Ilustração: Carvall
Armas apontadas para elas
Agressor de mulher teve armas recolhidas, como manda a lei – mas conseguiu uma terceira e matou a vítima
O país acompanhou aterrorizado as imagens da execução de Michelli Nicolich, assassinada em São Paulo na semana passada pelo seu ex-marido, Ezequiel Lemos Ramos, pai da criança de 2 anos que ele também matou. O agressor era registrado pelo Exército como CAC (categoria que inclui caçadores, atiradores e colecionadores) e já havia sido denunciado por Michelli por ameaças de morte. Ele chegou a ser preso preventivamente, e a delegada responsável pelo caso solicitou corretamente a apreensão de duas armas que ele mantinha em casa, além da suspensão do registro de Ramos junto ao Exército.
A legislação brasileira permite que, em caso de acusação de violência doméstica, o registro de armas do denunciado seja imediatamente suspenso e que seja solicitada a apreensão cautelar das armas. Tal possibilidade foi incluída na Lei Maria da Penha em 2019, por meio da Lei 13.880, cuja tramitação contou com apoio de várias organizações da sociedade civil, entre elas o Instituto Sou da Paz.
O agressor de Michelli, no entanto, teve a prisão preventiva convertida em uso de tornozeleira eletrônica como medida cautelar alternativa. Assim que a ex-esposa se mudou para São Paulo, esse uso não foi mais considerado necessário pela Justiça. Quatro meses após o boletim de ocorrência de ameaça, ele viajou mais de 1 mil km e usou uma terceira arma para cometer o duplo assassinato em plena luz do dia.
Esse caso reflete muitas questões estruturais e urgentes do país. De imediato, evoca a necessidade de colocar em prática políticas públicas multissetoriais e constantes para reforçar a igualdade de direitos em um país marcado pelo machismo estrutural. Graças a ele, nós, mulheres, ainda somos vistas como cidadãs de segunda categoria, como propriedades das nossas famílias ou companheiros, corpos à disposição, predestinadas a realizar o trabalho não remunerado de cuidado doméstico e familiar que viabiliza o funcionamento da sociedade.
O assassinato de Michelli Nicolich também explicita a necessidade urgente de rever o descontrole no acesso a armas e munições. O governo Bolsonaro desfigurou a legislação do setor por meio de decretos e portarias, boa parte legalmente questionáveis (havendo decisões do STF que suspendem parcialmente algumas das medidas). Os pronunciamentos públicos do presidente incentivam uma corrida armamentista diária. O resultado é inquestionável: mais que dobrou a quantidade de armas em mãos de pessoas comuns, especialmente as registradas como CACs – que podem comprar maiores quantidades, tipos mais potentes e não precisam justificar sua necessidade.
Ao mesmo tempo, o governo deliberadamente atrasou investimentos em tecnologia de controle e fiscalização dessas armas. Isso fez com que até hoje as polícias estaduais não possam consultar o sistema do Exército em que a armas de CACs estão registradas. Já foi confirmado que o agressor tinha uma terceira arma registrada em seu nome, possivelmente a arma usada no crime. Independentemente de ter sido usada ou não, essa terceira arma não foi imediatamente identificada e apreendida no momento da primeira denúncia pela falta de acesso das polícias ao sistema do Exército – que, por sua vez, também tardou a cooperar no fornecimento dessa informação.
Fiscalização eficaz e respostas rápidas são essenciais para mitigar riscos. As mulheres brasileiras sabem que critérios objetivos para adquirir uma arma, como não ter antecedentes criminais, ter um emprego fixo e ter feito um teste psicológico até dez anos antes, não são garantias suficientes. Boa parte das agredidas são vitimadas por ex-companheiros ou familiares, pessoas que antes detinham sua confiança, o típico “cidadão de bem”.
Não é à toa que a rejeição da política armamentista é mais alta nesse grupo. Enquanto o porte generalizado de armas é rejeitado por 83% do público, a rejeição sobe para 88% entre mulheres, segundo pesquisa Datafolha realizada em junho de 2022. Ao contrário do que afirmam seus defensores, a ampliação do porte é apoiada por apenas 15% da população, uma pequena minoria composta majoritariamente por homens, brancos e de alta renda – um perfil de beneficiários que coincide com a maior base do atual governo e com a tentativa de reafirmação de papéis tradicionais de gênero que as armas também carregam. É simbólico dessa priorização que o mesmo governo que publicou mais de quarenta normas para facilitar o acesso a armas tenha cortado em 90% a verba para proteção de mulheres.
Essa retórica armamentista e toda a indústria que dela se alimenta têm disseminado o argumento, importado dos Estados Unidos, de que armas serviriam ao empoderamento feminino, gerando super-heroínas invencíveis. Ocorre que essa ideia não tem respaldo em dados de realidade, que indicam que mais armas geram mais violência em cenários de desigualdade social e que as chances de reação armada bem-sucedida são baixas. Funciona ainda menos em casos de violência doméstica, situações de profunda vulnerabilidade psicossocial, dependência econômica e baixa capacidade de reação em um duelo caseiro. Para fortalecer essas mulheres, é preciso consolidar uma rede de apoio de políticas públicas capazes de oferecer suporte psicológico, abrigo emergencial e capacitação profissional para mantê-las longe do agressor, assim como um sistema de justiça e segurança pública apto e eficiente para responsabilizá-lo.
Dados do Ministério da Saúde indicam que 51% das mulheres mortas por agressão foram vitimadas com armas de fogo e que 70% delas eram mulheres negras. De 2012 a 2019, a proporção dessas mortes que ocorreu dentro de casa, forte indício de violência de gênero, subiu de 1 a cada 5 casos para 1 a cada 4. Além das mortes, a arma dentro de casa é um forte elemento para a prática de ameaças físicas e de violência psicológica, além de dificultar a ruptura do relacionamento abusivo ou mesmo a denúncia por parte da mulher.
Com o aumento da participação de arma de fogo na morte de mulheres por violência de gênero, é fundamental disseminar a determinação da Lei 13.880 para que as armas dos agressores sejam apreendidas, que todas as delegacias passem a aplicar a regra e que as mulheres saibam que essa é uma medida de proteção disponível. Como os bancos de armas de CACs não estão disponíveis para as polícias estaduais, é urgente que o Exército acelere essa evolução tecnológica e reveja processos para garantir que todas as armas e autorizações de compra em nome de acusados de agressão sejam identificadas e recolhidas. É importante também entender se a Justiça poderia ter mantido o monitoramento eletrônico ou outras medidas cautelares, considerando a gravidade das ameaças.
É essencial entender e corrigir todas as falhas que resultaram no assassinato de Michelli Nicolich. O Estado e o sistema de Justiça e Segurança por muito tempo ignoraram ou negligenciaram a proteção de mulheres. Casos como esse não são mais aceitáveis.
diretora-executiva do Instituto Sou da Paz
gerente do Instituto Sou da Paz
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