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    Em 2021, ao ouvir a sirene de emergência, moradores de Santa Bárbara abandonaram suas casas e foram para um ponto de encontro, conforme previsto no protocolo de evacuação. Esperaram durante quatro horas, na chuva. A empresa, por fim, disse ter sido mais um alarme falso Foto: Leandro Aguiar

questões minerais

Terror sonoro em Minas

Acionadas sem motivo aparente, sirenes de evacuação vêm causando pânico em um vilarejo mineiro próximo a uma barragem

Leandro Aguiar, de Santa Bárbara (MG) | 13 jan 2025_09h48
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Na Escola Estadual Professora Nhanita, localizada no distrito de Brumal, em Santa Bárbara (MG), os alunos são avisados do recreio não por uma sirene, mas por músicas – em geral, um jazz relaxante. É assim desde 2023. “Alguns alunos desenvolveram gatilhos emocionais ao ouvir a sirene. Além disso, pode acontecer uma confusão, caso um dia a nossa sirene coincida com a da mineradora”, explica a vice-diretora Claydes Araújo, de 49 anos.

Fundado em 1704 às margens do Rio Santa Bárbara por bandeirantes portugueses à caça de ouro, o vilarejo de Brumal, assim batizado por causa da densa bruma que o encobre nos dias de frio, fica a menos de 3 km da barragem Córrego do Sítio II, gerida pela mineradora sul-africana AngloGold Ashanti. Uma distância tão curta que faz com que a estrutura seja visível de todos os cantos do distrito, onde vivem cerca de 2 mil pessoas. A barragem tem 82 metros de altura e 540 metros de comprimento. É semelhante a um morro e comporta 9,8 milhões de m3 de rejeitos de mineração. Volume um pouco menor que os 12 milhões que vazaram da barragem da Vale em Brumadinho, em 2019, matando 272 pessoas.

Os “gatilhos emocionais” que Araújo notou nos alunos têm relação com a barragem. Uma vez por mês, às 10 horas, a sirene de emergência da mineradora é acionada – parte de um teste para verificar se o protocolo de evacuação está funcionando. No dia 29 de outubro do ano passado, porém, o alerta tocou num horário diferente, às 14 horas, quando as crianças mais novas estavam em sala de aula. O som foi acompanhado de um aviso pré-gravado: “Atenção: essa é uma situação real de emergência de rompimento de barragem.”

O pânico se instalou imediatamente. Crianças choravam, gritavam e corriam desorientadas pela escola. Uma delas tentou se jogar de uma janela, mas foi contida; outra se escondeu num armário, em estado de choque, preocupada com a avó que vivia à beira do rio e, por estar acamada, não conseguiria fugir do mar de lama. Um menino não aceitou sair da escola antes de ligar para a mãe e pedir que ela soltasse o cachorro. Temia que, preso à corrente, o animal também não pudesse fugir da onda de rejeitos que tomaria a cidade.

Alguns alunos mais velhos, assim como os professores, se mantiveram impassíveis. Não acreditavam que se tratasse mesmo de um desastre. Era a sexta vez, desde 2019, que a sirene tocava fora do horário estabelecido, alardeando o rompimento da barragem. Dessa vez, como nas outras, não passou de um alarme falso, segundo a empresa.

 

A barragem Córrego do Sítio II é uma estrutura antiga, erguida em 1986 para conter os rejeitos da mineração do ouro, como ácido sulfúrico, arsênio e alumínio. Desde 2021, está em processo de descaracterização – isto é, não recebe novos resíduos e passa por obras que visam torná-la mais estável. Não é como um processo de “descomissionamento”, em que a barragem é desmontada e some da paisagem. Em Santa Bárbara, o monte de rejeitos continua onde sempre esteve, e com o mesmo tamanho. A Agência Nacional de Mineração (ANM) constatou que, caso haja vazamento desse lamaçal tóxico, o impacto ambiental sobre Santa Bárbara e cidades vizinhas será “muito significativo”. Já o impacto socioeconômico, calculado numa escala que vai de zero a cinco, levou nota cinco.

O Brasil, país com histórico de mineração intensa que remonta à colonização, tem muitas barragens frágeis. O mais recente Relatório de Segurança de Barragens, divulgado no ano passado pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), constatou que há 1.591 estruturas desse tipo com alto risco de rompimento e com potencial de dano médio ou alto. O país contabilizou 25 acidentes com barragens em 2023, um a mais que em 2022 (a ANA considera acidentes os casos em que a estrutura como um todo é comprometida). Nenhum deles resultou em mortes, mas alguns causaram danos ambientais e urbanísticos. 

