Manifestante carrega cartaz de Alexei Navalny em frente à Embaixada da Rússia, em Varsóvia, na Polônia (Foto: Sergei Gapon / AFP)
Um herói trágico de nosso tempo
A morte do dissidente russo Alexei Navalny em uma prisão gelada traz para a política real a dignidade dos dramas de Sófocles e Shakespeare
Alexei Navalny deveria ter morrido em agosto de 2020. Naquele mês, quando viajava pela Sibéria para gravar vídeos com denúncias sobre a corrupção do Kremlin, o advogado e ativista russo foi envenenado com um tipo de Novichok, série de potentes agentes nervosos que só são fabricados na Rússia. Começou a passar mal no voo de volta a Moscou – um vídeo feito por um passageiro registra seu uivo doloroso, enquanto a equipe de bordo tenta socorrê-lo. O avião fez um pouso de emergência em Omsk, onde Navalny foi internado às pressas. Graças aos esforços de Yulia Navalnaya, sua mulher, dois dias depois ele seria transferido, em coma, para um hospital em Berlim, onde se recuperou.
Alexei Navalny não precisava ter retornado à Rússia. Boa parte de seu combate à ditadura de Vladimir Putin sempre foi travada em meios digitais – ele representava “a vanguarda dos dissidentes de dados”, na expressão de outro célebre inimigo do Kremlin, o enxadrista Garry Kasparov (que, aliás, vive exilado nos Estados Unidos desde 2013). Ainda na Alemanha, Navalny firmou uma parceria com o búlgaro Christo Grozev – jornalista do Bellingcat, grupo especializado em investigações online – para identificar os responsáveis por seu próprio envenenamento.
Por meio de registros de voo, eles encontraram e divulgaram o nome de agentes da FSB, a agência de segurança russa, que seguiram o ativista até a Sibéria. Fazendo-se passar por um inspetor do Kremlin, Navalny conversou por telefone com um químico especialista em Novichok, que deu detalhes da operação. A Alemanha poderia muito bem servir de base para sua militância. No entanto, ele julgou necessário continuar a batalha na Rússia. Foi preso ao desembarcar em Moscou, na noite de 17 de janeiro de 2021.
Na última sexta-feira, dia 16, a missão entregue aos agentes da FSB em 2020 foi completada em um presídio no Círculo Polar Ártico. Alexei Navalny morreu aos 47 anos. A informação oficial é que ele sofreu um “mal súbito” enquanto passeava no pátio da prisão, foi socorrido por médicos mas não resistiu. Enquanto escrevo, na terça-feira, dia 20, a causa da morte ainda não foi divulgada. Até o paradeiro do corpo está sendo mantido em segredo. Só não paira dúvida sobre os responsáveis pela morte: Vladimir Putin e seu governo criminoso. Ao contrário do que disse outro dia um notório camarada do autocrata russo, essa afirmação não configura um julgamento apressado. Trata-se de um fato bem estabelecido: condenado a vinte anos de prisão por acusações espúrias de fraude, Navalny era um prisioneiro político e morreu sob a guarda do Estado que o encarcerou.
O mistério que cerca o caso não está na autoria do assassinato (não é exagero qualificá-lo assim), mas nas ações da vítima. Disponível na HBO Max, Navalny, documentário vencedor do Oscar de 2023, acompanha a trajetória do personagem-título desde o envenenamento até o malfadado retorno à Rússia. Desde que vi o filme, para uma resenha publicada no Brazil Journal, o ato final me intriga. Por que Navalny, tendo sobrevivido a uma tentativa de assassinato, voltou à Rússia? Por que se entregou tão facilmente ao regime de Putin? Revendo o documentário depois da morte do protagonista, as cenas finais ganharam um sentido mais claro.
Um sentido trágico, na acepção mais forte da palavra.
Dotado de um inegável carisma e de certo pendor para o populismo, Navalny transformou o voo de Berlim a Moscou em um evento midiático. A imprensa foi notificada, claro: assim que se apagaram os avisos para manter o cinto afivelado, o assento do dissidente foi cercado por jornalistas. Em Moscou, seus apoiadores concentravam-se no aeroporto de Vnukovo, e a polícia estava tendo dificuldades para arrastar todos para fora. O avião acabou sendo desviado para outro aeroporto da cidade, Sheremetyevo. Foi lá que Navalny fez seu último pronunciamento público. “Eu não tenho medo e peço que vocês também não tenham medo”, disse. Afirmou ainda que as acusações contra ele eram falsas e que a lei estava do seu lado. Momentos depois, quando apresentava o passaporte à imigração, os agentes da lei o levaram preso.
