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    A cantora no palco do Engenhão, na turnê que deverá se tornar a mais rentável da história Buda Mendes/ TAS23/ Getty Images

anais do showbiz

As pegadas de Taylor Swift

Bilhões de dólares, toneladas de carbono, dezenas de hits e um despropósito de graus Celsius – anotações sobre um show de extremos no Rio de Janeiro

Marcella Ramos | 20 nov 2023_17h20
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O aplicativo meteorológico já indicava uma temperatura de 36°C no Rio de Janeiro, com sensação térmica de 41°C. Eram 15h18 e faltavam alguns minutos para que se abrissem os portões para o primeiro show de Taylor Swift no Estádio Nilton Santos, o Engenhão, na sexta-feira, 17 de novembro. Fazia meia hora que eu estava na fila para a pista premium quando senti a primeira brisa de ar fresco desde que tinha chegado. Ela aliviou o calor escaldante por alguns segundos. Os swifties, abrigados sob guarda-chuvas e se abanando com leques, reagiram com um suspiro coletivo de alívio. Um menino brincou: “É a Taylor chegando com o jatinho dela.”

A turnê mundial The Eras Tour estava prestes a chegar ao Brasil. O ponto de partida foram os Estados Unidos, onde ela fez a partir de março 53 shows com lotação esgotada, que movimentaram 4,6 bilhões de dólares na economia do país. O impacto fez com que o nome da cantora entrasse no livro bege do Federal Reserve (Fed), o documento com fatos econômicos relevantes da instituição. A imprensa americana estima que The Eras deverá bater o recorde de turnê mais rentável de todos os tempos, título que pertence a Elton John (939 milhões de dólares, segundo a Billboard). 

Por onde o show passa, o roteiro é o mesmo: fãs sofrem para conseguir os ingressos que se esgotam em minutos e a economia local se movimenta. Foi assim no México, na Argentina e está sendo desse jeito no Brasil. A prefeitura do Rio estimou uma injeção de 158 milhões de reais na cidade. A T4F Entretenimento, responsável pelo evento no país, divulgou em agosto o lucro líquido de 16,3 milhões de reais só no segundo trimestre de 2023. O valor representa um aumento de 89% em relação ao mesmo período do ano passado. Segundo a empresa, o resultado se deve ao mix de receitas, “com maior representatividade de taxas de conveniência e patrocínio pela venda antecipada de ingressos para os shows da Taylor Swift”. Os bilhetes custavam de 240 (meia-entrada, nas cadeiras) a 2.250 reais.

Às 16h30, a fila começou a andar. Vi os primeiros fãs cedendo ao calor e ao cansaço. Uma menina que estava ao meu lado sucumbiu e vomitou no meio-fio. O pai dela foi correndo comprar água. Mais adiante, outra fã passou mal. Esses casos eram rapidamente atendidos, porque na rua existia grande oferta de água, com muitos ambulantes vendendo garrafinhas geladas, refrigerantes e alguns lanches, além de ter espaço e sombra para sentar e se recuperar. As fãs que tinham algum mal-estar, no entanto, ficavam apreensivas e choravam. Tinham medo de perder a primeira chance em onze anos de ver a cantora no Brasil. 


Taylor Swift tem 33 anos, mas já é uma veterana da indústria musical. Aos 19 já era conhecida pelos hits Love Story e You Belong With Me, duas de suas músicas mais famosas. Mas agora chegou ao auge da carreira. A The Eras Tour é um atestado desse sucesso, mas também um meio para ele. A turnê deixou Swift ainda mais conhecida e oficialmente bilionária. No mês passado, Cruel Summer, uma música de quatro anos de existência, atingiu o topo global da Billboard. Isso aconteceu em razão do compartilhamento de vídeos do show. Ao final da primeira etapa da turnê nos Estados Unidos, Taylor pagou bônus generosos para toda a equipe que a acompanhou – cada um dos cinquenta motoristas de caminhão levou 100 mil dólares.

Ela pode se gabar que todo o dinheiro é fruto de sua música e nada mais: diferente da maioria das cantoras, não tem uma marca de cosméticos ou empresas em outros ramos. Em contrapartida, ela é em todo o mundo a celebridade cujo jato particular emite a maior quantidade de dióxido de carbono, um dos gases responsáveis pelo efeito estufa. Em julho de 2022, a Yard divulgou que a aeronave voou 170 vezes entre 1o de janeiro e 19 de julho, passando quase dezesseis dias completos no ar. O total de emissões ficou em 8,3 mil toneladas de carbono nesses seis meses, o que é mais de mil vezes a emissão anual de um cidadão comum. Na época, a assessoria da cantora disse que o jatinho era alugado regularmente para outras pessoas. A notícia sobre a “escala” que ela fez em Nova York entre os shows da Argentina e os do Brasil tomou conta das redes sociais, daí a piada do menino sobre o jatinho que ouvi na fila.

