Para o torcedor fiel, ir ao estádio de futebol assistir a uma final requer uma série de preparativos. Quando está em disputa um título que seu time nunca ganhou, então, convém estar atento a todos os detalhes: a camisa da sorte, a companhia que estará ao seu lado, o ponto exato da arquibancada onde é desejável se instalar.
É uma checklist algo patética para quem não gosta do esporte. Mas mesmo o torcedor ateu mais cético sabe que infringi-la pode custar feridas emocionais que o acompanharão pelo resto da vida. Há coisas com as quais simplesmente não se brinca. Sei bem disso. Certa vez, parei no meio da multidão para escrever para minha mãe. Nós tínhamos discutido feio pouco antes de eu partir para o Morumbi. Quando já estava na boca do túnel de entrada, me dei conta do óbvio: brigar com a genitora antes de uma partida traria maus agouros para a equipe. Mandei uma mensagem pedindo desculpas. O São Paulo, por isso, venceu o San Lorenzo da Argentina por 2 a 0 e se classificou para a próxima fase da Copa Sul-Americana.
Era de se esperar, então, que no dia 24 de setembro do ano passado eu me entregasse a tais superstições da maneira mais desavergonhada possível. O São Paulo enfrentaria o Flamengo no Morumbi pela final da Copa do Brasil. O fato de termos vencido a primeira partida no Maracanã por 1 a 0 em nada aliviava minha convicção de que, de alguma forma, o desfecho do confronto dependia também dos meus atos.
Acordei e logo tomei uma decisão difícil. Como Churchill ordenando à sua força aérea que afundasse os navios da marinha francesa para que não caíssem nas mãos dos nazistas, sacrifiquei um amigo em favor da estratégia. Agradeci a ele por ter ficado na fila e comprado meu ingresso, mas expliquei que o momento exigia outra conformação. Em vez de assistirmos juntos à partida na arquibancada, era meu dever pular para outro canto do estádio, onde estava um amigo que já tinha me acompanhado em vários jogos e ao lado do qual eu nunca vi o São Paulo perder.
Fosse outra situação, eu levaria para casa a pecha de mal-agradecido, na melhor das hipóteses. Entre frequentadores de arquibancada, no entanto, quase tudo que não envolva sacrifício humano e crime hediondo (que eu saiba) é tolerado, contanto que seja para o bem da coletividade.
O problema é que meu esforço em prol do título parou por aí. Contrariando anos de tradição, não pude ir ao Morumbi com minha camisa da sorte (que não é a do time). Desde alguns dias antes da partida, minha atenção estava dividida entre a superstição e a necessidade de sobreviver ao calor previsto para o horário do jogo. No dia da final, 24 de setembro de 2023, São Paulo registrou a maior temperatura para o mês desde o início das medições, em 1943. Inacreditáveis 36,5°C na estação do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), na Zona Norte da cidade.
Cometi o sacrilégio de vestir uma camiseta inteiramente branca com a qual eu jamais pisara no Morumbi. Passei protetor solar, o que raramente faço em São Paulo, e cheguei ao cúmulo de usar boné, algo inédito desde os meus 12 anos de idade, quando achava que exibir o adereço da moda me livraria de apanhar no colégio (não funcionou). Tal qual um influencer de bons hábitos, procurei não me descuidar da hidratação mesmo nos momentos mais tensos do jogo. Até a água da torneira do banheiro do Morumbi eu tomei, o que, olhando em retrospecto, talvez tenha representado um risco maior à minha vida que uma possível insolação.
Tudo isso pode parecer asneira de marmanjo supersticioso, mas o fato é que frequento estádios desde 1995 e jamais passei por algo parecido. Já enfrentei as mais variadas intempéries e condições de temperatura na arquibancada. Tempestades, sol a pino. Essa, no entanto, foi a primeira vez que o calor, de tão grande, exigiu uma preparação rigorosa a ponto de violar meu sacrossanto ritual.
