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    O escritor Robert Caro (de gravata) e seu editor Robert Gottlieb: relação profissional entre os dois é tema do documentário - Foto: Divulgação

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Ama, e cala

Relação entre autor e editor inspira documentário sobre amizade, amor e trabalho

Eduardo Escorel | 03 maio 2023_08h02
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Ao que parece, uma preciosidade recebeu menos atenção do que devia quando foi exibida na mostra Programas Especiais do 28º Festival É Tudo Verdade, concluído em 23 de abril. Trata-se de Vire Cada Página: As Aventuras de Robert Caro e Robert Gottlieb (2022), de Lizzie Gottlieb, documentário sobre a trajetória profissional compartilhada pelos dois escritores nomeados no título – Gottlieb sendo também editor (no sentido usual da palavra em inglês) dos livros de Caro desde The Power Broker: Robert Moses and the Fall of New York, publicado em 1974, definido como um “exame das forças políticas que moldaram a Nova York moderna” (The Paris Review, nº 216, setembro 2016).

Em entrevista conjunta, dada com Kurt Vonnegut em 1999 (disponível aqui), Caro esclarece o objetivo de sua obra, definido ao escrever sobre Moses: “Percebi que realmente não estava interessado em escrever uma biografia para contar a história de um homem famoso. O que eu queria fazer era usar a biografia como um meio de iluminar uma época e as grandes forças que moldam uma época – particularmente o poder político… Eu estava interessado no poder político porque em uma democracia, o poder político molda todas as nossas vidas… Então eu senti que se eu pudesse de alguma forma descobrir as fontes do poder de [Robert] Moses – eu não tinha ideia na época quais eram –, se eu pudesse descobrir em que consistia seu poder, e como ele o obteve e como ele o usou, eu estaria explicando algo que precisava ser explicado: não a versão teórica, do curso de ciência política, do poder, mas a realidade do poder, sua verdadeira essência… Minha ideia do que eu estava fazendo mudou consideravelmente.”

Embora seja dirigido pela filha de Gottlieb, Vire Cada Página… não tem o propósito, conforme ela declarou, de ser uma carta de amor dirigida a seu pai e ao amigo dele. Nas palavras de Lizzie, é um filme “sobre trabalho… sobre alegria e zelo no trabalho”. Intenção ratificada quando seu pai resume em que consiste a sua colaboração com Caro: “Ele faz o trabalho. Eu faço a limpeza. Aí nós lutamos.” Mas o que sobressai mesmo em Vire Cada Página… são as respectivas personalidades dos dois, assim como a dimensão afetiva da amizade deles. Uma vez que não pretende ser uma carta de amor, o documentário talvez possa ser considerado o testemunho da relação amorosa entre excêntricos obsessivos, Caro sendo autor também da biografia de Lyndon Johnson, com quatro volumes publicados e um ainda por concluir, e Gottlieb ex-editor chefe da Simon & Schuster, Alfred A. Knopf e da revista The New Yorker.

Vire Cada Página… levou quase sete anos para ser feito, desde que Lizzie consultou Caro se ele aceitaria participar do projeto. Nesse período, Gottlieb não editou sequer uma página do quinto e último volume da biografia de Johnson que Caro vinha pesquisando e escrevendo (em 2018, foi noticiado que o livro levaria ainda “vários anos” para ser publicado). Para descrever a tarefa que lhe cabe como editor, Gottlieb cita a réplica de Cordelia a si mesma em Rei Lear – “Ama e cala”. Goneril, primogênita do rei, proclama seu amor inequívoco ao pai. Cordelia, a irmã caçula, pergunta e responde à parte: “O que dirá Cordelia? Ama e cala.” Em seguida, Regan, segunda filha de Lear, declara que sua “única satisfação reside no amor de Vossa Majestade”. Cordelia declara então, outra vez à parte, estar certa de seu amor ter mais peso que sua língua e afirma, duas vezes diretamente a Lear, “nada” ter a dizer “para obter um terço mais opulento” do reino que o de suas duas irmãs.

Ao contrário de Cordelia, porém, quando chega a hora certa, uma vez concluída a primeira versão escrita, Gottlieb tem muito a dizer de modo a contribuir “para se chegar à melhor versão possível”. O serviço que procura prestar é o de descobrir “o que ajudará, o que servirá ao que foi escrito. Mas deve ser com firmeza. ‘Tem que haver igualdade’”.

Para Caro, a maior dificuldade que enfrentou na vida foi cortar 350 mil palavras de The Power Broker. Ele descreve a dor que sentiu e completa: “Escrever, para mim, de qualquer maneira, é duro.”

A entrevista de Bill Clinton, a propósito de My Life, sua autobiografia publicada em 2004, é uma intromissão desnecessária em Vire Cada Página… Único dos inúmeros outros autores, além de Caro, editados por Gottlieb incluído, o ex-presidente desvia o foco do que o documentário tem de mais fascinante – a colaboração longeva dos dois Roberts. O trabalho meticuloso dos dois, Caro, hoje com 87 anos, e Gottlieb com 92, parece a reminiscência de uma outra era. Quando se reúnem no escritório da editora diante da câmera de Lizzie, supostamente trabalhando, falta algo essencial para a encenação – um lápis. À procura do objeto singelo, a peregrinação por algumas salas deixa claro a dificuldade de encontrar hoje em dia algo que para editar textos já se tornou obsoleto.

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Fontes: informações não incluídas em Vire Cada Página… provêm de https://www.austinchronicle.com/daily/screens/2023-01-28/the-writer-the-editor-and-the-filmmaker-the-story-of-turn-every-page/; a tradução citada de Rei Lear é a de Rodrigo Lacerda: Shakespeare, William. Editora 34, 2022. pp. 25 e 27.

 

 

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