 

Era notório que uma onda de calor extremo assolaria o Rio de Janeiro no fim de semana. As temperaturas já estavam acima da média há dias, com o El Niño potencializado pelo desarranjo climático global. Ainda assim, por volta das 17h, funcionários com megafones anunciavam que, entre outros itens, garrafas d’água, comida e leques eram proibidos no estádio. Pensar em me despedir do meu leque me causava dor física. Ele era o único item que eu tinha para aliviar aquele calor. Deixei dentro da bolsa e torci para que não me tirassem o abanador. Deu certo. A moça que me revistou só reclamou inicialmente de um iogurte proteico de banana com açaí. Eu insisti e ela, sabendo melhor que a organização do evento que era crueldade proibir a entrada de um item como aquele, disse que eu deveria guardar na bolsa e entrar.

Dentro do estádio, as swifties comemoravam e trocavam pulseirinhas. Antes de entrar na pista, comprei três copos d’água de 300 ml. Cada um saiu por 8 reais. Coloquei tudo dentro da mochila para beber quando estivesse com mais sede. Em seguida, fui ao banheiro. A fila estava grande (fora do estádio, moradores ofereciam o banheiro de suas casas por valores que variavam entre 2 e 5 reais).

Passei o tempo observando os swifties que passavam. Eram majoritariamente meninas brancas. Quando ainda estava do lado de fora do estádio, atravessei a Rua Dr. Padilha do início ao fim contando quantos fãs negros eu conseguia avistar. Contei dez, em meio a milhares. Desses, seis homens e quatro mulheres. Os vendedores ambulantes, em contraste, eram majoritariamente negros.

 

Aos 16 anos, Taylor Swift era uma menina que escrevia músicas country sobre assuntos de meninas. Ela nasceu na Pensilvânia, mas cantava com sotaque sulista. Com evidente talento para contar histórias e habilidade de se comunicar com o público, ao longo dos últimos dezessete anos a cantora é um sucesso de acumulação de adoradores. Ela tem fãs que preferem sua era country, fãs que preferem a era pop e fãs que preferem a era folk — mas todos são, antes de tudo, swifties. A The Eras Tour existe em celebração ao decálogo de sua obra. É um show que possui mais de três horas de duração, festejando todas as suas eras. A turnê acontece num momento decisivo da carreira da cantora e de toda a indústria musical. Em 2019 ela deu início a um longo processo contra sua antiga gravadora, a Big Machine Records. Uma vez que não conseguiu o direito sobre suas masters, resolveu fazer movimento inédito na indústria fonográfica mundial: regravar cada um dos seis discos que tinha lançado sob o selo. Assim, passou a ser dona dos fonogramas “Taylor’s version” de suas canções. Até agora, ela já relançou quatro.

Assim como fazer pulseirinhas da amizade para trocar com outros admiradores, se vestir a caráter de acordo com sua era favorita também faz parte do espetáculo. A maior parte dos entusiastas vestia figurinos impraticáveis para a temperatura que fazia no Rio de Janeiro naquele dia. O Engenhão e seus arredores foram palco para um desfile de botas de cowboy, vestidos de paetê, meia-calça arrastão, saias longas, plumas e tule. 

A obra de Taylor Swift não combina com os trópicos. A cantora frequentemente usa estações do ano para se referir à passagem do tempo. Esses períodos também carregam simbolismos e estão relacionados a certos sentimentos dentro do trabalho da cantora. Em uma música, ela narra a história de um relacionamento que começa no outono: “Autumn leaves falling down like pieces into place” (algo como: folhas de outono caindo como peças no lugar certo), e que termina quando ela vê a neve cair: “I still remember the first fall of snow / And how it glistened as it fell” (eu ainda bem lembro da primeira vez em que a neve caiu e como ela brilhava). Em outra, ela narra uma história de amor que começa e termina no verão do Hemisfério Norte: “August sipped away like a bottle of wine” (agosto foi degustado como uma garrafa de vinho). Essas ambientações são levadas para o show. Em um dos atos, milhões de papeizinhos brancos são disparados sobre o público para representar a neve citada no final de uma das músicas. Os papéis grudaram em todo o meu colo e rosto, devido ao suor. Alguns se desfizeram, realmente como neve.

