Rita de Cássia é mediadora de leituras e coordenadora da Livro Livre Curió Foto: Lianne Ceará
A biblioteca anarquista da Rita
Como um projeto de leitura criado por uma manicure vem transformando o bairro onde se deu uma das maiores chacinas do Ceará
Toda segunda-feira à noite, depois de acomodar pedaços de bolo num recipiente de plástico, Rita de Cássia da Silva deixa a cozinha de sua casa e vai ao quarto pegar uma bolsa repleta de livros. As publicações vêm de uma estante imensa que ocupa quase toda a sala do imóvel simples onde a manicure de 55 anos mora com dois filhos e uma neta. Localizada na periferia de Fortaleza, a residência de três dormitórios sedia a biblioteca comunitária Livro Livre Curió, organizada por Rita de Cássia – uma mulher parda – e sua família. Carregando a bolsa e os pedaços de bolo, a manicure sai desacompanhada e percorre pouco mais de uma quadra até chegar à CasAvoa, pequeno centro cultural que funciona como extensão da biblioteca. Quando entra no espaço, já está rodeada dos meninos e meninas que, ao vê-la passar pela rua, tratam de segui-la. É dia do clube infantojuvenil de leitura. “Tia Ritinha, olha a blusa que vesti hoje. Igualzinha à sua”, comentou uma das trinta crianças presentes na última segunda de janeiro. A camiseta cor de laranja trazia o nome da biblioteca em letras garrafais. Também exibia desenhos de pássaros, folhas e três personagens com feições indígenas.
Foi um dos filhos da manicure, o produtor cultural Talles Azigon, de 33 anos, quem teve a ideia da Livro Livre em 2018. Parentes e amigos logo o apoiaram e doaram não só a estante como centenas de volumes. Ex-professora de uma creche, onde trabalhou por duas décadas, Rita de Cássia acabou virando coordenadora da biblioteca e mediadora de leituras. “A gente se baseia no pensamento anarquista de autonomia e autogestão. Por isso, dizemos que a biblioteca é livre. Os usuários não pagam nada, não precisam se cadastrar e não têm prazo para devolver os livros que pegam emprestados”, esclarece Azigon. Ele começou o projeto pouco depois de sua avó materna morrer. “Como minha mãe caiu num luto profundo, resolvi fazer algo que pudesse animá-la e que, de quebra, auxiliasse a comunidade.” O produtor costuma afirmar que a maior beneficiária da iniciativa é Rita de Cássia. “Ela venceu a depressão graças à biblioteca.”
Há oito anos, o bairro Curió – onde fica a Livro Livre – se tornou palco de uma das maiores chacinas do Ceará. Numa madrugada de novembro, policiais militares feriram sete pessoas e mataram onze na região e em três outros bairros periféricos de Fortaleza: Alagadiço Novo, São Miguel e Messejana. De acordo com a Controladoria-Geral de Disciplina dos Órgãos de Segurança Pública e Sistema Penitenciário, os PMs atiraram aleatoriamente para vingar a morte de um colega. A manicure assistiu pela janela de casa à movimentação no Curió durante aquela madrugada de terror. “Meu filho mais novo, Pedro William, poderia estar entre as vítimas. Ele é skatista e andava pela rua na hora dos tiros. Um de seus amigos, também skatista, acabou assassinado”, conta Rita de Cássia.
A manicure e seus familiares acreditam que a biblioteca vem ajudando a mudar a imagem do bairro, ainda muito identificado com a chacina. “Em 2019, um ano depois de abrirmos a Livro Livre, minha sala ficou pequena demais para os debates que realizávamos. Decidimos, então, alugar um imóvel próximo, com dinheiro do nosso bolso mesmo”, lembra Rita de Cássia. Nasceu, assim, a CasAvoa. O centro cultural, além de abrigar parte da biblioteca, promove rodas de conversa, clubes de leitura e sessões de cinema a céu aberto.
