Arqueólogos na caverna de Chiquihuite - Foto: Devlin A. Gandy
Americanos 15 mil anos mais velhos
Ferramentas de calcário descobertas em caverna no México podem ser o mais antigo registro da presença humana no continente
Ferramentas de pedra encontradas na caverna Chiquihuite, no interior do México, podem fazer recuar ainda mais a história da ocupação das Américas. Alguns artefatos achados ali têm pelo menos 31 mil anos de idade, de acordo com a estimativa da equipe de arqueólogos que investigou a caverna. O estudo foi publicado hoje na revista especializada Nature, num artigo assinado por cientistas do México, Brasil, Estados Unidos, Dinamarca, Reino Unido e Austrália.
Para se tornarem o mais antigo registro da ocupação das Américas, as ferramentas de Chiquihuite precisam ter sua idade e origem reconhecidas pelos arqueólogos. Quando o assunto é a presença humana antiga no continente americano, nem sempre a publicação dos resultados em revistas respeitadas basta para convencer os especialistas. Os vestígios mais recuados da presença humana no continente aceitos consensualmente pelos estudiosos vêm do sítio de Monte Verde, no sul do Chile, e têm 14,5 mil anos de idade.
A caverna Chiquihuite fica quase no alto de uma montanha, 2 740 metros acima do nível do mar, numa região árida do Centro-Norte do México. “A paisagem é muito dramática, é um contexto bem diferente dos outros já encontrados na ocupação inicial da América do Norte”, disse à piauí a arqueóloga britânica Jennifer Watling, que assina o trabalho como pesquisadora visitante da Universidade de São Paulo (o artigo tem outros dois coautores da USP).
A escavação de Chiquihuite teve início em 2012 e foi liderada por Ciprian Ardelean, arqueólogo da Universidade Autônoma de Zacatecas, no México. Os pesquisadores encontraram 1 930 ferramentas de pedra com datas que iam aproximadamente de 30 mil a 13 mil anos atrás. Destas, 239 estavam numa camada de sedimentos com idade avaliada entre 33,1 mil e 31,4 mil anos, conforme determinado por mais de um método de datação.
Os pesquisadores mostraram que o calcário do qual são feitas as ferramentas é morfologicamente diferente das rochas encontradas nas paredes e no teto da caverna. “Ou seja, o material lítico foi levado para a caverna”, disse Watling. “É difícil pensar em como essas rochas chegaram lá sem serem carregadas por seres humanos.”
A britânica é especializada no estudo dos microvestígios de vegetais encontrados em sítios arqueológicos. Em Chiquihuite, sua análise encontrou vestígios de palmeiras que só poderiam estar ali por intervenção humana. “As palmeiras gostam de condições quentes e úmidas e não podem ter chegado lá de forma natural”, afirmou Watling.
André Strauss, pesquisador da USP especializado na ocupação das Américas que não teve envolvimento com o estudo, acredita que os achados da caverna Chiquihuite podem mudar a forma como enxergamos o povoamento do continente. “Quando você olha os artefatos, tem imediatamente a sensação de que aquilo não é obra do acaso”, disse o arqueólogo, que leu o artigo a pedido da piauí. “O trabalho é muito sólido, e meu palpite é que será aceito pela comunidade internacional.”
A dispersão do Homo sapiens pelo planeta desde que surgiu no Leste da África, há cerca de 300 mil anos, é relativamente bem conhecida. No entanto, sua chegada ao continente americano – o último colonizado por nessa espécie – ainda é cercada de incertezas. Não há consenso sobre quando chegaram os primeiros americanos, por onde vieram e como se espalharam.
As ferramentas encontradas na caverna mexicana sugerem que a chegada dos humanos aconteceu há pelo menos 31 mil anos, muito antes do que se dava por certo.
Poucos especialistas duvidam de que os primeiros humanos vieram a pé, pelo estreito de Bering, que atualmente separa a Sibéria do Alasca, mas que na época era um trecho contínuo de terra firme, já que o nível do mar era mais baixo. O novo trabalho não muda esse entendimento, mas sugere que os primeiros americanos se deslocaram por uma rota litorânea, pelo Pacífico, e não pelo interior do continente, como muitos sustentavam.
Isso porque, no período entre 26,5 mil e 19 mil anos atrás, boa parte da América do Norte estava coberta por gelo, o que teria bloqueado a passagem continental. As ferramentas achadas no México são o primeiro registro da presença humana na América antes desse episódio, conhecido como Último Máximo Glacial.
“A principal pergunta que ainda fica no ar é: quem eram esses caras?”, indagou André Strauss, referindo-se aos criadores dos artefatos. “Os dados genéticos de populações nativas atuais apontam que as populações ameríndias têm um ancestral único há 20 mil anos”, disse o arqueólogo da USP, um especialista no estudo do DNA dos primeiros americanos. “Esses caras que estavam no México há 30 mil anos não eram ancestrais dos ameríndios. Quem eram eles?”
Se os resultados de Chiquihuite forem aceitos pelos arqueólogos, talvez ajudem, por tabela, no reconhecimento de outras evidências de ocupação antiga do continente americano que não são consensuais na comunidade. Um caso emblemático é o dos sítios arqueológicos da Serra da Capivara, no sul do Piauí. Nos últimos anos, os arqueólogos brasileiros e franceses que estudam a região encontraram em vários desses sítios ferramentas com idade estimada de até 24 mil anos. Os resultados foram publicados em duas das revistas mais prestigiosas do campo – Journal of Archeological Science e Antiquity –, mas nem por isso são consensualmente aceitos.
Numa entrevista à piauí, o arqueólogo Eric Boëda, líder da equipe franco-brasileira que continua a fazer escavações nos sítios da Serra da Capivara, disse que o estudo da caverna mexicana não deixa dúvidas quanto à origem humana das ferramentas. “Mas não estou certo de que os norte-americanos vão aceitar”, afirmou. Boëda, que é professor na Universidade de Paris X – Nanterre, se queixou de que o trabalho não dialoga com outros achados recentes que apontam a presença humana antiga em sítios da Serra da Capivara ou em Santa Elina, no Mato Grosso. “Há uma recusa sistemática de levar em conta a literatura recente produzida sobre a América do Sul.”
Ao comentar as novidades sobre a ocupação das Américas na própria Nature, a antropóloga Ruth Gruhn, da Universidade de Alberta, no Canadá, notou que os sítios com mais de 20 mil anos de idade no Piauí e no Mato Grosso foram habilmente escavados e analisados. “No entanto, eles são frequentemente contestados ou simplesmente ignorados pela maioria dos arqueólogos como se fossem velhos demais para ser verdade”, escreveu Gruhn. “Os achados da caverna Chiquihuite devem trazer uma nova apreciação dessa questão.”
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