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Bolsonaro promete limpeza

Vamos precisar da velha política

Rafael Cariello | 23 out 2018_06h00
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Há um poema bonito do polonês Czeslaw Milosz (poesia, numa hora dessas?) de que tenho me lembrado com frequência, nas últimas semanas. Chama-se “Para Raja Rao”.

Assim como Milosz, Rao, o destinatário dos versos, era escritor. De origem indiana, havia se radicado nos Estados Unidos. O texto é do final dos anos 60, foi escrito quando o polonês morava na Califórnia, e funciona como uma carta entre dois imigrantes.

Um trecho específico, que reproduzo aqui utilizando a tradução de Nelson Ascher, vale, a meu ver, por um volume inteiro de filosofia política. Diz assim: “Pouco à vontade na tirania, pouco à vontade na república,/numa eu ansiava por liberdade, noutra pelo fim da corrupção./Construindo em minha mente uma ‘polis’ permanente/despojada para sempre de alvoroço despropositado./Aprendi finalmente a dizer: este é o meu lar,/aqui, diante do carvão em brasa de ocasos no oceano,/no litoral que se defronta com o litoral da sua Ásia,/numa grande república, moderadamente corrupta.”

A beleza do poema – uma delas – está na conquista da maturidade pelo autor da carta, que afinal desiste da busca por perfeição, sem abrir mão da liberdade. “Aprendi finalmente”, ele escreve. A vontade de pureza, que antes o mobilizava, poderia ser descrita como uma paixão adolescente, pouco tolerante, tão perigosa quanto o cinismo.

O trecho termina com o elogio da vida cotidiana “numa grande república, moderadamente corrupta”. Milosz está se referindo aos Estados Unidos dos anos 60, mas não deixa de ser um ideal, algo a ser perseguido: uma república forte, capaz de conter qualquer tentativa de tirania, mesmo sabendo que nunca será totalmente “limpa”. Nada é.

Faltando poucos dias para o segundo turno do pleito presidencial, quando boa parte dos eleitores parece ansiar por pureza, faz sentido falar de uma ou duas características de nossas instituições que, a meu ver, têm contribuído para que nossa República seja relativamente frágil – e demasiadamente corrupta.

 

Em nosso sistema político, o presidente conta com o poder de montar uma coalizão de partidos aliados no Congresso suficientemente ampla para, em condições normais de temperatura e pressão, comandar o trabalho legislativo e aprovar grande parte de sua agenda. Se quiséssemos simplificar bastante as coisas, poderíamos dizer que no Legislativo brasileiro passa quase tudo o que um presidente queira, enquanto ele tiver força política.

Um dos efeitos desse arranjo é que há pouco debate no Congresso. As leis com frequência são feitas às pressas e sem transparência. Na Câmara, o trabalho é conduzido pela mesa diretora e pelos líderes partidários, que negociam com o governo as pautas que importam. A maior parte dos deputados tem pouco a dizer ou a fazer nesse processo. Tudo isso garante “governabilidade”, mas a um custo alto. Segundo o cientista político Bruno Wanderley Reis, tais regras sempre arriscaram “desmoralizar gravemente o Congresso Nacional aos olhos da opinião pública”. Foi o que aconteceu.

Apesar do otimismo de alguns dos nossos melhores especialistas com o presidencialismo de coalizão, suspeito que o particular funcionamento dos trabalhos legislativos no país tenha contribuído para o ambiente de descrença e crise política que vivemos desde 2013, bem como para o sucesso do discurso antissistema de Jair Bolsonaro.

 

Se a maioria dos deputados, conduzida por seus líderes partidários, costuma estar na maior parte do tempo aliada ao governo, a quem compete o trabalho de fiscalizar o Executivo, de funcionar como freio a possíveis abusos de poder? Essa tarefa, que em grande medida deveria caber ao Legislativo, entre nós foi em parte terceirizada, por decisão dos constituintes de 1988, para instituições como o Ministério Público e o Supremo Tribunal Federal. A eles tem cumprido vigiar e conter não só atos do Executivo, mas, não raro, também intervir em disputas internas ao Legislativo, e entre esses dois Poderes. Essa é a raiz institucional da tão falada judicialização da política – ou, o que dá no mesmo, a politização da Justiça. Como os conflitos têm dificuldade de encontrar expressão no Congresso, crescem as batalhas nos tribunais.

