A campanha presidencial brasileira ressuscitou práticas similares às das ideologias supremacistas, que vêm sendo reproduzidas inclusive por crianças e jovens país afora Ilustração: Carvall
Brasil vive epidemia de neonazismo
Massacre em escolas do Espírito Santo e pichação com suástica em Minas mostram que educação para o nazismo é o aspecto mais perigoso dos anos Bolsonaro
Quando um prisioneiro chegava a um campo de concentração do Terceiro Reich, durante o regime da Alemanha nazista, ele era identificado com um triângulo. As diferentes cores do triângulo simbolizavam que tipo de inimigo aquela pessoa representava.
A estrela amarela, de seis pontas, formada pela junção de dois triângulos, é o mais conhecido desses símbolos: marcava os judeus, maiores vítimas do ditador Adolf Hitler. O número de 6 milhões de judeus mortos é marcante, conhecido mundo afora e uma simbolização da crueldade do nazismo. Mas muitos outros prisioneiros eram enviados para os campos.
Os triângulos rosas identificavam os homossexuais; os marrons, os ciganos; os roxos, testemunhas de Jeová; os verdes, os “presos comuns”; os triângulos vermelhos identificavam os prisioneiros políticos, os opositores do regime hitlerista.
Cerca de oito décadas depois, a campanha presidencial brasileira ressuscitou algumas práticas similares. Apoiadores do futuro ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) pregaram o boicote a opositores e passaram a sugerir que eleitores de Lula marcassem os próprios comércios com a estrela vermelha do PT. No Paraná, comerciantes distribuíram uma lista com nomes de comerciantes que votariam no candidato petista. No Rio Grande do Sul, mensagens diziam: “Atenção, petista, coloque esse adesivo na porta do seu negócio. Mostre que você tem orgulho de quem elegeu.” “A partir de hoje, vejam onde vocês vão gastar seu dinheiro. Vamos comprar e usar serviços somente de quem pensa como você”, afirmava outra. A “sugestão” chegou a ser compartilhada pela ex-secretária de cultura de Bolsonaro, a atriz Regina Duarte.
O processo de disseminação de práticas nazistas passa a ser ainda mais assustador quando é reproduzido por crianças e jovens. O exemplo mais recente é o de Aracruz, no Espírito Santo, onde um atirador de 16 anos promoveu um massacre em duas escolas e matou quatro pessoas, enquanto usava uma faixa com uma suástica no braço. No caso do massacre em Saudades, em Santa Catarina, em 2021, investigações da Operação Bergon descobriram que o assassino era parte de uma célula neonazista — à época, o criminoso tinha 18 anos. Nesta terça-feira, 29 de novembro, a Escola Municipal José Silvino Diniz, em Contagem, em Minas Gerais, foi vandalizada e pichada com suásticas e com o nome de Hitler.
Também passamos a ver meninos fantasiados de Hitler e jovens ameaçando outros evocando a figura do ditador alemão para ofender colegas. Um aluno do ensino fundamental I em Presidente Prudente, em São Paulo, vestido como o líder nazista e posando para a foto com o braço estendido, é a ilustração perfeita (e muito incômoda) da naturalização de ideologias supremacistas.
A educação para o nazismo é o aspecto mais perigoso do processo vivido no Brasil hoje. Ao mesmo tempo, a educação é o melhor caminho para a reversão da normalização de ideologias supremacistas.
Em um colégio em Valinhos, São Paulo, oito alunos foram expulsos após enviarem mensagens preconceituosas a um colega negro, nas quais citavam Hitler: “Se ele fez com judeus, eu faço com petistas também.” É mais uma situação que ajuda a ilustrar como a normalização do nazismo está presente em ambientes educacionais.
Há quem se sinta incomodado com as comparações entre nazismo e bolsonarismo. No entanto, a lista de “coincidências” entre fatos que estão ocorrendo no Brasil e o que aconteceu na Alemanha nazista é extensa.
É fácil relembrar ocorrências, como o dia em que Roberto Alvim imitou Joseph Goebbels, secretário da propaganda nazista, ou quando o próprio presidente da República se encontrou com Beatrix von Storch, do partido alemão AfD, cujas pautas se assimilam a ideias neonazistas.
