Estudantes do colégio Sarah Kubitschek. Da esquerda para direita: Amanda Victória de Almeida, Ana Júlia Gonçalves, Maria Eduarda Sinquini, Milena Passos e Milena Francielle Foto: Ana Lúcia Araújo
As normalistas que sobreviveram
Saia pregueada, disciplina e assédio: como é a rotina das alunas do curso normal, extinto na maioria dos estados, mas que ainda tem 44 mil estudantes pelo país
Abril será marcante para os quinhentos alunos do curso normal do Colégio Estadual Professor José Accioli, no bairro de Marechal Hermes, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Depois de três anos de rotina alterada pela pandemia da Covid, eles vestirão os uniformes de gala para receber o distintivo em formato de estrela dos futuros professores de nível médio. A “cerimônia de incorporação” reafirma a tradição da escola, construída entre conjuntos habitacionais de baixa renda ocupados por famílias de policiais militares e bombeiros. É um rito de boas-vindas para os alunos novatos que, neste ano, incluirá todos que não puderam receber o distintivo na pandemia.
As normalistas sobreviveram à lei 9394/96, que estabeleceu o prazo de dez anos para que professores do ensino fundamental tenham diploma obrigatório de graduação universitária. Com isso, a maioria dos estados extinguiu o curso normal. Ele segue ainda forte, porém, no Rio de Janeiro e na região Sul, e de forma residual em mais oito estados. A lei deixou uma brecha para as normalistas ao manter o nível médio como formação mínima para os professores do ensino infantil (creche e pré-escolar) e dos cinco anos iniciais do ensino fundamental.
Pelo Censo escolar de 2022, divulgado pelo Ministério da Educação, há 44.830 estudantes matriculados no curso normal em todo o país. Ele praticamente desapareceu nas regiões Norte e Centro-Oeste. Restam 4.315 alunos no Nordeste, 19.680 na região Sul e 19.802 no Sudeste. Restam duas escolas públicas municipais, com poucos alunos, no estado de São Paulo: Derville Allegretti, na capital, e a José Jabur, no município de Américo de Campos, a 537 km da cidade de São Paulo.
O Rio de Janeiro é o maior celeiro de normalistas, com 19.355 estudantes. O governo do estado oferece o curso em 96 escolas espalhadas pela capital, Baixada Fluminense e interior. As alunas com os uniformes tradicionais – saia pregueada de tergal azul marinho, blusa branca de botões, meias três quartos e sapatos pretos de cadarço – são vistas sobretudo nos subúrbios da capital, onde estão os dois maiores institutos de educação – o Carmela Dutra, no bairro de Madureira, na Zona Norte, e o Sarah Kubitschek, em Campo Grande, na Zona Oeste.
O curso normal é predominantemente feminino (os meninos representam menos de 20%). Os estudantes, quase sempre de famílias de baixa renda, o encaram como uma porta de acesso ao mercado de trabalho para ajudar no sustento da família e custear a faculdade. Até os anos 1960, o curso normal também atraía moças da elite e da classe média alta. A atriz Marieta Severo foi normalista. Ser professora era uma das poucas profissões permitidas às “moças de família”. Este período foi retratado na minissérie da TV Globo Anos Dourados, exibida na década de 1980.
No Rio de Janeiro, o perfil mudou depois que as formandas perderam o privilégio de ingressar automaticamente no serviço público, em 1969. A partir daí, o concurso para admissão se tornou obrigatório, explica o professor Fábio Correa, que fez a tese de doutorado sobre a trajetória das normalistas cariocas. Ele foi professor do Instituto Carmela Dutra e atualmente é professor de pedagogia na Universidade Federal do Amazonas. Segundo ele, a partir dos anos 1950, houve um processo de “suburbanização” do curso normal, com a construção de escolas próximas às estações de trem, ao mesmo tempo em que as jovens de classes média e alta buscavam outros rumos.