A fiscalização, ainda assim, patina. Até março de 2019, não havia sirenes em Santa Bárbara nem sinalização de rotas de fuga para situações de emergência, protocolo básico quando se trata de uma barragem tão próxima a um aglomerado urbano. Só depois das tragédias de Mariana (2015) e Brumadinho (2019) o poder público tomou uma medida contundente: a aprovação, na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, da lei “Mar de Lama Nunca Mais”, que restringiu a construção de barragens no estado e obrigou as mineradoras a adotar sistemas de alerta e planos de evacuação onde já existissem essas estruturas. 

Os moradores de Santa Bárbara temem que uma tragédia semelhante ocorra em sua cidade. Em 2019, um mês depois do rompimento da barragem de Brumadinho, passaram por um susto. A Defesa Civil pediu que 230 pessoas deixassem suas casas em Barão de Cocais, município a poucos quilômetros de Santa Bárbara. O povoado ficou paralisado por meses, na iminência do rompimento de uma das barragens da mina Gongo Soco, da Vale – o que, apesar dos alertas, nunca aconteceu. Pouco depois, a mineradora AngloGold Ashanti, obedecendo à nova lei, instalou 23 sirenes em Santa Bárbara. Centenas de placas apontando rotas de fuga e pontos de salvamento foram colocadas em vias públicas.

À esquerda, a barragem. À direita, o distrito de Brumal (Crédito: Google Earth)

 

A medida foi bem recebida pela população, mas o sistema de alertas sonoros sempre demonstrou falhas. Moradores da cidade relatam que, ainda no primeiro semestre de 2019, ele soou em falso pela primeira vez. Roseni Aparecida, servidora pública e cantora de forró, lembra que era noite quando ouviu a sirene. Ainda abalada pelo que ocorrera em Brumadinho, onde um amigo de sua família morreu, ela duvidou dos próprios ouvidos. “Pensei que eu estava relacionando uma coisa com a outra, e não identifiquei bem o barulho.” Ela diz que só se convenceu do que estava acontecendo quando recebeu, no celular, mensagens de vizinhos desesperados. Muitos fugiram de suas casas o mais rápido que puderam, até serem informados de que não havia rompimento algum. Aparecida diz que, apesar do susto enorme, os moradores foram compreensivos: como a sirene tinha sido recém-instalada, acharam normal que ela ainda apresentasse sinais de instabilidade.

A recorrência com que os alertas passaram a tocar, no entanto, gerou não só irritação, mas também receio de que haja mesmo algo de errado na barragem. Em janeiro de 2022, alguns habitantes de Barra Feliz, outro distrito de Santa Bárbara, notaram a presença de uma lama cinzenta pelas ruas. Parte dela invadiu o quintal de Aparecida e de seus vizinhos, que procuraram a mineradora para perguntar se aquilo tinha relação com a barragem.

Tinha. “Um incidente” havia ocorrido, explicou a AngloGold Ashanti em comunicado público. Uma de suas pilhas de rejeitos, “impactada pelas fortes chuvas de janeiro”, deslizou até um córrego d’água. Obras emergenciais foram anunciadas para impedir novos deslizamentos. 

Como a lama era tóxica, Aparecida, seu marido e os dois filhos foram alojados durante dois meses em um hotel de Santa Bárbara, com hospedagem paga pela mineradora. Enquanto isso, a empresa removia os rejeitos do seu quintal. Uma das filhas de Aparecida, com 9 anos na época, desenvolveu um quadro de estresse pós-traumático e não conseguiu voltar para casa. Dessa vez com recursos próprios, já que a mineradora não aceitou arcar com os custos, a família alugou um novo imóvel. “Nos tornamos refugiados da barragem”, diz Aparecida.

Concluídas as obras emergenciais, em maio daquele ano, a AngloGold Ashanti garantiu aos moradores que a barragem permanecia “estável e em constante monitoramento”. A avaliação foi corroborada pela Agência Nacional de Mineração (ANM), segundo a qual a pilha de rejeitos em Santa Bárbara tinha “estruturas bem mantidas e em operação normal”.