Desde a reta final da eleição, os casos de neonazismo ganharam manchetes na imprensa e passaram a ser pauta de debates nas redes sociais. Após a derrota de Jair Bolsonaro, as similaridades passaram a chamar atenção. O mais comum tem sido ver brasileiros repetindo o Sieg Heil, saudação nazista em que o braço direito é estendido acima do ombro.
Aconteceu no Colégio Sagrada Família, de Ponta Grossa, no Paraná, quando uma professora, envolta em uma bandeira do Brasil e com bottons de Jair Bolsonaro, fez o gesto. A cena se repetiu em São Miguel do Oeste, em Santa Catarina, quando manifestantes golpistas, recusando-se a aceitar o resultado das urnas, estenderam os braços enquanto era tocado o hino nacional brasileiro. No segundo caso, a justificativa dos “patriotas” era de que se tratava de “respeito à bandeira”.
A tentativa de explicar atitudes assim evocando o nacionalismo exacerbado e a total submissão a um líder autoritário é a prova de como a gramática nazista foi tão normalizada no Brasil que, ao justificarem que não se trata de neonazismo, usam argumentos nazistas.
O nazismo tem como base o nacionalismo, e a exaltação de símbolos nacionais é típica da ideologia propagada por Hitler na Alemanha a partir de 1933. O “Sieg Heil”, cuja tradução é “viva a vitória”, era uma forma de identificar quem fazia parte do movimento. Depois, quem não o fizesse era punido. Diante de uma bandeira do Brasil, cantando o hino nacional, o braço estendido não leva a uma “confusão”, mas a uma associação.
A figura do líder é outra repetição que chama atenção. Adolf Hitler foi central para o nazismo, mas a ideologia se tornou maior que ele. O bolsonarismo hoje parece ser maior do que Bolsonaro. As marcas desse pensamento na sociedade brasileira tendem a ser profundas e não vão acabar apenas com a troca do presidente.
Apesar de a ideologia ter ficado maior que o líder, Bolsonaro tem um papel central na “higienização” do bolsonarismo. Em 2017, e ao longo da campanha de 2018, o então deputado fez questão de se aproximar de parte da comunidade judaica. Assim, pode usar o argumento de que não há como ser nazista quando se é “amigo dos judeus”.
Em 2017, Jair Bolsonaro já era entendido como candidato e, quando ele esteve no clube Hebraica do Rio de Janeiro e abertamente proferiu falas preconceituosas contra grupos minoritários, como quilombolas, o cenário já estava desenhado. As vítimas não eram os judeus, mas negros, mulheres, jornalistas, todos entendidos como “opositores do regime”.
O extermínio de judeus ainda choca a muitos e, por isso, era preciso se prevenir das acusações. A aproximação da comunidade judaica fez esse papel.
A declaração de que “as minorias têm de se curvar às maiorias” não foi consequência da eleição de Bolsonaro, foi o motivo. Ideias supremacistas estavam suprimidas no subterrâneo, e o bolsonarismo foi a erupção delas à superfície, a partir da higienização, da normalização e da permissividade construídas ao longo dos últimos quatro anos.
Segundo o Instituto Butantan, uma epidemia se dá “quando ocorre um aumento no número de casos de uma doença em diversas regiões, estados ou cidades”. No caso do espalhamento da ideologia nazista, o fenômeno é local, se sustenta dentro do Brasil.
Se para a pandemia de Covid a solução é a vacina, para a epidemia de nazismo, o caminho é a educação. Tanto em uma quanto em outra, a extrema direita se opõe a esses remédios. É preciso avançar em direção a soluções duradouras para ambos os problemas.
Professor de sociologia da UFRJ e pesquisador do Centro de Estudos do Antissemitismo da Universidade Hebraica de Jerusalém, é também professor do PPGHIS da UFRJ. Publicou, entre outros livros, O não judeu judeu: a tentativa de colonização do judaísmo pelo bolsonarismo (Fósforo).
Coordenadora de comunicação do Instituto Brasil-Israel, jornalista e mestranda em Comunicação Política na Universidad de Chile
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