As alunas do Instituto de Educação Sarah Kubitschek se enquadram no perfil descrito por Correa. A escola tem 1.500 normalistas e 300 alunos no ensino médio regular. Há várias turmas só com meninas. Vaidosas, elas formam filas para conferir o visual diante dos espelhos que a diretora, Dayse Duque Estrada, instalou nos corredores. A escola foi inaugurada em 1959, no bairro de Campo Grande, a 50 km do Centro do Rio, e seu entorno possui favelas e muitos conjuntos habitacionais populares. É também uma região com forte presença de milícias. As aulas ocorrem em tempo integral, das 7 horas às 18 horas. É uma rotina intensa. As alunas que moram mais distante acordam às 5 horas e chegam de volta em casa após as 20 horas. Encaram ônibus e trem lotados, e ainda ajudam nas tarefas domésticas à noite.
Amanda Victória de Almeida, de 17 anos, cursa o segundo ano e pega dois ônibus para ir de casa à escola. O curso normal não foi sua primeira opção quando se matriculou no Sarah Kubitschek. Fez o primeiro ano no ensino regular normal e depois pediu transferência. “Eu sonhava em ser professora quando era criança, e o encantamento voltou.” A mãe, cuidadora de idosos, foi sua principal incentivadora. O pai morreu no ano passado. Ela diz que escolheu ser normalista também pela possibilidade de entrar no mercado de trabalho. As creches e escolas particulares são as que mais absorvem as professoras de nível médio.
Eduarda Sinquini, também de 17 anos, cursa o terceiro ano no Sarah e é uma entusiasta do curso normal. “Sou filha do ensino público e vou defender a escola pública com toda garra, principalmente o curso normal”, disse a jovem. “Através da educação podemos construir uma sociedade mais justa, mais igualitária. Essa construção começa no curso normal. Quando fazemos estágio em áreas carentes, levamos um choque de realidade, que nos impacta de forma profunda.”
Ela conta que ser professora era um sonho de infância. “Chegando aqui, me perguntei: de que criança eu gosto? Da arrumadinha que me chama de tia? O curso normal me deu uma visão política e social. Estamos em uma região carente. Não podemos fechar os olhos para a realidade”, diz a normalista. Ela afirma que, entre uma escola de elite ou uma dentro de zona conflagrada, escolheria a última, mesmo com a falta de segurança. “É a que mais precisa de atenção e educação. Eu vivo aqui. Pego ônibus lotados todos os dias. Chego em casa à noite, faço os deveres da escola e vou dormir para acordar de novo às cinco da manhã. Essa é a nossa rotina de segunda à sexta. Acredito efetivamente na educação, porque não é fácil ser normalista.”
As alunas do Sarah Kubitschek movimentam uma curiosa estrutura de serviços nas proximidades da escola. Os bares nas ruas próximas cobram 1,50 real para esquentar marmita. O Estado oferece refeições, mas muitas preferem levar marmita para não enfrentar a longa fila do almoço, ou por não apreciar o cardápio do dia. Em frente ao instituto também é possível comprar os uniformes, que ficam expostos em um carro estacionado. A vendedora é Ângela Maria Floriano, que também se formou normalista, no município de Serra Talhada, no sertão de Pernambuco, mas nunca exerceu a profissão. Ela estaciona o carro no mesmo ponto há trinta anos. A filha cursou o normal ali e, depois da faculdade, voltou como professora.
A vendedora de uniformes lamenta a queda nas vendas provocada pela pandemia. Segundo ela, antes do confinamento, o movimento era tanto que precisava distribuir senhas para organizar a fila de interessados no começo do ano letivo. As filas desapareceram. E a escola ficou menos exigente em relação ao uniforme, em razão das dificuldades financeiras das famílias.
A diretora Dayse Duque Estrada confirma: “Sempre fui muito exigente sobre o uniforme, mas a pandemia mudou o cenário. Quando as aulas foram retomadas, ano passado, muitos alunos estavam com pai e mãe desempregados. Outros haviam perdido os pais para a doença. Não posso ter a mesma rigidez de antes, porque eu também já não sou a mesma pessoa de antes. É claro que todos devem estar uniformizados, mas se faltar um item do uniforme, eu relevo.”
