Ao declararem ter a intenção de permanecerem neutros, os produtores e autores de Maldito Modigliani se pautam pela ética do jornalismo, mas se distanciam dos princípios elementares que regem o cinema e o documentário Crédito: Divulgação
Amedeo Modigliani
Notável artista chamado de maldito
Lançado em 2020, na Itália, para sinalizar o centenário da morte de Amedeo Modigliani (1884-1920), Maldito Modigliani, de Valeria Parisi, chegará com cinco anos de atraso, no próximo dia 13, ao circuito de cinemas em várias cidades do Brasil, entre elas São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre e Salvador.
O título Maldito Modigliani pode surpreender à primeira vista, mas faz sentido por várias razões. Basta lembrar, conforme a narradora do filme relata, que a primeira e única exposição solo realizada em vida pelo hoje notável artista foi censurada, em 1917, pela polícia. Seus nus femininos na vitrine da galeria Berthe Weill, na Rua Victor Massé, no bairro de Pigalle, em Paris, “deixaram todos estupefatos. Do outro lado da rua, havia uma delegacia de polícia. Em poucas horas obrigaram você a remover os quadros… Então, mesmo daquela vez, você não vendeu quase nada. Só dois desenhos por trinta francos cada”.
Quem se dirige ao próprio Modigliani dessa forma, ao longo de todo o filme, é a pintora e modelo Jeanne Hébuterne (na voz em off de Maria Magdalena Hoer), com quem ele viveu e teve uma filha. Hébuterne (1898-1920), além de narrar, é a personagem, interpretada por Caterina Fantetti, que nas sequências de abertura e encerramento prepara o próprio suicídio, dois dias após o pintor ter morrido, vítima de meningite tuberculosa – circunstâncias trágicas que, entre outras, permitem entender porque ele é chamado de “maldito”.
O fato de as corroteiristas Arianna Marelli (também corroteirista de Picasso – um rebelde em Paris) e Valeria Parisi terem elegido Hébuterne como voz narrativa, embora resulte eficaz, tem um aspecto estranho. A eficácia provém do recurso de prolongar, post mortem, a relação do casal. A estranheza, por sua vez, é causada pelo fato de parte do relato, embora dirigido a Modigliani, não ser novidade para ele. Ou seja, há algo postiço na narração de Hébuterne por servir, ao menos em parte, para dar informações ao espectador.
De acordo com Maldito Modigliani, teria sido o poeta André Salmon (1881-1969) quem deu o apelido de Modi a Modigliani – trocadilho, em francês, com maudit (maldito). O pintor seria um “anjo caído”, “uma alma maldita”, segundo o “bom amigo” Salmon, mas que não é considerado fonte confiável.
A biógrafa Meryle Secrest admite, em Modigliani: a life, publicado em 2011 (sem edição brasileira), que Salmon “foi o primeiro a transformar” o apelido Modi “em maudit, ou seja, amaldiçoado”, mas ela acrescenta: “As testemunhas dos acontecimentos ficaram horrorizadas com os exageros, distorções e diálogos imaginários que aparecem nos livros de Salmon sobre Modigliani”, entre eles La vie passionnée de Modigliani (A vida apaixonada de Modigliani), publicado em 1957 (sem edição brasileira). Secrest cita ainda o jornalista e escritor Jean-Paul Crespelle (1910-94), autor de Modigliani: Les femmes, les amis, l’oeuvre (Modigliani: as mulheres, os amigos, a obra), de 1969 (também sem edição brasileira), segundo o qual: “É de se admirar que a energia que ele [Salmon] dedicou a evocar, em tantos livros, a figura e a obra de Modigliani, o tenha levado a acumular inexatidões e invenções… Sem dúvida alguma, André Salmon, que viveu muitos anos no círculo de Apollinaire, acreditava, como o poeta, que ‘a verdade não tinha interesse’.”
Entre os entrevistados, quem intervém maior número de vezes é Marc Restellini, historiador da arte e especialista em Modigliani. Ele afirma “haver praticamente três quadros falsos [atribuídos ao pintor] para cada um autêntico. Uma proporção enorme”. Assim, fica claro, o motivo de haver uma declaração de princípios, em forma de legenda, nos créditos finais de Maldito Modigliani:
Neste documentário, procuramos contar a vida e a arte de Amedeo Modigliani. Temos consciência de que ainda existe um debate acalorado entre especialistas e historiadores da arte sobre as muitas obras que lhe são atribuídas. O nosso trabalho, contudo, não é participar desse debate.
Nós aceitamos e relatamos de forma neutra as opiniões e declarações dos historiadores, especialistas e curadores entrevistados, confiando que eles assumirão autoria e responsabilidade plenas, inclusive no que diz respeito à autenticidade das obras apresentadas.
Ao declararem ter a intenção de permanecerem neutros, os produtores e autores de Maldito Modigliani se pautam pela ética do jornalismo, mas se distanciam dos princípios elementares que regem o cinema, em geral, e o documentário, em especial, com base nos quais não só é legítimo, como pode ser requerido opinar.
Entre outros eventos notáveis ocorridos na trajetória da obra de Modigliani, um que se destaca é seu Nu Deitado ter sido adquirido pelo patrono das artes chinês Liu Yiqian, por 170,4 milhões de dólares, num leilão da Christie’s em 2015. “Pense só em quantas latas de sardinha poderíamos ter comprado nos nossos dias”, comenta Hébuterne. Isso “quando Modigliani não conseguiu, em vida, vender uma pintura por mais de 10 francos. Não é justo”, diz outro entrevistado, John Myatt, identificado no filme como “pintor e ex-falsário”. De fato, ele foi condenado, em 1999, com o notório falsificador John Drewe, por aquela que é conhecida como “a maior fraude artística do século XX”.
Além, naturalmente, de inúmeros quadros de Modigliani, a linguagem híbrida de Maldito Modigliani recorre a cenas documentais, sequências encenadas, múltiplas entrevistas e imagens de arquivo, além de alguns filmes dos irmãos Lumière, lindamente restaurados.
Preciosa, em especial, é a cena de Blaise Cendrars Modigliani, documentário de Jean-Marie Drot e Pierre Viallet, filmada em 1953, na qual Cendrars, romancista contemporâneo a Modigliani, conversa sobre o pintor com a dona de um bar em Montparnasse:
“Você o conhecia, não?”
“Modigliani? Sim, ele veio aqui e eu me arrependo…”
“Ele queria ter pintado as paredes, mas não pôde pintar.”
“Ele não fez nada porque, infelizmente, eu fui desajeitada… Deveria ter deixado ele trabalhar. Ele não pediu muito para pintar, só as tintas.”
“E algo para beber, já que estava sempre com sede.”
“Como muitos, meu caro.”
Hébuterne diz que “é devido também a Jonas Netter [1867-1946], talvez o mais importante colecionador da Escola de Paris, termos, hoje, tantas de suas obras”, referindo-se a Modigliani. Netter “não era um milionário, mas era um entusiasta. Seu filho Gérard lembra do pai como um epicurista que sabia apreciar os pequenos prazeres da vida. Ele considerava a arte um deles.”
“Quando eu tinha 12 ou 13 anos”, diz Gérard, “eu tinha sempre muito medo quando meus colegas da escola vinham na minha casa porque eles caçoavam dos quadros pendurados nas paredes [de Utrillo, Suzanne Valadon, Kisling e… sobretudo Modigliani, esclarece Hébuterne]. Divertiam-se tanto com eles, os achavam tão ridículos, que eu mesmo ficava incomodado.”
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