Mas a situação mudou no ano seguinte. Em maio de 2023, funcionários da própria mineradora que moravam em Santa Bárbara avisaram aos vizinhos que duas enormes trincas – uma de 80 metros de comprimento, outra de 300 metros – haviam surgido na barragem. Segundo eles, era um sinal de que a estrutura estava prestes a ceder. A informação chegou até a ANM, que fez uma nova vistoria e, dessa vez, enquadrou a barragem no nível 1 de risco – o menor, numa escala de 3. Isso significa que parte da estrutura estava danificada e precisava passar por reformas urgentes. Se não fossem feitas rapidamente, a situação poderia se degradar até o nível 2, o que exigiria a evacuação de parte da cidade. O nível 3 só é adotado quando o rompimento da barragem é iminente ou já está em curso.

Em agosto de 2023, a mineradora anunciou a “suspensão temporária” da produção no Córrego do Sítio e demitiu 650 funcionários. De acordo com a empresa, a decisão não teve relação com as trincas ou com o vazamento de rejeitos. “A unidade estava operando com resultados negativos e alto custo crescente ao longo dos últimos anos”, justificou-se. “Assim, mesmo após diversos estudos de alternativas, não houve cenário viável para a continuidade da operação neste momento. O processo de suspensão iniciado hoje é temporário e será reavaliado de modo sistemático ao longo dos próximos anos.”

Atendendo à exigência da ANM, a AngloGold Ashanti fez obras de reparo onde apareceram as trincas. Depois de uma nova vistoria, a agência constatou que tudo ia bem e retirou o alerta da barragem. “Todas as estruturas estão seguras e estáveis”, comemorou um informe da mineradora. Com tantos sustos seguidos, porém, é difícil passar tranquilidade aos moradores. A barragem é tópico frequente de conversas na cidade. “Brumadinho tinha o atestado de que era seguro, mas rompeu lá, de repente”, diz o radialista aposentado Ronaldo de Oliveira, de 67 anos, morador do Sumidouro, outra vila de Santa Bárbara.

Liziane Lima, de 52 anos, trabalhou até 2023 na Coordenadoria Estadual da Mineração do Ministério Público de Minas Gerais. Parte de sua rotina consistia em visitar barragens e avaliar os planos de evacuação de cidades, se certificando de que atendiam às exigências. Segundo ela, o que acontece em Brumal “é inaceitável”. “Quando há falhas num sistema de alerta previsto como requisito mínimo para proteger a população, e não é feita a adequação desse sistema, você está negociando com a vida das pessoas”, diz Lima.

Segundo ela, a comparação que os moradores fazem com Brumadinho não é descabida. “Nunca vi um especialista assinalar que uma barragem está 100% segura. Uma barragem que não está em situação de alerta pode estar segura naquele momento específico. Mas, num intervalo de apenas uma hora, pode acontecer algo que altere o nível em que ela está.” Ou seja, uma barragem pode saltar do risco zero direto para o risco de nível 3, sem passar pelos pontos intermediários – como aconteceu em Brumadinho, na tarde de 25 de janeiro de 2019, sem que nenhuma sirene tivesse sido acionada para alertar os moradores.

 

Ana Paula Souza, de 37 anos, mora a 800 metros da barragem Córrego do Sítio II, numa casa à beira do rio que pertenceu a seus pais e, antes disso, a seus avós. Presenciou alguns dos alarmes que aterrorizaram a cidade desde 2019. O mais traumático, segundo ela, foi em 2021. “Chovia muito, e quando é assim a gente já fica na expectativa de que os rejeitos, que têm mau cheiro, cheguem ao rio”, conta. Por volta das 14 horas, a sirene tocou, anunciando novamente que aquilo não era um teste e que todos deveriam deixar suas casas. Mãe de quatro filhos – um deles de colo, na época –, Souza, auxiliada pela mãe, agarrou as crianças e saiu à chuva, onde estavam também seus vizinhos.

Eles esperaram quatro horas à beira de uma estrada, ponto de encontro previsto nos planos de evacuação. Telefonaram para os números disponibilizados pela AngloGold Ashanti, mas, segundo Souza, a empresa não lhes dizia com precisão o que estava acontecendo. Já era noite quando a mineradora os informou de que, novamente, havia sido um alarme falso.