As normalistas dizem ter orgulho do uniforme, mas se queixam do comportamento de homens mais velhos que encaram a vestimenta como um fetiche. Júlia Domingos de Matos, de 17 anos, aluna do curso normal no Colégio José Accioli, diz que percebe os olhares de admiração ou de cobiça por onde passa. “As pessoas nos fotografam. Senhoras que foram normalistas se emocionam. Em geral, nos tratam com respeito, porque sabem que ali está um futuro professor. Mas há um lado negativo. É comum a normalista ser assediada pelos homens mais velhos nas ruas e no transporte público.”
Cauan Rodrigues, de 17 anos, estudante do José Accioli, conversou com a reportagem ladeado por quatro meninas. Ele mora com a família no bairro de Deodoro, nas proximidades de uma vila militar. O pai é autônomo e trabalha em obras. Cauan diz que o pai ficou orgulhoso quando soube que faria o curso normal e seria professor. “Meu pai se orgulha de mim e me coloca em um pedestal. Quando digo em casa que vou fazer um plano de aula, me olham com admiração. Tenho uma irmã pequena e treino as aulas com ela.” Algumas entrevistadas disseram que seguirão outras carreiras, mas contam em dar aulas no ensino infantil para pagar a universidade. É o caso de Maria Eduarda Moura, que quer cursar psicologia.
As escolas de curso normal são em geral mais exigentes na disciplina porque entendem que as normalistas precisam saber disciplinar seus futuros alunos. Essa regra é seguida sem concessões no Colégio Estadual José Accioli, em Marechal Hermes. A escola é exclusiva de normalistas. As aulas começam às 7 horas. Os estudantes têm de se apresentar dez minutos antes para formar as filas no pátio. A diretora, Maria Eduarda Rodrigues, de 71 anos, não faz concessões na vestimenta correta. Além do uniforme do dia a dia, há o uniforme de gala, usado nas ocasiões especiais, quando as meninas precisam prender o cabelo em um coque e cobri-lo com rede branca.
“Nem todas as escolas têm o mesmo grau de exigência. A disciplina é fundamental para o professor, por isso mantenho o rigor. No início do curso, reúno os pais e explico as regras. Fica quem quer. Sou portuguesa de Viseu, e trago a disciplina no sangue. Estou no cargo há 27 anos por reeleição. Somos uma ilha de excelência na Zona Norte. Vou manter a disciplina até meu último dia de trabalho e espero morrer trabalhando, porque isto aqui é minha vida”, diz ela.
As diretoras das duas escolas entrevistadas são enfáticas na defesa da manutenção do curso normal. Para Dayse Duque Estrada, do Instituto Sarah Kubitschek, a extinção do curso normal por vários estados se deve a uma interpretação errada da lei. “O curso de nível médio e a formação universitária não são excludentes. Se completam. A quem interessa tal equívoco, não sei.” Ela concluiu o curso normal em 1981, na mesma escola que hoje dirige, e graduou-se em pedagogia pela Universidade Federal Fluminense.
Maria Eduarda Rodrigues, do Colégio José Accioli, diz que a defesa do curso normal é sua bandeira. Ela exibe a grade curricular para mostrar o foco na formação do professor. O curso tem um total de 5.520 horas; dois terços são ocupados com aulas e estágios voltadas para a formação do professor. “Houve muita pressão nos governos anteriores para acabar com o curso, mas resistimos. O curso normal é uma ilha de excelência no ensino público. Os professores que se formam em pedagogia sem ter passado pelo curso enfrentam muitas dificuldades na sala de aula”, diz ela.
Pela lei, os professores de nível médio estão aptos a disputar concursos públicos para o ensino infantil e para os anos iniciais do fundamental. Os grandes municípios, porém, raramente aceitam a inscrição de professores de nível médio. As normalistas precisam garimpar os editais em busca de oportunidades. No momento, as Prefeituras de Curitiba, Belford Roxo, Mangaratiba e Saquarema estão entre as que oferecem vagas. Mas a inscrição é só o primeiro passo. Em geral, os editais têm pontuação adicional por títulos, o que torna mais difícil o acesso da normalista. Com isso, as escolas particulares se tornam a principal opção de trabalho.