A bravata e a provocação faziam parte da persona pública de Navalny. Sua performance final, porém, não saiu manchada pela demagogia. O ponto final de sua história torna mais cristalina a essência do teatro que ele armou para voltar à casa de seus assassinos. Quando diz que a lei está do seu lado, Navalny – que não seria ingênuo de acreditar no respeito de Putin a qualquer preceito legal – está se deixando arrastar por uma lei maior, uma lei que, na falta de palavra menos dramática, podemos chamar de destino. E ir ao encontro do destino, por mais terrível que seja, é próprio dos heróis que a tragédia clássica nos legou.
Em seu emprego cotidiano, a palavra “tragédia” não está mais associada à grandeza heroica. Costumamos qualificar como “uma tragédia” os mais variados eventos que resultam em um número considerável de mortos – acidentes (naufrágios, colisões de trens, quedas de avião), conflitos humanos (guerras, massacres, genocídios), catástrofes naturais (terremotos, tsunamis, erupções vulcânicas). Mas a tragédia é, antes de tudo, o singular gênero literário que surgiu em Atenas, no século V a.C., e que teria continuadores em Shakespeare e Racine, entre outros autores clássicos.
A tragédia original é contemporânea de outra invenção atribuída aos gregos: a democracia. As encenações de Ésquilo, Sófocles e Eurípides faziam parte da vida cívica do cidadão ateniense. Nos diálogos entre personagens e coro, dramatizavam-se conflitos e contradições sociais. Não por acaso, em seu clássico Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda – que, além de historiador, era um fino crítico literário – recorreu a Antígona para explicar a oposição fundamental entre a lei do Estado e a ordem familiar. Na tragédia de Sófocles, Antígona deseja sepultar seu irmão Polinices, mas Creonte, rei de Tebas, proíbe a cerimônia fúnebre, pois o morto havia liderado exércitos estrangeiros em um ataque à cidade.
Na Poética, Aristóteles, ao seu modo analítico, definiu a tragédia como a “imitação de uma ação de caráter elevado” realizada por atores em “linguagem ornamentada” (era escrita em verso ritmado, com notáveis recursos retóricos), que suscitava o terror e a piedade e assim “purificava” essas emoções (fenômeno conhecido pela palavra grega “catarse”). Embora canônica, essa definição parece insuficiente, insatisfatória – como talvez sejam, necessariamente, todas as definições desse gênero dramático.“Seria inútil tentar encontrar para ela uma definição exata e universalmente válida”, pondera o filólogo alemão Werner Jaeger em Paideia: A formação do homem grego, um clássico dos estudos sobre a cultura da Grécia Antiga publicado, em três volumes, entre 1933 e 1947. No mesmo parágrafo, porém, ele apresenta certos elementos definidores do espírito da tragédia: a “representação clara e vívida do sofrimento nos êxtases do coro, expressos por meio do canto e da dança”; os personagens que, em diálogo, apresentariam ao público uma “representação integral de um destino humano”, e a exposição artística do “mistério da dor enviada pelos deuses à vida do homem”.
No primeiro capítulo de A morte da tragédia (1961) – um estudo de longo curso sobre a forma trágica, dos gregos até dramaturgos do século XX como Bertolt Brecht e Paul Claudel –, George Steiner também reconhece a dificuldade de definir a tragédia: “Qualquer definição abstrata não significaria nada.” O crítico francês opta por apresentar os contornos do drama trágico grego em contraste com a Bíblia hebraica. A visão de mundo da Bíblia judaica, argumenta Steiner (que, incidentalmente, é judeu), conduz necessariamente à justiça de Deus. Mesmo o desafortunado Jó, a quem Deus submete às piores provações, acaba recebendo a justa compensação por suas perdas, pois não perdeu a fé. “A visão judaica concebe o desastre como uma falta moral específica ou como uma falha de compreensão. Os poetas trágicos gregos afirmam que as forças que modelam ou destroem nossas vidas estão fora do controle da razão e da justiça”, diz Steiner. É uma perspectiva dura e desoladora da vida humana, sem dúvida. No personagem trágico, porém, encontramos um inigualável “clamor por dignidade”: ao final das grandes tragédias, “há uma fusão de dor e êxtase, de lamento pela queda do homem e de regozijo pela ressurreição de seu espírito”.
