Bolsonaro promete limpeza
Vamos precisar da velha política
Há um poema bonito do polonês Czeslaw Milosz (poesia, numa hora dessas?) de que tenho me lembrado com frequência, nas últimas semanas. Chama-se “Para Raja Rao”.
Assim como Milosz, Rao, o destinatário dos versos, era escritor. De origem indiana, havia se radicado nos Estados Unidos. O texto é do final dos anos 60, foi escrito quando o polonês morava na Califórnia, e funciona como uma carta entre dois imigrantes.
Um trecho específico, que reproduzo aqui utilizando a tradução de Nelson Ascher, vale, a meu ver, por um volume inteiro de filosofia política. Diz assim: “Pouco à vontade na tirania, pouco à vontade na república,/numa eu ansiava por liberdade, noutra pelo fim da corrupção./Construindo em minha mente uma ‘polis’ permanente/despojada para sempre de alvoroço despropositado./Aprendi finalmente a dizer: este é o meu lar,/aqui, diante do carvão em brasa de ocasos no oceano,/no litoral que se defronta com o litoral da sua Ásia,/numa grande república, moderadamente corrupta.”
A beleza do poema – uma delas – está na conquista da maturidade pelo autor da carta, que afinal desiste da busca por perfeição, sem abrir mão da liberdade. “Aprendi finalmente”, ele escreve. A vontade de pureza, que antes o mobilizava, poderia ser descrita como uma paixão adolescente, pouco tolerante, tão perigosa quanto o cinismo.
O trecho termina com o elogio da vida cotidiana “numa grande república, moderadamente corrupta”. Milosz está se referindo aos Estados Unidos dos anos 60, mas não deixa de ser um ideal, algo a ser perseguido: uma república forte, capaz de conter qualquer tentativa de tirania, mesmo sabendo que nunca será totalmente “limpa”. Nada é.
Faltando poucos dias para o segundo turno do pleito presidencial, quando boa parte dos eleitores parece ansiar por pureza, faz sentido falar de uma ou duas características de nossas instituições que, a meu ver, têm contribuído para que nossa República seja relativamente frágil – e demasiadamente corrupta.
Em nosso sistema político, o presidente conta com o poder de montar uma coalizão de partidos aliados no Congresso suficientemente ampla para, em condições normais de temperatura e pressão, comandar o trabalho legislativo e aprovar grande parte de sua agenda. Se quiséssemos simplificar bastante as coisas, poderíamos dizer que no Legislativo brasileiro passa quase tudo o que um presidente queira, enquanto ele tiver força política.
Um dos efeitos desse arranjo é que há pouco debate no Congresso. As leis com frequência são feitas às pressas e sem transparência. Na Câmara, o trabalho é conduzido pela mesa diretora e pelos líderes partidários, que negociam com o governo as pautas que importam. A maior parte dos deputados tem pouco a dizer ou a fazer nesse processo. Tudo isso garante “governabilidade”, mas a um custo alto. Segundo o cientista político Bruno Wanderley Reis, tais regras sempre arriscaram “desmoralizar gravemente o Congresso Nacional aos olhos da opinião pública”. Foi o que aconteceu.
Apesar do otimismo de alguns dos nossos melhores especialistas com o presidencialismo de coalizão, suspeito que o particular funcionamento dos trabalhos legislativos no país tenha contribuído para o ambiente de descrença e crise política que vivemos desde 2013, bem como para o sucesso do discurso antissistema de Jair Bolsonaro.
Se a maioria dos deputados, conduzida por seus líderes partidários, costuma estar na maior parte do tempo aliada ao governo, a quem compete o trabalho de fiscalizar o Executivo, de funcionar como freio a possíveis abusos de poder? Essa tarefa, que em grande medida deveria caber ao Legislativo, entre nós foi em parte terceirizada, por decisão dos constituintes de 1988, para instituições como o Ministério Público e o Supremo Tribunal Federal. A eles tem cumprido vigiar e conter não só atos do Executivo, mas, não raro, também intervir em disputas internas ao Legislativo, e entre esses dois Poderes. Essa é a raiz institucional da tão falada judicialização da política – ou, o que dá no mesmo, a politização da Justiça. Como os conflitos têm dificuldade de encontrar expressão no Congresso, crescem as batalhas nos tribunais.
