disputava a prefeitura a partir da alta visibilidade que adquiriu. Kalil entrou de cabeça na campanha, rodando a cidade em passeatas e gravando vídeos com fortes críticas a seu ex-vice. O movimento causou um racha na base do ex-prefeito. Os eleitores de esquerda sentiram-se traídos, enquanto o eleitorado mais amplo teve dificuldades de entender por que, de um dia para o outro, Kalil passou a tecer críticas à gestão da prefeitura que ele mesmo legou à cidade. Além disso, há dúvidas se a participação tão forte de Kalil ajudou ou atrapalhou a candidatura de Tramonte – já que pode ter afastado um eleitorado mais à direita. 

Nos últimos dias da eleição, Tramonte derreteu. O “Datena que deu certo” deu errado. Com apenas 15,22% dos votos válidos (frente a cerca de 30% nas pesquisas durante toda a campanha), o candidato do Republicanos ficou de fora do segundo turno. Foi superado por Bruno Engler (34,38%), o candidato de Bolsonaro, e por Fuad Noman (26,54%). Kalil apostou no cavalo errado, e colocou nele muitas fichas. Os movimentos erráticos o fizeram perder parte da confiança de seu eleitorado, ao passo que seu intenso envolvimento sem resultados fez com que diminuísse a expectativa de poder sobre ele. Tudo isso ocorreu junto a uma briga visceral do ex-prefeito com o grupo que hoje controla o Atlético MG, formado por empresários como Ricardo Guimarães e Rubens Menin – hoje uma figura fortíssima na cidade, que controla, além do time de futebol, a construtora MRV, a rádio Itatiaia e a CNN Brasil. 

A ascensão e queda de Kalil ilustra os dilemas da vida de outsiders na política. Quando aparecem, aparentam ter um poder enorme, muito maior do que o dos políticos profissionais. Mas, com o passar do tempo, têm dificuldades de operar o jogo cotidiano – construir alianças de longo prazo, realizar movimentos bem calculados e constituir grupos de sustentação. Assim o ciclo que vai da arrancada ao auge e à queda costuma ser curto (o que está se acentuando nas versões mais atuais do tipo). Mas ainda é cedo para dizer que o ex-prefeito é carta fora do baralho. Kalil se desgastou, mas não se sabe como serão as próximas eleições no estado e na capital. Se não houver candidatos fortes, pode ser que ele volte a figurar como opção. Ele precisará se reinventar mais uma vez e convencer o eleitorado de que é uma escolha confiável, o que exigirá bastante de sua grande habilidade comunicativa.

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