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    “Quando o cara me falou que queria criar uma levedura com o caldo da mandioca, achei que a ideia era de maluco", diz o presidente da associação de cervejeiros. “É uma ideia que se assemelha à do movimento antropófago", comenta uma experiente beer sommelière Ilustração: Allan Sieber

questões etílicas

Brindando à mandioca

A saga de um grupo de produtores em busca de uma cerveja genuinamente brasileira

Bruno Capelas | 03 jan 2024_08h54
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No universo cervejeiro, costuma-se dizer “quem faz a cerveja não é o homem, é a levedura”. Se isso é verdade, a cerveja produzida no Brasil não é propriamente brasileira. O país é o terceiro maior produtor do mundo, atrás somente de China e Estados Unidos, mas depende quase totalmente da importação de levedura, esse fungo microscópico que faz mágica ao transformar a mistura de água, malte e lúpulo na bebida favorita de tanta gente. 

A falta de uma identidade nacional fez com que um grupo de produtores artesanais saísse à procura de uma levedura brasileira. Encontraram a mandioca. O tubérculo – também chamado de aipim, maniva, macaxeira e outros tantos nomes, a depender da região do país – contém microrganismos que podem ser usados para fermentar bebidas alcoólicas, entre elas a cerveja. Assim nasceu, em 2022, o Projeto Manipueira Selvagem.

Mais de cinquenta cervejarias em quinze estados se uniram, lideradas pela Associação Brasileira de Cervejas Artesanais (Abracerva), para tentar fazer da mandioca uma bebida palatável. O objetivo, desde então, tem sido criar uma receita colaborativa usando os microorganismos presentes no caldo fermentado da manipueira, nome dado ao líquido amarelo que se extrai do tubérculo e pode ser usado para produzir fertilizantes, inseticidas e caldo de tucupi. Não se trata apenas de criar uma fórmula comercial. Os produtores querem estimular reflexões técnicas e patrióticas. Afinal, o que é cerveja? E o que seria uma cerveja brasileira?

“Se a gente quer falar de cerveja brasileira, temos que usar os insumos daqui. A mandioca está espalhada de Norte a Sul do Brasil desde a Antiguidade, por causa da expansão da civilização tupi. Quando os europeus chegaram aqui, eles perceberam que não dava para plantar trigo e cevada, mas se adaptaram à mandioca”, explica Diego Simão Rzatki, sócio-fundador e mestre cervejeiro da Cozalinda, uma cervejaria artesanal catarinense.

Tamanha esperança no tubérculo – cujo nome tem origem indígena e significa “casa de Maní”, deusa venerada pelos guaranis – faz lembrar um discurso da ex-presidente Dilma Rousseff que virou meme nas redes sociais. Em junho de 2015, enquanto seu governo vivia uma grave crise política, Dilma abriu os Jogos Mundiais dos Povos Indígenas, em Brasília, dizendo: “Nenhuma civilização nasceu sem ter acesso a uma forma básica de alimentação. E aqui nós temos a mandioca”. Em seguida arrematou: “Eu estou saudando a mandioca.”

Rzatki não tem dúvidas: “O nosso projeto é, com certeza, uma saudação à mandioca.”

 

Fanático pelo Figueirense, clube de Santa Catarina que disputa a série C do Brasileirão, Diego Rzatki nunca foi daqueles torcedores que enchem a cara. Sequer bebia cerveja. “Aos 24 anos, ganhei uma viagem para a Polônia e lá comecei a beber. Quando passei pela Bélgica, fiquei apaixonado por como eles veem a cerveja como algo cultural.” Formado em Economia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Rzatki buscava, no começo dos anos 2010, uma empresa para chamar de sua. Autêntico manezinho – gíria para quem nasce em Florianópolis –, ele queria empreender na capital catarinense.

“Vi na cerveja o potencial de divulgar a cultura manezinha, com cada garrafa da Cozalinda levando um pouco de Floripa. Mas não bastava criar um storytelling e fazer um rótulo bonito. Eu queria que as cervejas tivessem terroir”, diz Rzatki. Terroir é uma expressão francesa que os cervejeiros têm tomado emprestada dos enólogos. Um vinho com terroir tem gosto, aroma e sabor particulares do solo em que a uva foi cultivada. Na cerveja, a levedura, o lúpulo e a fermentação usados na fabricação podem conferir essa distinção.