Steiner deixa a sugestão de que a elevação na desgraça só é obtida quando o herói trágico abraça seu destino miserável de forma consciente. Mesmo Édipo, diz o autor, saberia da verdade sobre sua união incestuosa com Jocasta lá no fundo de seu “coração teimoso”. Essas considerações me levam de volta às cenas finais de Navalny. A edição de um documentário pode construir linhas interpretativas, enfatizar determinados fatos, ditar ritmo à ação. Mas o documentarista não escreve discursos elevados para seus personagens recitarem. Nas cenas do filme transcorridas no avião e no aeroporto, ninguém fala em “linguagem ornamentada”. A breve exortação de Navalny aos russos – “não tenham medo” – é tão breve quanto trivial. No momento da prisão, há um curto e nada elegante bate-boca entre os policiais que levarão Navalny e a advogada do preso. Nada que se compare a Creonte advertindo, ao final de Édipo, que nenhum mortal pode se declarar feliz antes que se complete seu último dia, ou a Hamlet proclamando, em seu último suspiro, que “o resto é silêncio”.
Mesmo em meio a tal pobreza retórica, o espírito trágico subsiste. Eis aí um homem seguindo serenamente para o cárcere, ciente da desgraça que os deuses mesquinhos da política fizeram cair sobre sua cabeça e sobre a cabeça de seus compatriotas. Não estou de forma alguma dizendo que Navalny esperava morrer na prisão: ele terá se guiado por algum cálculo, pesando os riscos contra a repercussão política de suas ações. Talvez esperasse ser condenado à prisão domiciliar, como já ocorrera em 2014. Ou avaliasse que o escândalo internacional de seu envenenamento agora faria o regime pensar duas vezes antes de matá-lo (pouco mais de um ano depois da prisão de Navalny, Putin demonstraria seu desprezo pela opinião internacional ao invadir a Ucrânia).
Qualquer que fosse sua expectativa sobre o retorno à Rússia, Navalny estava enganado. Ao embarcar em Berlim, cometeu seu erro trágico.
Na primeira cena do documentário, o diretor canadense Daniel Roher pergunta a Navalny que mensagem deixaria para o povo russo se fosse morto no retorno ao Moscou. O ativista protesta contra a pergunta: “Me poupe, Daniel! Não, de jeito nenhum”, diz. Em seguida, faz uma concessão: “Olha, eu estou pronto para responder sua pergunta. Mas deixe ela para outro filme, o filme número dois. Vamos fazer deste filme um thriller. Se eu for morto, então vamos fazer um filme chato em minha memória.”
De forma previsível, a resposta vem no final do filme. “Não desistam”, diz Navalny, em russo (nas demais entrevistas, ele fala em inglês). “Se eles decidirem me matar, é porque somos incrivelmente fortes.” Até o momento, porém, a força da oposição não se fez sentir na Rússia. Tem havido discretas manifestações em memória do dissidente assassinado, na forma de flores deixadas nas ruas. E mesmo essas pequenas homenagens são reprimidas: estima-se que mais de quatrocentas pessoas já foram presas.
Porque não é redigida por Sófocles, Shakespeare ou Racine, a tragédia da política real não conhece o clímax dramático: atores tomam o palco para depois voltarem aos bastidores sem que o curso do enredo se altere substancialmente. Isso tem ocorrido com vários movimentos de massa do século XXI – foi o que se viu, por exemplo, em muitos países tomados pela Primavera Árabe, entre de 2010 e 2011, e em sucessivos protestos contra a ditadura de Nicolás Maduro na década passada.