A solução não é das melhores. De um lado, facilita a corrupção. Diante de uma oposição que pouco pode negociar, que dirá fiscalizar, não é difícil para um punhado de burocratas, na esplanada dos ministérios, e de deputados, que na Câmara controlam a redação e a aprovação das leis, inserir nos projetos favores e benefícios a grupos de pressão específicos. Em sua delação, o ex-ministro Antonio Palocci afirmou que havia pagamentos de propina em nada menos do que 90% das medidas provisórias editadas nos governos Lula e Dilma. Onde faltam luz e debate sobram favorecimentos e desvios.

Mais tarde, procuradores, juízes e até ministros do Supremo se manifestarão. Sua atuação não se resume aos casos de corrupção, é claro. Chamados com frequência pelos atores políticos a resolver conflitos, os integrantes do STF passaram aos poucos a ser identificados – e a atuar – como parte das disputas. Isso tem tido consequências graves. As idas e vindas do tribunal criam insegurança e desestabilizam o jogo democrático. No final de 2016, aconteceu afinal de a Corte ser desrespeitada. Por decisão de um dos ministros do Supremo, Renan Calheiros deveria ser removido da presidência do Senado. O político alagoano se recusou a receber a ordem da Justiça, bateu o pé no cargo e esperou que o colegiado se reunisse para voltar atrás na decisão.

Mais abaixo na hierarquia da República, integrantes do Ministério Público e do Judiciário dão um tiro no pé quando, no exercício de suas funções, dão a impressão de tentar interferir nos processos políticos e eleitorais. Foi bastante questionável, para ficar num único exemplo, a recente decisão do juiz Sergio Moro de suspender, às vésperas do primeiro turno, o sigilo de parte da delação premiada feita por Palocci.

Esse tipo de procedimento não apenas contamina o processo eleitoral, mas, a longo prazo, deslegitima e pode até enfraquecer o combate à corrupção. No fim das contas, também joga gasolina na fogueira da polarização política no país.

 

Tudo indica que chegaremos assim a um possível governo Bolsonaro: com Legislativo e Judiciário relativamente enfraquecidos e envolvidos em “alvoroços despropositados”, resultado de um processo lento e contínuo, iniciado décadas atrás.

Talvez isso tenha deixado o candidato de direita e parte de seus seguidores mais à vontade. No domingo de manhã, uma semana antes da eleição, tomamos conhecimento das estapafúrdias declarações do deputado Eduardo Bolsonaro sobre a mais alta Corte do país. Tratando o Supremo como possível inimigo, o filho do capitão disse que bastava um soldado e um cabo para fechar o STF.

Mais tarde naquele mesmo dia, em mensagem de vídeo transmitida a seus eleitores, o presidenciável do PSL reafirmou suas promessas de pureza, fazendo ameaças inaceitáveis em ambiente democrático. Prometeu “uma limpeza nunca vista na história do Brasil”; disse que “esses marginais vermelhos serão banidos de nossa pátria”; que o MST será tratado como organização terrorista; que vai cortar a verba publicitária estatal para o jornal Folha de S.Paulo.

Caso o capitão reformado e seus partidários menos afeitos à tolerância decidam passar das palavras aos atos, caso tentem restringir direitos ou desrespeitar as regras do jogo, é com a velha política e com esses dois Poderes, o Judiciário e o Legislativo, com todas as suas falhas e desgastes, que teremos de contar. Se Bolsonaro for eleito e tentar cumprir o que promete, o país vai precisar de Renan Calheiros e de Gilmar Mendes, entre outros, para conseguir detê-lo.

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