Um pequeno passo a passo de como se faz uma cerveja: é preciso, antes de tudo, liberar os açúcares de grãos como cevada, trigo, milho ou outros, num processo conhecido como malteação. Esse malte, cozinhado em água, vira um caldo açucarado, chamado de mosto cervejeiro. Depois de coado, ele recebe adição de leveduras para se transformar em cerveja. Durante a fermentação, que geralmente é feita dentro de tanques ou barris fechados com centenas ou milhares de litros, os fungos transformam o açúcar em álcool, além de gerar carbonatação e criar características de sabor. O lúpulo, por sua vez, é adicionado para ajudar na conservação, além de dar aromas e gostos à bebida (o amargor, por exemplo). Passadas algumas semanas (ou meses, a depender do fabricante e da receita), a cerveja é filtrada e envasada para o consumo. A nossa gelada industrial de cada dia é fabricada em ritmo bem mais rápido: fermenta por apenas uma semana, e olhe lá. 

Uma das principais inspirações de Rzatki, as cervejas belgas do estilo Lambic costumam obter seu terroir de maneira peculiar: a bebida fermenta espontaneamente em grandes tanques abertos, sofrendo intervenção direta de bactérias que flutuam no ar. O resultado é um líquido ácido que a população brasileira, habituada à Pilsen do boteco da esquina, teria dificuldade em chamar de cerveja. “Disseram que eu era louco quando resolvi fazer cerveja ácida aqui. Hoje, acho lisonjeiro quando alguém fala que a Cozalinda é a Lambic brasileira. Mas não quero ser comparado: eu quero ter identidade própria”, diz o cervejeiro, que em 2016 começou a trabalhar com uma flora de microrganismos brasileiros em suas receitas.

Foi quando apareceu a mandioca. Em busca de novas receitas experimentais, Rzatki resolveu tomar como inspiração o cauim, bebida indígena dos tempos pré-colombianos, produzida a partir da fermentação da manipueira. “E se eu usar os mesmos microrganismos que fermentam o cauim?”, pensou o cervejeiro. A criação deu certo e recebeu o exótico nome de “Já Passou o Paulo Lopix?”. É uma piada com a maneira como os catarinenses pronunciam o nome da cidade de Paulo Lopes, situada a 40 km de Florianópolis. Foi lá onde Rzatki encontrou um engenho de mandioca que o ajudou na empreitada etílica.

A quase mil quilômetros dali, um cervejeiro de Minas Gerais vinha fazendo coisa parecida. Era Fabrício Almeida, fundador da cervejaria ZalaZ, de Paraisópolis (MG). Sediada na Fazenda Santa Terezinha, que pertence à família Almeida há gerações, a marca cria receitas e rótulos com base no que é plantado por ali – café, frutas, tomate, hortaliças…

“Tem mais de 100 anos que a família vive da terra, mas fazenda é um negócio instável. Fui pra São Paulo buscar meu caminho, mas sempre quis voltar para viabilizar a fazenda. Com a cerveja, eu descobri o que ia fazer da minha vida”, conta Almeida. “Minha ideia sempre foi usar o máximo do que a gente consegue da terra nas cervejas: insumos, leveduras, ingredientes, adições…” Assim nasceu o terroir mineiro. Na ZalaZ, porém, a mandioca só entrava nas receitas como ingrediente extra – e nunca doando seus microorganismos para a fermentação. Até que Jayro Pinto, amigo de Fabrício e conselheiro da Abracerva, resolveu unir os fãs da mandioca numa grande receita colaborativa. Era final de 2022.

 

A colaboração não é uma prática incomum no mundo das cervejarias artesanais. Frequentemente, marcas se unem para fazer receitas juntas, explorando o que cada uma sabe fazer de melhor. Há nisso uma dose de marketing, algo parecido com o que fazem artistas pop quando convidam grandes nomes da música para parcerias – inflando, com isso, seus números no streaming. “Mas eu não queria produzir qualquer coisa: eu queria uma cerveja para a gente comparar o terroir de cada região. Íamos fazer a mesma receita, cada um na sua cervejaria, pra depois comparar o resultado”, diz Rzatki, da Cozalinda. “Mas como o Jayro é da Abracerva, decidimos ampliar o projeto para toda a associação.”

Num primeiro momento, o Projeto Manipueira Selvagem foi recebido com olhos arregalados. “Quando o cara me falou que queria criar uma levedura com o caldo da mandioca, achei que a ideia era de maluco. Gente que mexe com levedura não é desse planeta”, brinca Gilberto ‘Giba’ Tarantino, presidente da Abracerva e dono da Cervejaria Tarantino, de São Paulo. “Mas o Diego [Rzatki] fala de levedura com tanta paixão que aos poucos fomos percebendo que era um baita de um projeto que ele teve o desprendimento de doar para nós.” A ideia se espalhou rapidamente. “Virou uma bola de neve: de repente, tinha mais de cinquenta cervejarias interessadas em acompanhar o projeto”, conta Rzatki.

