Azulão
A primeira vez que ouvi Azulão foi assistindo ao filme Inocência, baseado no romance de Visconde de Taunay, dirigido por Walter Lima Jr. Numa cena sublime, Fernanda Torres, Inocência, bordava e cantava a canção. Alumbramento. Que canção era aquela? Depois disso, passei a perseguir o Azulão, com cuidado, para ele não bater asas e voar para sempre.
Manuel Bandeira, acrilírico poeta, escreveu: estou farto do lirismo comedido, do lirismo bem comportado, não quero mais saber do lirismo que não é libertação. Eu quero a estrela da manhã. Poeta maior que se dizia menor. Poeta do alumbramento e da finitude, em seus versos a celebração da vida e a angústia da morte. Ainda jovem, teve tuberculose e aguardava diariamente a indesejada das gentes chegar. E viveu muito. Sempre com a consciência de quão provisória esta vida é. Nos seus poemas, a delicadeza da infância. Para ele, o poético poderia acontecer no mais humilde cotidiano. Belo belo belo, tenho tudo quanto quero […] Quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples, ele ensinou.
A primeira vez que ouvi Azulão foi assistindo ao filme Inocência, baseado no romance de Visconde de Taunay, dirigido por Walter Lima Jr. Numa cena sublime, Fernanda Torres, Inocência, bordava e cantava a canção. Alumbramento. Que canção era aquela? Depois disso, passei a perseguir o Azulão, com cuidado, para ele não bater asas e voar para sempre. Eu sabia que era de Manuel Bandeira e Jayme Ovalle. Procurei em discos, fui às lojas de música do centro da cidade, atrás de uma possível partitura e nada… Isto foi no começo dos anos 70. Nesta época eu já era leitora de Bandeira, tinha um livro de sua obra completa, da Aguilar, aqueles de papel bíblia, que eu sempre lia. Com Bandeira eu conversava meus desacertos com o mundo, afinava o olhar e a pele. Tanta sensibilidade e musicalidade naquele poeta. Seus versos pareciam cantar. O Azulão que não encontrei ficou sonhando em mim. Quem sabe um dia?
Em 92, quando fiz o roteiro de Canção Brasileira – nossa bela alma, resolvi retomar aquela busca, queria tanto cantar aquela canção. Aí fui procurar naquele livro, o da obra completa, quem sabe alguma indicação, uma pista… Comecei a folhear e lá estava, impressa numa das folhas do livro, a partitura. Lá estava: melodia, letra e harmonia, prontinha para ser tocada e cantada. E eu procurando há tanto tempo e ela já estava comigo. Lembrei de um ensinamento oriental que diz que vivemos buscando aquilo que já temos: Minima moralia.
No Itinerário de Pasárgada, Bandeira fala da questão da relação entre a poesia e a música:“Cedo compreendi que o bom fraseado não é o fraseado redondo, mas aquele em que cada palavra está no seu lugar exato e cada palavra tem uma função precisa, de caráter intelectivo ou puramente musical, e não serve senão a palavras cujos fonemas fazem vibrar cada parcela da frase por suas ressonâncias anteriores e posteriores.”
O poema para ele tem uma musicalidade interna, subentendida, que decorre da natureza intrínseca da emoção poética. Esta natureza intrínseca da emoção poética é composta pela unidade entre o sentido, a sonoridade e o ritmo. Bandeira faz aqui a distinção entre a “música propriamente dita” e a “musicalidade do poema”: a musicalidade subentendida do poema sugere várias possibilidades de composição de “música propriamente dita”, acentuando a possibilidade da criação de diferentes melodias para um mesmo texto.
Azulão foi composto para uma melodia de Jaime Ovalle e depois teve mais duas versões musicais, a de Camargo Guarnieri e a de Radamés Gnattali. “A musicalidade subentendida poderia ser definida por outro músico noutra linha melódica. O texto será um como que baixo-numerado contendo em potência numerosas melodias”, disse Bandeira. A melodia de Ovalle inspirou a letra e nasceu o Azulão, que então se descolou da melodia original, bateu asas e voou. Aí, como poema alado, inspirou outras duas melodias.
O ato de compor em parceria se assemelha, em certa medida, ao de interpretar uma canção: cada interpretação cria uma nova versão da canção.
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