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questões cinematográficas

Big Jato – força estranha leva Cláudio Assis a filmar

Baseado nas memórias homônimas de Xico Sá, uma força estranha emana do filme Big Jato

Eduardo Escorel | 23 jun 2016_16h43
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Baseado nas memórias homônimas de Xico Sá, uma força estranha emana do filme Big Jato. Estranha por quê? A explicação talvez esteja, em parte, no talento de Cláudio Assis para evocar o tempo da juventude, semelhante à de Xico Sá, conforme declarou em entrevista a André Miranda.

Na primeira linha das suas memórias, Xico Sá revela apreciar “aquela falsa pista” do autor de O Tesouro de Sierra Madre, B. Traven, “que dizia mais ou menos assim: ‘De certa forma, uma história não significa nada a menos que você mesmo a tenha vivido’.” Sem desconhecer possíveis falhas e tampouco abrir mão do direito de inventar, Sá admite que a história contada no livro Big Jato “é verdadeira” e que ele esticou “ao máximo a corda da verossimilhança”. É desse enraizamento profundo no agreste nordestino, compartilhado por Assis, que emana a vitalidade do filme Big Jato.

O paradoxo que valoriza Big Jato está em adotar como lema o mantra de Assis, escrito no paralama do caminhão: “Quem não reage, rasteja”, em oposição a “Dirigido por mim, guiado por Deus”, citado nas memórias menos rebeldes de Sá. Reagir, na fabulação de Assis, é ir embora do Agreste, respondendo a “uma necessidade do ser humano correr atrás de uma coisa melhor”, conforme disse na entrevista citada, e é explicitado no diálogo do filme, dirigido diretamente para a câmera: ‘Sertanejo forte é o que parte, não o que fica.”

Invertendo, porém, a célebre noção de Walter Benjamin, baseada em um dito alemão, segundo a qual “quem viaja tem o que contar”, emigrantes nordestinos algumas vezes levam consigo um repositório de experiências que lhes serve como fonte de inspiração para romances, poemas, filmes etc. Se a premissa de Big Jato é partir, o filme ao mesmo tempo é um comovente retorno ao local de origem, sem o qual não haveria o que contar.

Outro mérito de Assis, a partir do roteiro de Hilton Lacerda e Ana Carolina Francisco, assim como da fotografia de Marcelo Durst, resulta da capacidade de superar o que parece intransponível. Lendo a descrição dos dois personagens principais de Big Jato feita por Sá, à primeira vista, dificilmente Matheus Nachtergaele pareceria indicado para os papéis. São irmãos gêmeos. Um, o Velho, assim chamado no livro, motorista do caminhão limpa-fossas Big Jato; o outro, não nasceu para escravo e declara que adora “testemunhar os outros trabalhando duro”. Define-se como “um voyeur do suor alheio”. A aposta de Assis, porém, é vencedora. “Em estado de graça”, como declarou a montadora de Big Jato, Karen Harley, com desempenho notável, Nachtergaele reafirma seu notório talento e desmente céticos como este blogueiro. Ele está mesmo magnífico e é um dos principais fatores do bom resultado do filme.

Ao longo de todo o texto de Sá, chama atenção o obsessivo vocabulário escatológico, justificado, até certo ponto, uma vez que o motorista do limpa-fossas, segundo o irmão, “ganhou a vida e fez fortuna com aquilo que a humanidade mais tem nojo e despreza”. Mesmo assim, a ênfase parece exagerada. Apenas nos dois primeiros parágrafos do capítulo 6, por exemplo, há um desfilar de termos chulos, todos sinônimos de fezes. No filme, porém, curiosamente, considerando o conhecido temperamento ebuliente de Assis, essa fixação fecal é atenuada e os diálogos resultam apropriados.

Cláudio Assis, em termos brasileiros, é um diretor prolífico. Estreou 4 filmes em 14 anos, um a cada três anos e meio. É uma média razoável. Em outro país talvez tivesse feito mais filmes nesse mesmo período. Mas indica, de qualquer modo, força estranha que o leva a filmar com regularidade, resultando em aprimoramento benéfico.

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