Todas foram convidadas a produzir um lote de cerveja seguindo a mesma receita: malte Pilsen (o mesmo usado no estilo mais popular do Brasil), água local, lúpulo com baixo amargor (para não interferir nos sabores criados pelos fungos) e uso de mandioca como ingrediente, fosse in natura ou como tapioca/farinha, em volume que correspondesse entre 1,5% e 10% do total – se possível, comprada de um produtor da mesma região da fábrica. A manipueira, usada para transformar a mistura, com seus microrganismos, deveria ser extraída de um engenho local ou produzida pela própria cervejaria. Os cervejeiros não deveriam controlar a temperatura da fermentação, absorvendo o clima de sua região.

“Sem querer, a gente se deparou com outra parte da cultura local: pirão, polvilho azedo, farinha de mandioca, engenho. Teve gente que achou mandioca rosa, teve gente que viu engenhos muito rústicos, e isso fez o mundo da cerveja, tão industrial, entrar em contato com a ruralidade e a agricultura familiar”, diz Rzatki. “Se a gente está falando de cerveja artesanal, esse contato do produto com significado histórico e social é importantíssimo.”

A beer sommelière, antropóloga e marqueteira Aline Smaniotto, que participou da concepção do projeto, acha que a questão não é só social, mas também gustativa: “Usar a produção de pequenos produtores é o que traz o terroir de verdade, porque a gente não quer justamente a esterilização e a padronização do sabor que existe na cerveja industrial.” Nem todo mundo, porém, encontrou um engenho charmoso e rústico para chamar de seu. “Eu mesmo comprei a mandioca e fiz a extração usando um ‘juicer’ lá na cozinha de casa”, confessa Allan Maple de Oliveira, fundador da Fermentaria Local, de Jarinu (SP).

Depois de fabricadas, as cervejas de mandioca deveriam passar um ano fermentando em barris de madeira que já tivessem sido usados para fermentar outra bebida (como os barris de carvalho americano ou francês, usados respectivamente para bourbons e conhaques ou vinhos). Ficou combinado que, ao final do processo, cada cervejaria deveria ter entre 180 e 225 litros de um rótulo com identidade própria, dos quais 50 litros seriam doados para a criação de um megablend – uma mistura de todas as criações, outro costume importado da Bélgica, onde receitas colaborativas são comuns. “Achei que o pessoal ia querer mais liberdade de criar, mas todo mundo pediu para sermos mais restritivos – o que é bom, porque quanto mais próximas forem as receitas, melhores as comparações”, diz Rzatki.

A comparação não é só sensorial, mas também química e biológica. Além de ser acompanhado de perto pelo Conselho Federal de Química (CFQ), o Projeto Manipueira foi objetivo de um trabalho apresentado no último Congresso Brasileiro de Microbiologia pela pesquisadora Carola Carvalho, doutora em biotecnologia pela USP. Ela reuniu amostras de manipueiras de três cervejarias diferentes – a Cozalinda, a Uçá, de Sergipe, e outra feita pelo Instituto Federal de Sertãozinho, no interior paulista – para entender como cada mandioca, depois de fermentada, gerou microrganismos diferentes para as cervejas. 

 

O advento da mandioca equivale, no mundo das cervejas, a uma declaração de independência nacional. Não por acaso, a data escolhida para a abertura das primeiras garrafas da Manipueira foi a semana do Sete de Setembro. O evento aconteceu em São Paulo e foi intitulado Semana Selvagem. Diferentemente do que se pode pensar, não havia rock pesado, gente barbuda ou churrasco. A trilha sonora era de cúmbia e, além das garrafas, foram dadas palestras sobre os fundamentos da cerveja e seu significado social.

Entre os convidados, estavam representantes da cervejaria peruana Victoria, que fabrica uma versão contemporânea da chicha, bebida ancestral fermentada com base em milho. Para Cilene Saorin, beer sommelière e mestre-cervejeira com três décadas de experiência, a Manipueira e a nova chicha não devem ser consideradas como um resgate de cultura originárias. São uma continuidade. “É uma ideia que se assemelha à do movimento antropófago, trazendo uma fusão de conceitos clássicos, europeus, e conceitos caóticos, mas não menos ricos, das culturas locais da América Latina. É isso que acontece quando a gente ouve Villa-Lobos e também quando a gente experimenta a mistura da Manipueira.”

