As quatro voltas CO
As quatro voltas – redescoberta do cinema
Uma particularidade notável de As quatro voltas – tradução infeliz de Le quattro volte, que deveria ter sido traduzido por As quatro vezes –, exibido na mostra Foco Itália do Festival do Rio, é a sintonia perfeita entre tema e estrutura narrativa. Registro acurado da vida em um vilarejo isolado no alto de uma montanha, só identificado nos créditos finais como sendo Caulonia, na Calábria, o filme dirigido por Michelangelo Frammartino trata de ciclos vitais narrados de forma cíclica.
Uma particularidade notável de – tradução infeliz de Le quattro volte, que deveria ter sido traduzido por As quatro vezes –, exibido na mostra Foco Itália do Festival do Rio, é a sintonia perfeita entre tema e estrutura narrativa. Registro acurado da vida em um vilarejo isolado no alto de uma montanha, só identificado nos créditos finais como sendo Caulonia, na Calábria, o filme dirigido por Michelangelo Frammartino trata de ciclos vitais narrados de forma cíclica. Inspirado na proposição de Pitágoras segundo a qual o Homem passa do estado mineral ao vegetal, deste ao animal e, finalmente, ao racional, não traz em si mesmo, salvo falha grave de memória, a explicitação dessa premissa, que serve, no entanto, de narração ao trailer:
“Temos em nós quatro vidas sucessivas: cada uma contida dentro da outra. O homem é um mineral, por que é formado de sal, água e matéria orgânica. O homem é um vegetal, por que como as plantas se nutre, respira e se reproduz. É um animal, enquanto dotado de consciência do mundo externo, de imaginação e de memória. Enfim, é um ser racional por que tem vontade e razão. Temos em nós quatro vidas distintas e então devemos nos conhecer quatro vezes.”
Outro tento incomum é conseguir traduzir essa noção em imagens sóbrias e se diferenciar marcadamente de uma reportagem, sendo filmada em planos predominantemente fixos e gerais, sem deixar de recorrer a ocasionais closes e panorâmicas. Articulando encenações, sequências documentais de observação e ações refeitas para serem filmadas, transita de forma harmoniosa entre esses diferentes gêneros.
Embora dure apenas 88’, Frammartino só revela aos poucos qual é o tema do filme. A partir da morte do pastor, seguida do nascimento de uma cabra e da passagem das estações é que o propósito de vai sendo esclarecido.
A longa e minuciosa sequência dedicada ao pastoreio tem características de registro etnográfico exemplar. Com falas esparsas, e sem narração, legendas ou música, tem apenas um personagem coletivo – os habitantes do vilarejo –, com exceção do pastor, de um cabrito e um pequeno cachorro capaz de estripulias insuspeitadas.
Do pastoreio, que acaba com o plano noturno de um cabrito solitário perdido do rebanho, e de uma procissão, passa para uma árvore sendo serrada, e daí para a festa popular em que o desafio é escalar o tronco altíssimo. Segue-se o corte da madeira e a construção dos fornos de carbonização cobertos de terra, completando-se o ciclo narrativo, com a superfície de um forno sendo socada, como na abertura do filme.
Em dois momentos de , a câmera é fechada em espaços sem saída. No primeiro, o caixão do pastor é colocado no túmulo, sendo visto de dentro. A lateral da sepultura é tapada e a imagem fica totalmente preta. O mesmo ocorre quando se completa a construção do forno onde será feito o carvão. A lateral vai sendo tapada de terra e a câmera fica no interior, escuro, que se tornará ardente. Frammartino estará querendo indicar dessa maneira que o registro documental tem limites, restrições, que o deixam sempre aquém do que a realidade oferece? Estará indicando qual é o fim inexorável do ciclo vital? Será isso?
Num raro momento tragicômico – difícil de entender como pôde ser filmado com a precisão e sutileza de sugerir o que vai ocorrer, mas deixando que ocorra fora de quadro –, um cachorro primeiro intimida um menino, depois tira o calço de um pequeno caminhão que rola ladeira abaixo até se espatifar num curral à beira do caminho. É um instante em que o cinema volta a revelar todo seu encanto.
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