minha conta a revista fazer logout faça seu login assinaturas a revista
piauí jogos

    Bancos de areia se multiplicam pelo leito do Rio Paraguai, impedindo a navegação e a pesca / Foto: Angelo Rabelo

questões climáticas

As vidas cada vez mais secas do Pantanal

Entre rios que desaparecem, peixes mortos e tempestades de areia, ribeirinhos sofrem com o ir e vir em busca de trabalho

Camille Lichotti | 19 nov 2021_15h51
A+ A- A

Quando o pescador Evandro Maciel percorre as baías do Pantanal para catar iscas, na região do Paraguai-Mirim, em Mato Grosso do Sul, encontra animais mortos na beira dos rios, riachos secos, vazantes que sumiram e bancos de areia no leito dos rios. Praticamente não há isca disponível. A pesca tornou-se inviável, e Maciel, jovem de 24 anos que aprendeu a pescar aos 12, decidiu procurar emprego em Corumbá, a cidade mais próxima, no início deste ano. “De que adianta ficar no lugar onde você nasceu e se criou, se os rios estão acabando?”, questiona ele. “É triste mas não dá mais para produzir aqui. Eu fui criado com a água transbordando, mas esse ano parece que secou o dobro do ano passado. A gente sai para pescar e volta com o barco vazio.” Em outubro, o nível do Rio Paraguai observado na régua de Ladário, a estação mais importante da região, atingiu o valor mínimo de 2021. O nível d’água foi o segundo menor registrado em toda a série histórica de dados da estação, desde o ano 1900.

Como consequência da estiagem, grandes bolsões de areia começaram a se multiplicar pelo leito do Paraguai este ano, interrompendo a navegação em partes do rio. Como a região não dispõe de estradas, as comunidades ribeirinhas e fazendas dependem de freteiras – grandes barcos que se assemelham a balsas – para transportar alimentos, pessoas, insumos, gado, combustível etc. O presidente do Instituto Homem Pantaneiro, Angelo Rabelo, explica que a situação do Rio Paraguai coloca em risco as atividades econômicas locais. Sua equipe, que faz a gestão de algumas áreas protegidas do Pantanal, já não consegue mais realizar abastecimento dessas unidades com as freteiras. Isso porque os barcos maiores precisam de um nível de rio alto e espaço adequado para ancorar. O jeito é usar pequenas lanchas para fazer o transporte de insumos que sobem e descem pelo rio, desviando das “praias” que surgiram na calha do Paraguai. É como se, em vez de usar um caminhão, eles tivessem que fazer o mesmo trajeto com um carrinho de mão, explica. “Só conseguimos fazer um terço do caminho que fazíamos antes”, diz ele. 

Os impactos ambientais e econômicos foram os primeiros a aparecer. Depois, a crise se tornou social, diz o presidente do Instituto Homem Pantaneiro. “Como as pessoas estão com menos recursos naturais, menos oportunidades econômicas, elas são obrigadas a virar nômades e ir para lugares onde você vai encontrar emprego e meios de sobreviver”, explica Rabelo. Em 2020, o pescador Evandro Maciel já havia passado quatro meses trabalhando como servente de pedreiro na cidade porque a pesca dos ribeirinhos foi totalmente inviabilizada pela seca. Naquele ano, a cheia da planície pantaneira atingiu a menor área em 36 anos, segundo um levantamento do MapBiomas, e Maciel precisou voltar para as margens do Rio Paraguai depois de ser demitido em Corumbá. 

Ele conta que os ribeirinhos encontram dificuldade para entrar no mercado de trabalho nas grandes cidades. “Se está difícil arrumar emprego para quem tem estudo, imagine para nós”, diz. Neste ano, Maciel não conseguiu sequer um bico em Corumbá. Com a esposa e um filho recém-nascido, ele só espera uma nova oportunidade de emprego para abandonar de vez a comunidade ribeirinha, como já fizeram tantos outros parentes e amigos. “Muita gente foi embora esse ano por causa da dificuldade que a seca trouxe”, diz Maciel. Sua avó, por exemplo, deixou a comunidade há poucos meses para trabalhar como cozinheira na cidade. “Eu também procuro sair porque não quero esse futuro de dificuldade para o meu filho”, completa. 