A solução não é das melhores. De um lado, facilita a corrupção. Diante de uma oposição que pouco pode negociar, que dirá fiscalizar, não é difícil para um punhado de burocratas, na esplanada dos ministérios, e de deputados, que na Câmara controlam a redação e a aprovação das leis, inserir nos projetos favores e benefícios a grupos de pressão específicos. Em sua delação, o ex-ministro Antonio Palocci afirmou que havia pagamentos de propina em nada menos do que 90% das medidas provisórias editadas nos governos Lula e Dilma. Onde faltam luz e debate sobram favorecimentos e desvios.
Mais tarde, procuradores, juízes e até ministros do Supremo se manifestarão. Sua atuação não se resume aos casos de corrupção, é claro. Chamados com frequência pelos atores políticos a resolver conflitos, os integrantes do STF passaram aos poucos a ser identificados – e a atuar – como parte das disputas. Isso tem tido consequências graves. As idas e vindas do tribunal criam insegurança e desestabilizam o jogo democrático. No final de 2016, aconteceu afinal de a Corte ser desrespeitada. Por decisão de um dos ministros do Supremo, Renan Calheiros deveria ser removido da presidência do Senado. O político alagoano se recusou a receber a ordem da Justiça, bateu o pé no cargo e esperou que o colegiado se reunisse para voltar atrás na decisão.
Mais abaixo na hierarquia da República, integrantes do Ministério Público e do Judiciário dão um tiro no pé quando, no exercício de suas funções, dão a impressão de tentar interferir nos processos políticos e eleitorais. Foi bastante questionável, para ficar num único exemplo, a recente decisão do juiz Sergio Moro de suspender, às vésperas do primeiro turno, o sigilo de parte da delação premiada feita por Palocci.
Esse tipo de procedimento não apenas contamina o processo eleitoral, mas, a longo prazo, deslegitima e pode até enfraquecer o combate à corrupção. No fim das contas, também joga gasolina na fogueira da polarização política no país.
Tudo indica que chegaremos assim a um possível governo Bolsonaro: com Legislativo e Judiciário relativamente enfraquecidos e envolvidos em “alvoroços despropositados”, resultado de um processo lento e contínuo, iniciado décadas atrás.
Talvez isso tenha deixado o candidato de direita e parte de seus seguidores mais à vontade. No domingo de manhã, uma semana antes da eleição, tomamos conhecimento das estapafúrdias declarações do deputado Eduardo Bolsonaro sobre a mais alta Corte do país. Tratando o Supremo como possível inimigo, o filho do capitão disse que bastava um soldado e um cabo para fechar o STF.
Mais tarde naquele mesmo dia, em mensagem de vídeo transmitida a seus eleitores, o presidenciável do PSL reafirmou suas promessas de pureza, fazendo ameaças inaceitáveis em ambiente democrático. Prometeu “uma limpeza nunca vista na história do Brasil”; disse que “esses marginais vermelhos serão banidos de nossa pátria”; que o MST será tratado como organização terrorista; que vai cortar a verba publicitária estatal para o jornal Folha de S.Paulo.
Caso o capitão reformado e seus partidários menos afeitos à tolerância decidam passar das palavras aos atos, caso tentem restringir direitos ou desrespeitar as regras do jogo, é com a velha política e com esses dois Poderes, o Judiciário e o Legislativo, com todas as suas falhas e desgastes, que teremos de contar. Se Bolsonaro for eleito e tentar cumprir o que promete, o país vai precisar de Renan Calheiros e de Gilmar Mendes, entre outros, para conseguir detê-lo.
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