Em julho de 2021, escrevi para a piauí sobre a minha relação com a meteorologia e o frio. Sou obcecado por acompanhar condições e previsões meteorológicas desde 1994. Consigo reconstituir em detalhes cada uma das ondas polares que varreram o Brasil nos últimos trinta anos. Eu as associo a momentos cruciais da vida, como se fossem inseparáveis da minha trajetória pessoal. Adoro analisar cartas sinóticas e modelos numéricos de previsão do tempo. Na internet, frequento fóruns onde malucos como eu passam o dia esmiuçando os detalhes mais técnicos possíveis sobre ondas de frio, como se suas vidas dependessem disso.
Amar o frio, no Brasil, sempre foi uma tarefa ingrata, fadada a frustrações. Mas o ano de 2023 veio para mostrar que tudo não apenas pode, como vai piorar. A onda de calor que enfrentei no dia da final da Copa do Brasil foi apenas uma das que torraram o país. Para quem acompanha alertas meteorológicos, tornou-se parte da rotina se deparar com mapas do Brasil quase totalmente pintados de vermelho. A cor indica ondas de calor. Nos últimos meses, as temperaturas têm sido tão extremas que os mapas têm um tom de sangue coagulado, quase preto, como se exibissem o cadáver de um país atropelado pelo calor e largado no asfalto quente.
Lembro nitidamente de uma aula de geografia, quando eu estava no quarto ou quinto ano do ensino fundamental, em que o professor anotou na lousa a maior temperatura já registrada até então na cidade de São Paulo: 35,3°C. Aquela máxima tinha sido registrada em 1985. O recorde só foi quebrado novamente em 1998, com 35,6°C. Desde então, no entanto, a cidade tem batido recorde atrás de recorde.
Os registros do Inmet no Mirante de Santana foram superiores a 36°C ao menos dezesseis vezes desde 1999, sendo que quinze delas ocorreram de 2012 para cá. O recorde absoluto, por muito pouco, não foi batido em 2023. Nos dias 13 e 14 de novembro, São Paulo ferveu a 37,7°C, apenas um décimo abaixo do recorde histórico, registrado em 2014. Assim como já tinha ocorrido no dia do jogo, em setembro, essa foi a maior temperatura para o mês já registrada em São Paulo.
As travessuras do El Niño, que afeta o Oceano Pacífico e anda particularmente virulento, já indicavam que teríamos um ano quente. Mas o conjunto dos dados deixa claro que não estamos falando de algo pontual, sobretudo considerando o cenário global. Recordes e mais recordes foram batidos em estações meteorológicas planeta afora. O observatório europeu Copernicus acaba de confirmar, na última terça-feira (9), que 2023 foi o ano mais quente em 100 mil anos. Na média, o ano passado teve temperaturas 1,4°C acima dos níveis pré-industriais.
Nunca fui um negacionista, mas durante algum tempo preferi não prestar muita atenção aos dados alarmantes sobre o aquecimento do planeta. Como um fumante que evita pensar no câncer, no fundo eu torcia para que tudo fosse um grande engano por parte dos cientistas e imaginava que, no futuro, talvez as pessoas rissem do alarde que foi criado em torno do efeito estufa e das calotas polares.
Meu lado racional sempre soube que essa hipótese era uma completa idiotice, e 2023 sepultou minhas esperanças recalcadas. Talvez, num futuro não muito distante, eu comente com jovens que um dia fiz parte de um fórum chamado “Brasil Abaixo de Zero” e eles me olhem com o mesmo espanto de quando eu conto que já vivi num mundo sem internet. Com o agravante de que, no segundo caso, não estamos falando de um tema que envolve a possível extinção da humanidade.
Meu interesse pelo frio é, mais do que tudo, técnico e lúdico. Gosto de acompanhar, por meio das projeções de modelos meteorológicos, como uma onda de frio vai se propagar pelo Brasil, quais mecanismos atmosféricos a tornarão mais – ou menos – forte. Sou capaz de passar dias entretido com a análise de dados e mapas. Durante as ondas de calor é diferente. Não vejo nada de lúdico nelas. No ano passado, sobretudo, tudo o que conseguia enxergar nas projeções era um vulto ameaçador e fora de qualquer padrão aceitável. Em outras palavras, só o que eu queria era seguir no meu hobby sem ser incomodado pela iminência do colapso do planeta.