O pescador não tem esperança de que as coisas melhorem a curto prazo, dado o nível da seca severa que já se arrasta por dois anos. “Muitos bracinhos de rio secaram, viraram praia. Coisa de rachar o chão mesmo, de crescer mato”, ele relata. “Quase não achamos mais isca para vender. Às vezes a gente se junta para ir a um lugar bom, [que sempre deu isca], mas chega lá vê tudo seco.” Além de atividade econômica, o rio é fonte de alimentação da família de Maciel – e agora é cada vez mais comum que ele saia para pescar e volte sem nenhuma peça. “Quando acontece, a gente tem que comer arroz com arroz mesmo”, diz. 

A tendência é que as coisas de fato não melhorem, pelo menos a curto prazo. É o que explica Carlos Padovani, da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), órgão de pesquisa vinculado ao Ministério da Agricultura. A previsão trimestral de chuvas para a região do Pantanal – especialmente na Bacia do Alto Paraguai – é de níveis abaixo da média até janeiro de 2022. “Sem chuva, não temos rio”, diz Padovani. Com previsões baixas justamente nos meses mais chuvosos, o Pantanal não deve se recuperar para o próximo ano. “Esses dados carregam incerteza, mas a tendência é que o Rio Paraguai e todos os outros da região não vão ter condições de ser abastecidos de água para chegar a níveis que temos observado nas últimas décadas”, completa o pesquisador. Ou seja, o Pantanal está secando e, hoje, a tendência é que a seca se prolongue. 

Os recentes dias de chuva ajudaram a minimizar o efeito da seca prolongada, mas ainda não foram suficientes para recuperar o bioma. O último boletim do Serviço Geológico do Brasil, do dia 12 de novembro, mostra que, apesar de a maioria das estações fluviométricas começarem a registar a tendência à elevação do nível d’água no Rio Paraguai, os valores registrados ainda estão na “zona de atenção”. Para a estação de Ladário, por onde passa 80% do rio, mesmo com as chuvas constantes de novembro, a previsão é que o nível observado até dezembro continue abaixo da chamada zona de normalidade calculada a partir da série histórica. 

 

A planície alagável do Pantanal recebe água de duas formas. Por um lado, os rios recebem água que vem das nascentes no Cerrado e na Amazônia. Paralelamente, a água da chuva enche a calha dos rios e vazantes, que se conectam e formam as baías e campos alagados. O normal é que o Pantanal alague entre setembro, outubro e novembro e atravesse os meses seguintes completamente cheio, até secar novamente em maio. Mas em 2021 não houve enchente nos meses de cheia. Na realidade, nos últimos três anos, os processos de inundação praticamente deixaram de acontecer. Para os especialistas, a continuidade do período de seca agrava ainda mais seus efeitos porque o bioma não encontra brechas para se recuperar, mesmo que temporariamente. Para os pantaneiros, os efeitos aparecem no dia a dia. “Este ano foi o mais grave: baías que não secavam há 40 anos agora estão totalmente secas”, diz Rabelo, do Instituto Homem Pantaneiro. 

A última grande cheia pantaneira aconteceu em 2018. Mas, segundo levantamento do MapBiomas, entre 1988 e 2018 houve uma perda de 29% da área alagada do Pantanal – ou seja, parte da planície deixou de alagar nos últimos trinta anos. Além disso, o pedaço que resistiu agora permanece cheio por menos tempo: na década de 1980, a inundação durava pelo menos seis meses; em 2018, a planície pantaneira inundou por apenas dois meses. Isso significa que, mesmo em épocas de grande cheia, o Pantanal já está secando com o tempo. Quando os pesquisadores compararam os períodos de seca, também observaram que a estiagem ficou mais severa. Na imagem abaixo, produzida pelo MapBiomas, os pesquisadores mediam o nível máximo dos campos alagados nos períodos de cheia de cada ano. Mesmo em 2018, na última vez que o Pantanal encheu, a cheia menor que nos anos anteriores – e desde então, a situação se agravou.