A maioria das Manipueiras agradou os presentes, ainda que elas destoem das bebidas que se costuma ver nas prateleiras dos supermercados, ou mesmo de estilos razoavelmente populares, como as cervejas de trigo (weiss ou witbier) ou as India Pale Ale (IPA). Cervejeiros veteranos souberam identificar na bebida de mandioca um resultado próximo ao de algumas cervejas belgas ou americanas do estilo Wild Ale. As diferenças regionais almejadas pelo projeto foram pequenas, quase imperceptíveis para o consumidor leigo.

Em geral, as Manipueiras resultaram amarelas, variando entre tons pálidos e dourados, com leve turbidez, provavelmente causada pela fermentação. O aroma era de notas cítricas e acidez láctica, remetendo a iogurte e frutas frescas. No paladar, as cervejas eram rispidamente ácidas, com média de 6% a 7% de álcool e uma nota sutil, no final, que parecia polvilho. “Lembra aquele biscoito Globo que a gente come na praia. É uma cerveja que as pessoas precisam estar abertas a explorar como possibilidade”, comenta a sommlière Saorin. Fabricio Almeida, da ZalaZ, observa que “em vários exemplares, é possível sentir um corpo sedoso, justamente por conta da mandioca adicionada à receita.”

Neste momento, uma nova safra da Manipueira está fermentando em barril. Algumas cervejarias aproveitam para testar receitas com frutas locais: a Zapata, do Rio Grande do Sul, está fazendo uma versão da cerveja contendo butiá. Experimentos com diferentes tipos de barril – como amburana e jatobá – estão previstos para acontecer em breve. Quem quiser provar a receita inicial terá que garimpar e abrir o bolso: em média, uma garrafa de 750 ml de um rótulo Manipueira custa entre 75 e 100 reais, preço salgado que se explica pelas particularidades logísticas e pelo tempo que a bebida demora para amadurecer.

A descoberta do potencial etílico da mandioca abre portas para o que, no futuro, pode se tornar uma escola brasileira de cerveja. Atualmente, os guias de estilo que servem de referência para cervejeiros do mundo todo reconhecem a existência de apenas quatro escolas: a alemã, a inglesa, a franco-belga e a americana. As três primeiras acumulam séculos de conhecimento; a última foi se construindo nos últimos cinquenta anos.

Para que o Brasil alcance esse status, o primeiro passo seria estabelecer a receita da Manipueira e de outros experimentos como estilo oficial nos principais guias especializados – no caso, o da Brewers Association (BA) e o do Beer Judge Competition Program (BJCP). Gilberto Tarantino, presidente da Abracerva, não nega a ambição, mas entende que o caminho é longo. “Sempre lembro de algo que ouvi do Greg Cook, fundador da cervejaria Stone Brewing: ‘Antes de virar um estilo, a cerveja tem que ser muito consumida’.” 

Cilene Saorin concorda que o buraco é mais embaixo. “Para ter uma escola, é preciso ter terroir, ter domínio técnico da produção, da comunicação, do serviço, e ter uma massa crítica que entenda e reconheça o valor disso tudo”, ela explica. “A escola alemã, que tem um conceito filosófico bastante ortodoxo, conta com pelo menos 45 estilos desenvolvidos por mais de quinhentos anos. É difícil imaginar o Brasil sendo escola, ensinando diferentes estilos, só com uma meia dúzia de gatos pingados. Não se pode querer tudo pra ontem.”

Rzatki, da Cozalinda, quer tudo ao mesmo tempo agora. “Espero que demore no máximo três anos para a Manipueira estar nos guias de estilo”, diz o cervejeiro. “Mas está na hora de ter um guia nosso, sul-americano. Cadê a independência?” Para ele, há muitos objetivos no horizonte. O primeiro é aproximar a cerveja brasileira da culinária, que passou por uma revolução recente ao priorizar ingredientes locais. “Queria muito essa cerveja no Maní”, diz o catarinense, referindo-se ao restaurante da chef Helena Rizzo, símbolo desse movimento. 

Outro objetivo é fazer justiça ao célebre discurso de Dilma Rousseff, que, para Rzatki, não foi compreendido em toda a sua beleza. “É um discurso lindo, civilizado e historicamente correto, porque a mandioca foi importante para o estabelecimento humano em grandes partes do continente. Acho foda”, elogia o cervejeiro. “O que eu queria é dar uma cerveja dessa pra Dilma”. Será que a presidente do banco dos BRICS aceita a saudação?

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