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    Bolsonaro sendo tietado durante uma formatura de policiais rodoviários federais, em Florianópolis Foto: Marcos Corrêa/Palácio do Planalto

questões de segurança pública

Atiçando as tropas

Ao prometer reajuste a policiais federais e recuar, Bolsonaro joga a responsabilidade para o Congresso e eleva pressão das PMs sobre governadores

Samira Bueno | 20 jan 2022_15h13
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O anúncio feito pelo governo de que o Orçamento de 2022 traria um reajuste salarial para a Polícia Federal, a Polícia Rodoviária Federal e o Departamento Penitenciário, ao custo de 1,7 bilhão de reais, desencadeou reações por todos os lados. Servidores de várias carreiras do funcionalismo, que estão sem reajuste há cinco anos, ameaçaram entrar em greve. Algumas categorias, como os auditores da Receita Federal, reagiram por meio de uma demissão coletiva – até aqui, mais de novecentos auditores entregaram os cargos de chefia que ocupavam. O ministro da Economia, Paulo Guedes, enquanto isso, pressionou por um reajuste zero para todos.

Desde que o assunto veio à tona, o presidente Jair Bolsonaro deixou claro que o aumento salarial dos policiais havia sido uma decisão sua. Segundo ele, a medida é necessária para “corrigir injustiças”, embora não explique que injustiças são essas. Depois de muita pressão, Bolsonaro recuou e anunciou, nesta quarta-feira (19), que o reajuste está suspenso até segunda ordem. Suspenso, não cancelado. “Só o tempo vai dizer como será decidido”, afirmou, lacônico.

Acontece que, aprovando ou não o reajuste, Bolsonaro atingiu seu principal objetivo: fidelizar ainda mais sua base de apoiadores. Embora a benesse seja destinada somente aos agentes federais, a atitude do presidente serviu como aceno aos mais de 650 mil policiais que estão na ativa em todas as corporações no Brasil atualmente (levando em conta o efetivo das Polícias Civil e Militar).

A crise desencadeada pelo anúncio do reajuste tem razão de ser. Como mostrou um levantamento produzido pelo Centro de Liderança Pública (CLP) a pedido do jornal O Globo, o aumento exclusivo para policiais federais, caso ocorresse, ampliaria a disparidade salarial no funcionalismo público. Isso porque nos últimos dez anos, descontada a inflação, os policiais federais, militares e professores foram as únicas categorias que tiveram sua remuneração protegida da inflação, obtendo ganhos reais no período. No caso das Polícia Federal, Rodoviária Federal e Departamento Penitenciário, o crescimento do poder de compra foi de 7% desde 2012. Ou seja, o reajuste patrocinado por Bolsonaro, longe de corrigir injustiças no funcionalismo público, produziria ainda mais desigualdades.

Associações que representam os policiais federais, como ADPF, Fenadepol e Fenapef, saíram em defesa do reajuste proposto no orçamento. Segundo elas, sem o reajuste salarial não será possível promover a tão sonhada reestruturação das carreiras, uma antiga exigência da categoria. No entanto, embora essas demandas sejam legítimas, ainda não está claro como seria feita essa reestruturação de carreiras e por que os policiais deveriam ser beneficiados em detrimento de tantas outras categorias do serviço público federal.

O pacote de bondades prometido por Bolsonaro às categorias policiais incluía ainda a criação de um plano de saúde para agentes da Polícia Civil do Distrito Federal, bem como seus dependentes. Cabe explicar: os salários das polícias do DF são pagos pelo Fundo Constitucional, que reembolsa o governo distrital pelos gastos que ele tem por abrigar a capital do país. No ano passado, o presidente já tinha sancionado o Habite Seguro, programa de habitação direcionado às famílias de policiais militares. (O projeto, no fim das contas, não foi atrativo e mostrou resultados pífios, com pouquíssimas contratações.)

O efeito mais visível e imediato da decisão de Bolsonaro de privilegiar os policiais em ano eleitoral ficou evidente na manifestação do Fórum Nacional Permanente de Carreiras Típicas de Estado (Fonacate). O grupo, que representa 37 entidades sindicais, enviou ofício ao Ministério da Economia reivindicando uma reunião com Paulo Guedes. A Confederação dos Trabalhadores no Serviço Público Federal (Condisef) diz que se o governo não responder ao ofício até o final de janeiro as entidades convocarão greve geral em fevereiro.