Mosaicos de imagens de satélite Landsat utilizados para mapear o máximo de umidade em cada ano. Os tons mais escuros representam áreas com mais água. O que está em verde é a vegetação (florestas e savanas) e os tons de rosa são áreas com menos vegetação (campos naturais, pastagem e solo exposto) / Foto: MapBiomas, com dados da Marinha do Brasil compilados por Carlos Padovani, da Embrapa

 

Na pequena comunidade da Barra de São Lourenço, Leonida Aires de Souza vê de perto o desaparecimento de pequenas baías. Ela e cerca de vinte famílias moram no encontro entre os rios Paraguai e São Lourenço, próximo à divisa entre os estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. A comunidade ficava numa espécie de ilha: além dos dois rios que se encontram, atrás das casas ainda passava um outro pequeno, que os ribeirinhos chamavam de Rio Velho. Mas ele secou este ano. Souza conta que a irmã tinha uma pequena casa e uma plantação do outro lado do rio, mas hoje já não consegue acessar o local e, como outros moradores, precisou abandonar sua propriedade e se mudar para outra região. “No meio ainda tem um pouco de água funda, e ele veio secando pelas pontas. Não tem como entrar de barco e não dá para passar esse trecho cheio a pé”, explica Souza. “Se não tentar fazer a dragagem, logo vai secar por completo.” 

A artesã Leonida Aires de Souza na comunidade Barra de São Lourenço / Foto: Acervo pessoal

 

Neste ano, a artesã já contou quatro pequenos rios na região que, como o Rio Velho, estão secando. São pequenos corixos, canais e riachos que alagavam nos períodos de cheia. Esses locais são os primeiros a secar e é justamente onde os peixes se reproduzem e as iscas são coletadas pelos moradores. Se o período de estiagem severa se mantiver, como apontam os dados, toda a vida na comunidade fica ameaçada. “Esses rios pequenos são os que a gente pode usar pra trabalhar. Se eles secarem de vez, a gente não vai ter meio de sobrevivência”, diz ela. Como sintoma da seca, a principal atividade econômica de Souza, tradicional na região, ficou prejudicada. Ela e outras mulheres ribeirinhas produzem objetos com talos de aguapé, uma planta aquática que proliferava nos campos alagados do Pantanal. Mas este ano os aguapés sumiram. Assim como aconteceu com o pescador Evandro Maciel, moradores da Barra de São Lourenço também abandonaram a região para buscar emprego nos centros urbanos. “Muitos dos nossos foram para cidade caçar meio de trabalho porque aqui está difícil. Mas a gente também não quer sair porque lá não é nossa casa”, diz a artesã. 

O pesquisador da Embrapa Carlos Padovani compila há anos os dados de cheia no Pantanal. À piauí, ele diz que a seca atual é grave, mas não inédita. “As cheias excessivas também não eram normais no Pantanal. Era tudo um ciclo”, diz ele. Ou seja, pode ser que o Pantanal esteja entrando em um período de seca que precede um novo período de cheias abundantes. “A percepção das pessoas vem da experiência, mas não existe nenhuma evidência de que isso vai ser o novo normal”, avalia ele. Padovani lembra que entre as décadas de 1960 e 70, uma outra grande estiagem assolou a região. Mas para quem vive há mais tempo no Pantanal, não há precedentes para essa crise. Sebastião Rolon, de 87 anos, era pescador na década de 1960. “Naquela época, quando secava, secavam a baía e os corixos pequenos, mas a água na calha do rio continuava lá. Agora não tem nem rio nem baía”, diz ele. 

Atual nível do Paraguai, que antes chegava à altura das árvores, na região próxima à comunidade da Barra de São Lourenço / Foto: Leonida Aires de Souza

 

Sebastião Rolon não se lembrava de ver o Rio Paraguai tão baixo assim e agora se impressiona com a facilidade que algumas pessoas encontram para atravessá-lo a pé em alguns pontos. “Pela minha idade, eu acho que não vou ver o resultado disso, mas sei que não é normal.” Recentemente, ele foi à inauguração de uma escola a poucos quilômetros do Rio Paraguai, em Mato Grosso do Sul. No caminho, passou pela fazenda onde cresceu e deparou-se com um rio seco. “A gente brincava todo dia de corrida para mergulhar no rio, minha mãe lavava roupa lá, a gente usava a água para tudo” lembra ele, que atravessou de carro o que era o leito do rio. “Foi uma tristeza muito grande ver tudo seco, não quero nunca mais voltar lá.” 