Desde aquele dia, segundo Souza, sua filha mais velha, de 14 anos, não consegue dormir em dias de chuva. Se escuta algo semelhante a uma sirene, logo fica inquieta, em estado de ansiedade. Recentemente, Souza procurou uma de suas malas para emprestar à irmã e estranhou ao encontrá-la preenchida com roupas e livros da filha. Descobriu, assim, que a menina mantinha, desde 2021, a bagagem pronta para fugir caso a barragem rompesse.

Casos como o de Ana Paula Souza e Roseni Aparecida motivaram o Ministério Público de Minas a ajuizar uma ação contra a AngloGold Ashanti, em 3 de dezembro passado. Os promotores pedem uma indenização de 20 milhões de reais por danos morais coletivos infligidos à população de Brumal. Argumentam que os seguidos alarmes que a mineradora afirmou serem falsos “podem ocasionar diversos problemas aos moradores, como distúrbios psicológicos, pânico, acidentes e lesões”. No processo, os promotores pedem ainda que seja feito um relatório sobre o sistema de alerta, para detectar o que pode estar causando os disparos sonoros, e uma nova vistoria para averiguar a estabilidade da barragem.

O litígio divide opiniões na cidade. Alguns moradores, temendo a tragédia que lhes parece iminente, lutam pela indenização que consideram justa. Mas, como a economia de Santa Bárbara depende da renda da mineração, há aqueles que torcem pelo retorno da AngloGold Ashanti, contando que, com isso, os funcionários demitidos sejam contratados de novo.

Um deles conversou com a piauí sob condição de anonimato, por receio de se indispor com os vizinhos que estão do outro lado da causa. Ele contou que, apesar de não ter concluído o ensino fundamental, recebia um salário que considerava alto, de 5 mil reais por mês, turbinado pelo adicional de insalubridade – valor extra a que ele tinha direito por se expor ao risco dentro das minas. Desde a suspensão das atividades em Córrego do Sítio II, está desempregado. Torce para que a mineradora volte a operar na cidade o quanto antes.

 

Na tarde de 29 de outubro, depois do pânico na escola, a AngloGold Ashanti emitiu um comunicado público reconhecendo “o acionamento equivocado do sistema de emergência”. Pediu desculpas aos moradores da cidade e afirmou “que as barragens estão seguras e estáveis”. Procurada pela piauí, a empresa acrescentou, por meio de nota, que estava investigando “os motivos do acionamento indevido de parte das sirenes”. Antecipou-se, porém, em dizer que o acionamento não dizia respeito à “segurança nas barragens, mas sim aos componentes eletrônicos do sistema de comunicação de parte das sirenes”. Não explicou, porém, que componentes são esses, por que falharam e se foram trocados.

Informada pela reportagem sobre os relatos dos moradores de Santa Bárbara, a mineradora afirmou apenas que “mantém diálogo aberto e transparente com os órgãos públicos e com a comunidade de Santa Bárbara”, e que “oferece atendimento psicológico à população interessada”. Questionada sobre o processo movido pelo Ministério Público, a AngloGold Ashanti disse que “respeita as decisões da Justiça e não comenta detalhes de temas que tramitam no Judiciário, buscando dentro dos parâmetros legais defender suas posições”.

Já a ANM, em nota enviada a piauí, afirmou que “vem acompanhando a condição de segurança” da barragem e que exigiu da AngloGold Ashanti “um plano de ação para [investigar] os casos de acionamentos indevidos” das sirenes. O plano está em fase final de elaboração, segundo a agência, que não deu mais detalhes. Caso se confirme que os seis alarmes eram mesmo falsos, não há possibilidade de que a mineradora seja punida, apesar dos transtornos causados à população. Isso porque, segundo a ANM, “não existe previsibilidade de autuação ou de aplicação de alguma sanção para as empresas por acionamentos indevidos de sirenes em barragens.” Trata-se de um problema inédito.

No dia seguinte ao alarme falso, Claydes Araújo reuniu as crianças em círculo, na escola, para uma dinâmica em grupo. Pediu que cada uma delas expressasse, em desenhos, o que havia sentido no dia anterior. Uma menina registrou a família no meio de uma correria; um menino fez um coração partido. “Eles ainda não sabem denominar certos sentimentos, mas todos os desenhos traduziam um incômodo, algo que doeu”, diz a vice-diretora. A AngloGold Ashanti disponibilizou uma psicóloga para os alunos, mas a maioria dos pais, ressabiados com a mineradora, não quiseram que seus filhos se consultassem com ela.

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