Na última segunda-feira de janeiro, quando a piauí esteve na CasAvoa, a manicure e Azigon leram o livro infantil Achados e Perdidos, de Nye Ribeiro, para as trinta crianças que participaram do encontro, muitas acompanhadas das mães. Depois, a dupla organizou dinâmicas lúdicas que dialogavam com a obra. “Não sei de onde saiu tanto menino hoje. Era para ser só o grupo dos bebês”, disse Rita de Cássia, referindo-se às crianças com menos de 2 anos. As atividades do clube infantojuvenil de leitura se alternam entre quatro faixas etárias: 0 a 1 ano, 2 a 7 anos, 8 a 12 anos e 13 a 18 anos.
De início, os responsáveis pelo projeto contabilizavam o movimento da biblioteca e do centro cultural. “Houve um mês em que tivemos 1,3 mil visitas”, recorda Azigon. A partir de 2020, porém, eles pararam de contar. “A gente não quer entrar na noia de fazer as coisas pensando em alcançar um número xis de pessoas”, justifica o produtor.
No começo da quarentena imposta pela Covid, Azigon cogitou desistir da empreitada. “O único financiamento que tínhamos saía do nosso bolso. Como a grana encurtou, achei melhor fechar as portas – até porque precisava garantir o sustento da família.” Mas a manicure pediu que o filho reavaliasse a decisão. “Ela me falava que, durante a pandemia, as pessoas iriam necessitar da biblioteca mais do que nunca.” Estava certa. Por meio da Livro Livre, moradores do Curió receberam doações de alimentos, máscaras e produtos de limpeza. Também dispuseram de informações sobre a doença. “Havia muito negacionismo por aqui. A gente ligava para o pessoal do bairro e recomendava que se vacinasse, que não deixasse os filhos pequenos circularem pelas ruas”, diz o produtor. Sem internet de qualidade em casa, inúmeras crianças usavam o sinal da biblioteca para assistir às aulas online. “Numa escola, os professores não sabem direito onde os alunos moram. Na Livro Livre, é diferente. As crianças são filhas de amigos, vizinhos ou conhecidos. Então a gente cria um compromisso maior com cada uma delas”, explica Azigon.
Hoje, o projeto custa 2.095 reais por mês, incluindo o auxílio financeiro para os jovens monitores, o aluguel da CasAvoa, a conta da internet e os gastos com os bolos e outros quitutes que compõem o lanche fornecido aos integrantes do clube de leitura. A família da manicure continua bancando a maior parte das despesas. O resto do dinheiro provém de financiamentos coletivos.
Num primeiro momento, o clube de leitura se restringia às crianças e aos adolescentes. Agora há um voltado exclusivamente para as mulheres. Rita de Cássia o implantou com o aval entusiasmado de Azigon. “Gosto de promover discussões sobre livros de escritoras negras cujos temas giram em torno do universo feminino. Não são apenas as crianças e os jovens que precisam de cuidados. Mães e avós também merecem atenção”, ressalta a manicure.
Em agosto de 2019, o projeto recebeu a visita da romancista e linguista negra Conceição Evaristo, que participava da 13ª Bienal Internacional do Livro do Ceará. “Ela veio aqui em casa. A gente almoçou, conversou… Foi tão bom! Eu fico emocionada toda vez que me lembro daquele dia”, afirma Rita de Cássia. Uma das obras mais famosas de Evaristo, a coletânea de contos Olhos D’Água, ajudou a manicure a superar a depressão causada pela morte de sua mãe.
Quando indagada sobre a possível extinção dos livros físicos, Rita de Cássia é incisiva: “Se depender de mim e dos meus filhos, não vão acabar! Nada iguala o prazer de folhear as páginas, sentir o cheiro delas…” No ano passado, durante a 14ª Bienal do Livro do Ceará, a manicure recebeu uma homenagem do governo estadual por seu trabalho em prol da literatura. “Fiquei feliz, claro! O Curió está deixando de ser o bairro da chacina para se transformar no bairro da biblioteca.”
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