O geógrafo Eduardo Rosa, integrante da equipe do MapBiomas Pantanal, também é cético em relação à recuperação do Pantanal. Segundo ele, os rios estão mais frágeis porque as nascentes estão em perigo. A maioria das cabeceiras estão nas áreas de planalto da Bacia do Alto Paraguai. Enquanto a planície pantaneira tem 84% da vegetação natural conservada, o planalto que abriga a maior parte das nascentes tem apenas 43% da área conservada. No caso do Rio Paraguai, a situação é dramática: a Fazenda Sete Lagoas, onde está localizada a nascente, agora é chamada pelos moradores de “Três Lagoas”. Trata-se de uma alcunha jocosa para denunciar a seca extrema do local. “O Pantanal depende da água que vem do Cerrado e da Amazônia”, explica o geógrafo Eduardo Rosa. “A fragilidade dessas regiões também diminui a quantidade de água que desce para a planície.” Com o avanço do agronegócio na região do Cerrado, é mais comum que a água desça em direção à planície carregando sedimentos que levam ao assoreamento dos rios. Na imagem abaixo, os pontos em vermelho representam áreas desmatadas. Segundo Rosa, é possível notar uma alta degradação da Bacia do Alto Paraguai e de regiões ao redor do Pantanal.

Imagem: MapBiomas

 

O Rio Taquari é um exemplo de como isso afeta a população local. Após passar por um processo de assoreamento, o leito do rio passou por uma transposição, que deixou mais de 150 km da antiga calha seca e parte importante da região sem os típicos alagamentos. Os especialistas dizem que é um processo comum para rios de planície, mas que foi acelerado graças à ação humana. “Era um processo que poderia ter levado 100, 200 anos, mas em 30 já vimos ele mudar radicalmente”, explica Rosa. “Isso mostra que os sedimentos realmente estão vindo com voracidade, e é uma mudança que eu considero preocupante.”

O Taquari é o rio da infância do aposentado Sebastião Rolon, que testemunhou, desacreditado, as consequências do desmatamento. A região que agora virou areia, graças ao assoreamento voraz, é onde ele costumava nadar e pescar com a família. “O que aconteceu com o Taquari é sintoma de uma coisa maior, e talvez a gente venha a encarar um período ainda mais seco pela frente”, avalia o pesquisador Eduardo Rosa.

Trecho seco do antigo leito do rio Taquari / Foto: Angelo Rabelo

 

À esquerda, imagens do leito do Taquari e braços do rio entre 1985 e 1990; na imagem da direita, obtida entre 2015 e 2020, as áreas alagadas desapareceram e se transformaram em campos secos graças ao assoreamento do Rio Taquari / Foto: MapBiomas

 

Em 2020, como os campos estavam muito secos, grande quantidade de matéria orgânica ficou exposta na superfície pantaneira – e facilitou o alastramento do incêndio nunca antes observado na região. A preocupação é que um novo descontrole possa ocorrer a qualquer momento, com o bioma ainda mais vulnerável. “As equipes do SOS Pantanal, que estão na linha de frente do combate ao fogo, muitas vezes ficam sem água local para trabalhar e precisam correr atrás de carro pipa”, relata o pesquisador Eduardo Rosa. “Se continuarmos por mais dois ou três anos nessa situação, pode ter certeza que estaremos em apuros, mais do que já estamos.” 

Há ainda outro perigo à vista: a Bacia do Alto Paraguai, que drena o rio homônimo e, consequentemente, outras áreas da planície pantaneira, já tem 47 hidrelétricas em operação. Pelo menos 133 projetos de Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCH) miram os rios que têm cabeceira em Mato Grosso e correm em direção a Mato Grosso do Sul, onde respondem pelos ciclos de cheias e vazantes do Pantanal. Em apenas um trecho de 190 km do Rio Cuiabá, há um projeto de construção de seis pequenas PCHs. Um Projeto de Lei que proíbe a construção dessas hidrelétricas chegou a ser apresentado à Assembleia Legislativa do Estado de Mato Grosso, mas a proposta ainda não foi votada. 

“Moro aqui há 54 anos e nunca vi uma seca dessas”, diz a artesã Leonida Souza. “Estamos tendo que pedir apoio para dar de comer aos cachorros e às galinhas. O que a gente planta já cresce murcho, a gente não tem nem como plantar mais”. Enquanto falava com a piauí por telefone, a artesã Leonida Souza precisou interromper a ligação porque uma forte tempestade de poeira varria aquele pedaço do Pantanal. “Eu queria que o poder público olhasse mais para a situação dos ribeirinhos. Como fica longe da cidade, talvez eles não consigam ver”, finalizou.

Assine nossa newsletter

Toda sexta-feira enviaremos uma seleção de conteúdos em destaque na piauí