Em Winter is coming (O inverno está chegando, publicado em 2015 e sem tradução no Brasil), sua revisão pessoal da história russa, de Gorbachev a Putin, Kasparov recorda uma grande manifestação de rua em Moscou, em dezembro de 2011, na qual Navalny disse à multidão que ela seria numerosa o suficiente para tomar o Kremlin de assalto. “Mas nós somos uma força pacífica e não faremos isso agora”, emendou em seguida. “O que teria acontecido se houvéssemos marchado para o Kremlin e para a Duma [o parlamento russo] naquela noite?”, pergunta-se Kasparov. “Estaríamos agora livres ou mortos?”
Impossível saber – como também não se pode saber que Rússia teríamos hoje se um movimento popular conduzisse Navalny ao Kremlin (ele concorreu à Prefeitura de Moscou em 2013 e certamente tinha ambições mais altas). Seria uma democracia plena? No início de sua carreira política, ele se aproximou de vertentes extremistas do nacionalismo russo. Questionado sobre isso no documentário de Roher, ele alegou que estava aberto à colaboração de qualquer partido interessado em formar uma frente ampla contra Putin e pela democracia. A frente ampla malogrou, e pouco tempo depois da prisão de Navalny a combativa Fundação Anticorrupção que ele havia fundado foi proibida como “organização extremista”.
Especulações sobre um governo Navalny que nunca existirá nos conduzem para longe do universo trágico. A tragédia, ensina Steiner, exige um mundo no qual as coisas não poderiam se dar de outro modo. Mesmo que houvesse leis liberais de divórcio na Grécia antiga, Agamemnon ainda seria assassinado pela esposa Clitemnestra no início da trilogia Oresteia, de Ésquilo. Só no drama burguês, que raramente é de fato trágico, ouvimos lamentos sobre a vida que poderia ter sido. “Uma vida perdida! Eu sou talentoso inteligente, arrojado… Se eu vivesse de maneira normal, seria um Schopenhauer, um Dostoiévski”, lamuria-se o personagem título de Tio Vânia, de Anton Tchékov. Dramas trágicos frequentemente acabam em morte, mas não comportam vidas perdidas como a de Vânia.
Então Navalny necessariamente teria de voltar à Rússia e encontrar a morte uma prisão gelada? Não. A tragédia como forma dramática obedece a suas leis e convenções, mas a tragédia tal como a conhecemos na vida real apenas guarda uma desconcertante aparência de fatalidade. Sob a luz triste do fim de Navalny, seu retorno à terra natal nos parece necessário, inevitável. E, sob o risco de idealizar o ativista russo como mártir da luta contra a ditadura, quero crer que assim parecia ao próprio Navalny.
Um breve desvio por um personagem de contornos trágicos da ficção brasileira talvez nos ajude na compreensão do ato final do russo. Na breve nota introdutória a Sargento Getúlio, João Ubaldo Ribeiro diz que seu romance é “uma história de aretê”. Palavra grega, aretê captura uma qualidade dos heróis de Homero a que os gregos aspiravam. Não teria correspondência exata nas línguas modernas. Virtude, honra e excelência são traduções aproximadas.
Jaeger avisa que a aretê era, na concepção grega original, atributo exclusivo da nobreza. Escravos e homens comuns não tinham aretê. No entanto, sargento Getúlio, policial bruto e bronco, prova-se um homem imbuído de aretê quando arrisca a vida para levar o prisioneiro que tem sob sua guarda até Aracaju, mesmo depois que a ordem para fazê-lo é revogada. Quando alguém recomenda que ele suma do mapa para se salvar, ele diz o seguinte:
“Eu sumir, eu sumir? Como que eu posso sumir, se primeiro eu sou eu e fico aí me vendo sempre, não posso sumir de mim e eu estando aí sempre estou, nunca que eu posso sumir. Quem some é os outros, a gente nunca.”
O russo vaidoso e falastrão que vemos no documentário de Daniel Roher também se recusa a sumir. Se permanecesse na relativa segurança do exílio na Alemanha, Alexei Navalny sumiria para si mesmo. Perderia sua aretê.
“Eu me sinto melhor a cada momento em que nos aproximamos da Rússia”, diz ele, em russo, no voo de Berlim para Moscou. Essa frase hoje está carregada de ironia trágica.
Leia Mais
Assine nossa newsletter
Email inválido!
Toda sexta-feira enviaremos uma seleção de conteúdos em destaque na piauí