O professor Marlon Campos de Araújo, de 31 anos, concluiu o curso normal no Sarah Kubitschek em 2011 e no mesmo ano disputou concursos para as Prefeituras do Rio de Janeiro e de Nova Iguaçu. Ficou entre os cem primeiros colocados no Rio, mas foi excluído por não ter o curso superior na época. Recorreu à Justiça e perdeu a causa. O juiz considerou que o contratante tem a prerrogativa de definir o perfil desejado do candidato. Ele foi aprovado na seleção da prefeitura de Nova Iguaçu e em três anos tornou-se diretor da escola Priscila Bouças, cargo que ocupou por sete anos. Em 2020, já graduado em pedagogia, foi selecionado em novo concurso da Prefeitura do Rio e hoje leciona nos dois municípios. Ele diz que, por ter sido diretor de escola, constatou que os professores com graduação superior que não passaram pelo curso normal enfrentam mais dificuldades em sala de aula.
“Muitos acadêmicos são contra o curso por não conhecerem essa realidade que vivenciamos. Têm raiva e rancor do que não experimentaram. O que se aprende no chão da escola no curso normal não é oferecido na graduação.”
Bernardete Gatti, uma das mais reconhecidas educadoras do país – presidente da Câmara de Educação Básica do Conselho Estadual de Educação de São Paulo – concorda que o curso normal ainda tem papel relevante na formação dos alfabetizadores, principalmente da fragilidade dos cursos de pedagogia e licenciaturas em várias áreas oferecidos por ensino à distância. “Estamos transferindo a formação do professor para o ensino à distância, e esse é um calcanhar de Aquiles do país. Há mais de 800 mil matriculados em pedagogia. Só que eles não querem ser professores. Buscam apenas o diploma”, diz ela.
Os dados do Censo escolar de 2022 mostram que a meta de universalização do diploma superior para os professores do ensino básico ainda não foi alcançada: 20,6% dos docentes do ensino infantil (creches e pré-escolar) e 13,4% dos professores dos cinco anos iniciais do fundamental, na soma nacional, têm nível médio ou menos. O Espírito Santo tem o maior percentual de graduados: 97% no ensino infantil, e o Rio de Janeiro, o menor: 52%. Para a diretora do Instituto Sarah Kubitschek, a situação do Rio se explicaria pelo fato de ser o estado que mais forma professores de nível médio.
Há sinais de que o curso normal pode voltar a ganhar força. O número de alunos aumentou no Paraná, segundo informa a chefe do departamento de educação profissional da Secretaria Estadual de Educação, Daiane Fraile. No Censo de 2022 constavam 8.737 alunos no estado. Neste ano, estão matriculados 13.729. O governo, segundo Fraile, considera o curso importante para a qualificação do professor do ensino básico e firmou convênios com as prefeituras para facilitar o estágio dos alunos nas escolas municipais.
O curso parece estar ressurgindo em zonas rurais. Foi o que aconteceu no município de Turiaçu, no Maranhão. Na rede estadual, o velho curso normal está extinto desde 2005. A Prefeitura de Turiaçu abriu concurso, e faltaram professores graduados para as escolas rurais. O município decidiu, então, recriar o curso normal para suprir suas necessidades, e 1.834 jovens se matricularam no ano passado. Neste ano, o número subiu para 1.309. Dois municípios vizinhos – Lago da Pedra e Turilândia – devem seguir o exemplo.
Segundo a secretária municipal de Educação de Turiaçu, Graciete dos Santos Ferreira, as turmas são formadas quase totalmente por moças da área rural cujas famílias não dispõem de recursos para enviá-las a cursar faculdades em cidades mais distantes. A prefeitura quer agora atrair cursos de pedagogia e licenciatura para que as futuras normalistas completem a formação.
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