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    "Se me animo a compartilhar meu infortúnio de sábado, é na esperança de que sirva de alerta – quem quiser, vá, mas saiba que As Boas Maneiras faz mal à saúde", escreve o crítico REPRODUÇÃO_AS BOAS MANEIRAS

questões cinematográficas

As Boas Maneiras – sinal de alerta

Filme de Marco Dutra e Juliana Rojas coloca em cena a improvável relação homossexual entre patroa e empregada para despistar o espectador de seu verdadeiro tema

Eduardo Escorel | 12 jul 2018_18h11
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Noites de lua cheia nunca mais serão as mesmas depois de ter assistido a As Boas Maneiras. Incautos, como eu, devem se cuidar – na falta de serviço de alerta, ir ao cinema desprevenido se tornou arriscado.

Confesso que só mesmo por dever de ofício aguentei até o fim os 135 minutos de duração do filme de Marco Dutra e Juliana Rojas. Tive que me esforçar para não bater em retirada depois de um bom tempo, quando As Boas Maneiras deixa de dissimular seu tema. Ou melhor, quando revela seu verdadeiro tema. Sai a improvável relação homossexual entre patroa e empregada. Entra em cena o inverossímil menino lobisomem criado por uma mãe adotiva, ora caridosa, ora carcereira.

Dito assim, o eventual leitor, incrédulo, poderá duvidar do que está lendo. Pois pode crer. Asseguro que não é exagero. E mais: não satisfeitos com a mixórdia de situações e estilos que acumulam no transcorrer do filme, Dutra e Rojas ainda fazem incursão inesperada por diálogos em verso, cantados como no musical Os Guarda-Chuvas do Amor (1964), de Jacques Demy.

De início, o padrão de fatura – elenco, locações, fotografia, em especial – pode sustentar o interesse do espectador inocente. A partir de certo ponto, porém, o absurdo prevalece e quem não for fã do gênero – filme de terror – terá dificuldade de suportar até o final o que é exibido na tela.  

Fui despreparado, é verdade, seguindo indicação de uma amiga dileta. Relutante, para não chegar atrasado à sessão, deixei Croácia e Rússia empatadas. À medida que crescia minha aversão pelo que via, eu me perguntava o que teria feito à minha amiga para ela se vingar de mim daquela maneira – me induzir a assistir a As Boas Maneiras e perder o final do jogo, a prorrogação com cada time fazendo mais um gol e, finalmente, para minha alegria a magnífica vitória da Croácia, eliminando a Rússia de Vladimir Putin.

Mesmo tentando prestar atenção ao filme, comecei a me perguntar se teria sido lua cheia na véspera, em Kazan, onde o Brasil perdeu da Bélgica. Mas não, conforme conferi depois. A lua cheia em Kazan foi em 28 de junho e a próxima será só em 27 de julho. Na véspera da mais recente lua cheia em Moscou, onde ganhamos da Sérvia de 2 a 0, nenhum jogador do Brasil se transformou em lobisomem. Como a tantos poetas, a lua cheia mais inspirou do que perturbou nossa Seleção.

Se me animo a compartilhar meu infortúnio de sábado, é na esperança de que sirva de alerta – quem quiser, vá, mas saiba que As Boas Maneiras faz mal à saúde. Aliás, não seria boa ideia tornar obrigatório incluir nos créditos iniciais de certos filmes uma advertência sanitária, como é feito nos rótulos dos cigarros?

As Boas Maneiras oculta seu verdadeiro tema durante um bom tempo, o que em certos casos é uma qualidade. Neste, porém, o despiste inicial apenas acentua a decepção que se segue. Em vez de apenas insinuar, como faz de início, o filme passa a ser explícito e sanguinolento. Deixa, assim fazendo, de ser assustador para se tornar cada vez mais repugnante.

Na lista dos 25 melhores filmes de horror de todos os tempos, publicada no The Guardian, há um, em especial, que usado como referência poderia ter salvo As Boas Maneiras do desastre: é a adaptação para o cinema de A Volta do Parafuso, de Henry James, dirigida e produzida por Jack Clayton, consagrada, em 1961, com o título Os Inocentes. Fiel ao original literário, o filme de Clayton insinua mais do que afirma. “Infiltra e celebra a imaginação”, conforme Michael Newton escreveu (The Guardian, 26/dezembro/2013).

Há algo muito inquietante na opção de As Boas Maneiras por fazer um espetáculo de terror – parece resultar da intenção de apelar aos instintos mais baixos do espectador, homens e mulheres que o filme pressupõe que sejam apreciadores do sobrenatural e para os quais entretenimento e racionalidade seriam incompatíveis. Se essa hipótese for comprovada, confirmará a distorção de valores que se tornou cada vez mais comum no cinema brasileiro, dito comercial, nos últimos quinze anos.

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