Ryan Gosling na pele de K, um replicante temível e sem emoções cujo ofício é liquidar antigas versões de seus semelhantes que ainda estejam em circulação FOTO: DIVULGAÇÃO
Blade Runner 2049 – contrafação caprichada
Blade Runner levou uma década para se consumar como filme cult, e a sorte de sua sequência ainda é incerta
A boa notícia sobre a vida na Terra daqui a 32 anos é que ainda se ouvirá Frank Sinatra – começa assim a crítica de Anthony Lane sobre Blade Runner 2049, publicada na New Yorker. “É verdade”, ele pondera, “que Sinatra não passa de um holograma, cantando para meia dúzia de gatos pingados.”
Depois do que me pareceu ter sido pelo menos uma hora de filme, KD6.3-7 (Ryan Gosling) ou K, como é conhecido, chega ao cassino abandonado e quase deserto de Las Vegas onde, além de Sinatra, outros hologramas – de Elvis Presley e coristas – também são apresentados. A paisagem desolada da megalópole, dominante no cansativo terço inicial de Blade Runner 2049, dá lugar, então, a uma breve fantasia nostálgica que certamente gratifica os admiradores de Blade Runner, o Caçador de Androides, o filme original, de 1982, dirigido por Ridley Scott.
K, agente do Departamento Policial de Los Angeles (LAPD), é um replicante temível e sem emoções cujo ofício é liquidar antigas versões de seus semelhantes que ainda estejam em circulação. Escondido no cassino, ele encontra Rick Deckard (Harrison Ford), o protagonista de Blade Runner, o Caçador de Androides, trinta anos mais velho. Deckard, agente aposentado da LAPD e ex-caçador de replicantes, seria mesmo um replicante? A dúvida permanece até hoje. É a luta de vida ou morte entre K e Deckard que passa a conduzir Blade Runner 2049 ao seu desfecho após duas horas e quarenta e três minutos de projeção.
Blade Runner, o Caçador de Androides, baseado no romance Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? (1968), de Philip K. Dick (publicado no Brasil em 1989), chegou a ser considerado o filme de ficção científica mais influente já feito. Mas não obteve esse reconhecimento de imediato, ao ser lançado em 1982. A reação inicial de grande parte do próprio elenco e da equipe foi de perplexidade. Críticas negativas predominaram quando estreou nos Estados Unidos e foi chamado de “fascinante fracasso”.
Janet Maslin escreveu no New York Times que o filme dirigido por Ridley Scott, a partir do roteiro de Hampton Fancher e David Peoples, era “confuso, horrível, uma bagunça”. Pauline Kael, na New Yorker, sentenciou: “Se alguém aparecer com um teste para detectar humanoides, talvez Ridley Scott e seus colaboradores devam se esconder.”
Houve também comentários positivos, alguns proféticos: “Suspeito que a história será mais amável [com o filme] do que os críticos”, um resenhista escreveu. O que dominou, porém, foi mesmo a “berraria histérica” desfavorável, conforme Paul M. Sammon descreveu no seu livro de mais de 400 páginas dedicado a Blade Runner, o Caçador de Androides [Future Noir: The Making of Blade Runner, de 1996, sem edição no Brasil].
O público, de seu lado, diminuiu gradativamente depois do fim de semana de estreia, no qual o resultado de bilheteria foi até considerado bom. Segundo Sammon, à parte o que deve ser atribuído ao próprio filme, o fator decisivo para “o resultado financeiro deplorável pode ser resumido a duas letras: E.T.” [E.T. – O Extraterrestre (1982), de Steven Spielberg, foi lançado seis semanas antes]. Para Sammon, “o bombom spielberguiano não só competia diretamente com Blade Runner, mas era também a antítese sentimental do pessimismo sombrio de Runner”.
A virada que consagraria Blade Runner como filme cult, revelando seus grandes atrativos, começou no mesmo ano do seu lançamento, mas levaria uma década para se consumar. Em carta de 1982, contestando a crítica negativa da revista People que considerou injusta, o leitor J. P. Byrd, citado por Sammon, fez previsão certeira: “Blade Runner acabará sendo, sem dúvida, um filme cult. Seu único erro foi oferecer demais para o espectador médio. Eu não sou o único nesta cidade que assistiu ao filme seis vezes e percebeu coisas novas cada vez. Ele é rico em detalhe e emoção e profundo em drama e mensagem.”
O renascimento de Blade Runner, passando a ser um filme prestigiado, é atribuído a vários fatores, entre eles seu lançamento na então nascente tevê a cabo, assim como em VHS e LaserDisc, graças aos quais passou a ser apreciado por um público que dificilmente iria ao cinema para ver um filme de ficção científica. Em 1994, meio milhão de cópias em VHS de Blade Runner havia sido vendido.
Além da grande penetração nos chamados mercados complementares, surgiram críticas positivas apregoando os méritos de Blade Runner em revistas especializadas, complementadas pela publicação de um fanzine e da edição universitária de um livro dedicado ao filme, reunindo dezenove ensaios (Retrofitting Blade Runner: Issues in Ridley Scott’s Blade Runner and Philip K. Dick’s Do Androids Dream of Electric Sheep?, editado pela Bowling Green State University Popular Press em 1991), confirmando que Blade Runner tinha se tornado objeto de desejo.
Não há como saber qual será a sorte de Blade Runner 2049, dirigido por Denis Villeneuve, a partir do roteiro de Hampton Fancher (coautor do roteiro do filme de Ridley Scott) e Michael Green. A renda no fim de semana de estreia nos Estados Unidos (6 a 8 de outubro) foi considerada abaixo “das expectativas mais modestas”, por alguns. Outros definiram a bilheteria como “um desastre”. No mercado externo, porém, onde teve lançamento simultâneo em mais de vinte países, inclusive o Brasil, o resultado foi tido como “satisfatório”.
A crítica se dividiu. Para uns, Blade Runner 2049 é “visualmente impressionante”, um “espetáculo narcótico de vastidão estranha e impiedosa”, “satírico, trágico e romântico”, “não poderia ser um triunfo maior: uma ampliação e um aprimoramento estonteantes” (Peter Bradshaw, The Guardian). Outros consideram o filme “desgastante e confuso”, “um quebra-cabeça privado armazenado em um blockbuster” (Anthony Lane, The New Yorker).
Produzido por mais de 155 milhões de dólares, em dez dias Blade Runner 2049 rendeu cerca de 60 milhões de dólares (38,2%) nos Estados Unidos e 98 milhões de dólares (61,8%) no exterior. À parte o resultado financeiro do investimento que ainda está por ser definido, o filme em si não passa de uma contrafação caprichada. Será esquecido ou se tornará cult? Aguardemos para saber.
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