A pressão do funcionalismo público surtiu efeito. Na semana passada, o vice-líder do governo na Câmara, deputado federal Aluísio Mendes (PSC-MA), afirmou que Bolsonaro havia desistido de fazer o reajuste via Medida Provisória. Segundo Mendes, o presidente iria aguardar o fim do recesso parlamentar para discutir o assunto na Câmara. Com o novo recuo de Bolsonaro esta semana, o destino do projeto se tornou ainda mais nebuloso.

 

Uma consequência menos visível – mas que talvez seja a mais grave – do reajuste prometido aos policiais federais é o efeito que isso terá sobre as polícias estaduais. A pressão dessas corporações sobre os governadores, que já não era pequena, tende a aumentar. Vale lembrar que, em fevereiro de 2020, a PM do Ceará promoveu um motim por discordar da proposta do governador Camilo Santana (PT) de reajuste escalonado do salário. Imagens de policiais encapuzados ordenando o fechamento do comércio de rua e esvaziando pneus de viaturas entraram para a história como um alerta.

Na época, o então ministro da Justiça e atual pré-candidato à Presidência Sergio Moro foi ao Ceará e se absteve de criticar o movimento grevista, mesmo ele sendo ilegal. Greves de policiais militares e bombeiros são proibidas pela Constituição. A legislação a respeito disso foi reforçada em 2017 por uma decisão do Supremo Tribunal Federal, que estendeu a proibição de greve às polícias civis. A explicação para isso é simples: braços armados do Estado não podem se rebelar, devido ao risco de que possam tomar à força o poder.

O início de 2020 foi marcado por forte pressão das polícias estaduais sobre os governadores, com ameaças de greve despontando simultaneamente em Minas Gerais, Espírito Santo, Paraíba e Bahia. O Governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), chegou a se comprometer com um reajuste de 41,7% nos salários das polícias mineiras. Tempos depois acabou voltando atrás, concedendo reajuste de apenas 13% à categoria.

Esse movimento foi interrompido pela pandemia, em março de 2020, quando os estados tiveram que concentrar esforços e verbas na área da Saúde. Mais adiante, em maio, foi editada por Bolsonaro a Lei Complementar 173/2020, que suspendeu o reajuste salarial para todo o funcionalismo público até dezembro de 2021, em função da aprovação do socorro fiscal a estados e municípios para o enfrentamento da crise sanitária. O prazo terminou no mês passado. Por isso, 2022 será o ano em que diferentes categorias do funcionalismo pressionarão lideranças políticas – muitas das quais almejam se reeleger.

A economia, enquanto isso, não dá sinais de recuperação. Segundo especialistas, a projeção de crescimento do PIB este ano é de apenas 0,5%, e muitos estados têm situação fiscal frágil em função da crise de arrecadação do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços), que foi afetado por problemas conjunturais e estruturais da atividade econômica. Para piorar, a maioria dos estados já atingiu o limite do que pode ser gasto com pessoal, de acordo com cálculos da Secretaria do Tesouro Nacional. Isso deve comprometer ainda mais qualquer chance de negociação com policiais civis e militares.

 

Ao se projetar como defensor das polícias – mesmo sem ter promovido qualquer benefício significativo para elas –, Bolsonaro reforçou seu elo com a categoria. Caso o reajuste não ocorra, o que é provável, a culpa será transferida para outras figuras que não ele – o Congresso, os servidores de outras carreiras, a equipe econômica do governo. De quebra, o presidente jogou lenha na fogueira das polícias estaduais. Esse movimento pode influenciar os rumos da eleição, bem como as propostas dos candidatos para a segurança pública. É improvável, por exemplo, que mesmo os postulantes da esquerda formulem propostas de modernização das polícias, temendo serem vistos como inimigos dessas corporações.

O debate sobre a reestruturação das carreiras policiais passa pelo reconhecimento de que, no atual formato, elas produzem uma enorme desigualdade salarial entre a base e o topo da hierarquia. O mais recente Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostrou que, nas PMs, a distância média de remuneração entre um soldado e um coronel é de 15,2 vezes. Distorções como essa afetam sensivelmente o cotidiano dos profissionais. Ainda assim, nem mesmo as propostas de lei orgânica das Polícias Civis e Militares que tramitam hoje no Congresso enfrentam a questão ou propõem uma revisão dos planos de carreiras.

Num momento em que Bolsonaro aparece fragilizado nas pesquisas de intenção de voto, ocupando uma posição que talvez não garanta sua passagem ao segundo turno, as promessas feitas aos policiais parecem ter mais a função de fidelizar sua base do que qualquer outra coisa. Para o presidente, garantir o reajuste é a menor das preocupações.

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