 

Pouco antes de o show começar, minha irmã começou a passar mal de calor. Eram 19h30, estávamos perto do palco, espremidas entre um público que não parava de pular e gritar. Era difícil de respirar. Eu batia o meu leque e o vento que produzia era quente. Arrastei minha irmã para uma área mais arejada, onde ela pôde beber o último copo d’água que tínhamos. Ficamos do lado da tenda de convidados VIP, de onde o pai de Taylor assistia ao show sentado. Com o ar circulando melhor, minha irmã se recuperou a tempo de cantar junto Cruel Summer, a segunda música da noite e a única cujo título teria tema relacionável ao clima do Brasil. Algumas músicas depois, achei um homem que vendia copinhos de água de 200 ml por 10 reais. Os copos tinham 100 ml a menos do que os que eu comprei por 8 reais quando cheguei. Na falta de qualquer outra alternativa, comprei cinco. Bebemos um a cada 30 minutos. Comprei também umas batatinhas chips que estavam vendendo por 25 reais. A minha irmã pulou e cantou tudo até o final. Não voltou a passar mal.

Por volta das 20h50 começou Bad Blood, do álbum 1989, de 2014. A música é um pop com elementos do hip hop. No clipe, ela e um grupo de amigas botam fogo numa cidade. Essa imagem é levada ao show. Na segunda metade da música, vários lança-chamas ao redor de todo o estádio soltavam imensas labaredas para marcar a acentuação rítmica dos tempos fortes da música. O estádio era maçaricado no ritmo da batida pop quatro por quatro. O público todo se acendia por alguns segundos, depois se apagava e voltava a se acender. Perdi a conta de quantas vezes essas chamas entraram em cena. A cada rajada, um vapor insuportavelmente quente lambia meu rosto. A imagem e a sensação térmica eram infernais. 

Às 22h50, o show terminou. Um funcionário começou a distribuir copos d’água por trás da grade da tenda VIP. Foi uma apresentação perfeita. A plateia estava satisfeita, mas não encontrei olhos com expressão de “quero mais”. A exaustão se impunha. A passarela que levava à estação de trem ficou congestionada pela grande quantidade de pessoas. O calor, mesmo às onze da noite, não dava trégua. Um vendedor ambulante anunciava, em pé, em cima de um banco, água gelada. Na mão esquerda, ele exibia garrafinhas fechadas. Com a mão direita, espremia um frasco com um furo na base. Assim, ele improvisava um chuveirinho para refrescar os passantes. Foi o único ato de solidariedade para aplacar o calor de várias pessoas ao mesmo tempo que eu vi naquele dia.

 

Quando cheguei em casa, por volta de uma hora da manhã, descobri pelo X, antigo Twitter, que Ana Clara Benevides, uma estudante de 23 anos, passou mal, teve uma parada cardiorrespiratória e morreu. A causa ainda não foi confirmada. A sensação térmica chegou próximo de 60°C. Segundo os bombeiros, mais de mil pessoas desmaiaram por causa do calor. Durante o show, vi muitos fãs deixarem a multidão carregados.

Taylor, que mais de uma vez durante o show deu uma pausa para conseguir água pro público, lamentou a morte de Ana Clara: “Eu não serei capaz de falar sobre esse acontecimento no palco porque eu sou tomada pelo luto toda vez que eu tento falar sobre isso”, ela escreveu numa rede social no sábado. Disse que estava abalada e que seu coração estava com a família e os amigos da vítima. Alguns fãs pediram que ela adiasse o show de sábado até ter certeza que todas as medidas de segurança contra o calor foram tomadas. Ela só anunciou que adiaria a apresentação por volta das seis da tarde, quando o estádio do Engenhão já estava lotado. Voltou a se apresentar no domingo. Não citou a tragédia, mas fez a apresentação surpresa de Bigger Than the Whole Sky, uma música sobre luto.

A tragédia mobilizou autoridades. Na tarde de sábado, antes da abertura dos portões, o ministro da Justiça Flávio Dino editou uma portaria que ordena que seja permitida a entrada de garrafas de água de uso pessoal em espetáculos. Além disso, tornou-se obrigatória a disponibilização de água potável em “ilhas de hidratação” de fácil acesso. Antes, o prefeito Eduardo Paes tinha anunciado que os portões abririam mais cedo, o que me soou como uma medida estranha: estava mais fácil e barato se hidratar na fila do que dentro do estádio. No domingo, a produção tomou uma atitude mais acertada: os portões foram abertos, na verdade, uma hora mais tarde.

Assim como Ana Clara, que morava em Mato Grosso do Sul, a maior parte do público vinha de outros estados. Não conversei com nenhum carioca. As pessoas reagiam com surpresa quando eu dizia que morava no Rio. Os hotéis da cidade estavam com a taxa de ocupação de 97%, equivalente à de grandes eventos, como Réveillon e Carnaval. No início de novembro, o AirBnb publicou uma nota para os anfitriões, indicando que o Rio de Janeiro receberia hóspedes de todos os estados do país para os shows da cantora. Segundo a plataforma, a maior parte dos visitantes seria de São Paulo, de outras cidades do estado do Rio, de Minas, do Paraná e do Rio Grande do Sul. As companhias aéreas Azul, Gol e Latam anunciaram que as remarcações de passagem não teriam custo.

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