Sim, o Brasil sempre foi quente. Mas se você realmente acha que não dá para piorar, sugiro dar uma olhada nas temperaturas de países como Emirados Árabes, Qatar e Índia durante o verão no Hemisfério Norte. Não são incomuns temperaturas mínimas na faixa dos 38°C, o que torna Cuiabá um exemplo de clima ameno. E não adianta se refugiar no Mediterrâneo. O Sul da Europa, no verão, é cada vez mais tórrido. Em 18 de julho, Roma teve a maior temperatura de sua história: 41,8°C. Mal pôde processar o recorde anterior, de 40,7º C, registrado apenas um ano antes.
Cito a Itália como exemplo porque viajei para lá em junho e posso dizer, sem medo de ser acusado de coitadismo: não há joia cultural, arquitetônica ou gastronômica que alivie a sensação de estar preso numa sauna operada por um sádico. Qualquer caminhada de poucos minutos durante o dia se transforma num pequeno reality show particular de sobrevivência. Tive a impressão de estar olhando a paisagem através da porta de vidro de um forno industrial no qual eu estava trancafiado.
Outros lugares estão passando por experiências ainda mais radicais. Entre julho e agosto, a cidade de Phoenix, no Arizona (EUA), registrou nada menos que 31 dias seguidos com temperaturas acima de 43°C. Uma aberração, mesmo para uma cidade que sempre foi quente. Uma reportagem da Metsul, empresa de meteorologia, mostrou uma pessoa desmaiada em uma loja de conveniência do Arizona e policiais recolhendo o corpo de um morador de rua que morreu de calor. “No [hospital] Valleywise Health Medical Center, [o médico] LoVecchio disse que viu de três a quatro casos por turno de pacientes que enfrentaram a morte sem tratamento de emergência”, diz a matéria, que explica: “Temperaturas corporais de 41°C ou mais podem resultar em morte ou danos cerebrais permanentes.”
É vasta a lista de complicações que o calor extremo pode acarretar no corpo humano. Vai da desidratação ao infarto, passando por AVC (acidente vascular cerebral), queda de pressão, tontura e vômitos. Foi o calor que causou a morte de Ana Clara Benevides, 23 anos, durante o show da cantora Taylor Swift no Rio de Janeiro, em novembro. “Exaustão térmica”, assinalou o laudo da perícia médica.
Para quem não tem o privilégio de poder fugir para uma casa na praia ou na serra durante as ondas de calor, restam poucas opções para enfrentar o maçarico. Mesmo que você more ou trabalhe em um local com ar-condicionado, sempre haverá o momento de sair na rua e ser surrado pelo bafo quente indiferente ao seu sofrimento. No meu caso, isso significa besuntar tudo e todos com gotas de suor que caem sobre o teclado do computador, sobre a comida, sobre as pessoas, sobre os meus gatos e até sobre a toalha de banho. Sim, meu corpo é capaz de produzir suor poucos minutos depois de ter sido exposto a um banho de água gelada.
Cada um com as suas peculiaridades. Eu suo durante a noite toda, o que, segundo minha companheira, deixa a roupa de cama com o aroma de um saco mortuário. Para piorar, a interação do meu suor com o sabonete causa uma reação alérgica que provoca inchaços na minha pele e pequenos espasmos, tamanha a coceira.
Diferentemente do que ocorre com o frio, eu não tenho uma memória apurada das ondas de calor que já vivi. Seus detalhes e circunstâncias históricas se misturam em uma amálgama obscura que envolve mau humor, muito suor, vontade de agredir algo (ou alguém) e a disposição física de quem tomou um drink à base de Rivotril.
O São Paulo, contudo, ganhou do Flamengo. Eis uma memória agradável do calor infernal. Talvez a primeira da minha vida neste maravilhoso mundo novo.