Preso na cadeia pública de Benfica desde 2016, Cabral deixa o prédio do Tribunal de Justiça Federal, no Rio, após uma audiência FOTO: FUTURA PRESS_FOLHAPRESS
Cabral, o calouro
Ex-governador do Rio, sua mulher, Adriana Ancelmo, e o ex-braço direito Wilson Carlos vão estudar teologia – atrás das grades
A tarde de sexta-feira, 8 de dezembro, reservou uma boa notícia ao ex-governador fluminense Sérgio Cabral Filho, condenado a 72 anos de prisão em processos derivados das operações Lava Jato, Calicute e Mascate, e réu em outros treze processos. Cabral é um dos novos calouros do curso à distância de bacharel em teologia oferecido pelas Faculdades Batista do Paraná, a Fabapar, instituição de alguma notoriedade no ensino religioso. Não está só: a mulher, Adriana Ancelmo (condenada a 18 anos), e o ex-secretário e braço direito Wilson Carlos Carvalho (que acumula 44 anos de prisão) serão seus colegas.
Os três foram aprovados em um vestibular que testou seus conhecimentos em questões de língua portuguesa, conhecimentos gerais, religiosos e bíblicos, e cujo resultado foi divulgado no início da tarde desta sexta.
Cabral, Ancelmo e Carvalho seguem o caminho do traficante Fernandinho Beira-Mar, que fez o mesmo curso em 2013, quando cumpria pena no presídio federal de Catanduvas, oeste do Paraná. Há ainda, na turma de Cabral, outros alunos de alguma notoriedade. Andréia Cardoso do Nascimento, chefe de gabinete do deputado estadual Paulo Melo, do PMDB, presa pela operação Cadeia Velha, Flávio Mello dos Santos, um ex-policial militar acusado de trabalhar para o tráfico de drogas, e Marco Antônio de Luca, preso na operação Ratatouille, também estão na lista de aprovados.
No labiríntico conjunto de casas antigas que serve de sede à Fabapar, localizado numa movimentada avenida no Centro de Curitiba, o burburinho era grande no início da tarde desta sexta. Os funcionários perceberam que haviam sido jogados no centro do noticiário político-policial do Brasil quando receberam da empresa responsável por corrigir as provas de seus vestibulares a lista de aprovados para o bacharelado à distância em teologia.
“Toda instituição é obrigada a atender qualquer presidiário que a procurar. Entramos nesse circuito via Fernandinho Beira-Mar. No presídio em que ele estava, havia um projeto de capelania prisional, tocado por missionários batistas. Quando ele falou em fazer faculdade, nos indicaram. Ali começou”, explicou-me Jader Teruel, gerente-geral da Fabapar.
Teruel me recebeu desculpando-se por não ter autorização de dizer muita coisa. Culpa, segundo ele, da divulgação desfavorável que a instituição teve em 2013, quando tornou-se público que Beira-Mar era um de seus alunos. O diretor da Fabapar, Jaziel Martins, deu ordens a seu estafe para não atenderem à imprensa. “Vamos emitir uma nota oficial mais tarde”, esquivou-se o gerente.
Tal cuidado se deve, provavelmente, ao fato de a instituição ter uma boa reputação. “Alguns dos melhores teólogos do país saíram de lá”, disse-me uma pessoa familiarizada com a área, que preferiu não se identificar. Em seu site, a Fabapar afirma ser “a instituição de ensino superior de teologia mais tradicional do Paraná, credenciada e reconhecida pelo MEC, mantida pelo Conselho Educacional da Convenção Batista Paranaense”. O portal do Ministério da Educação informa que a faculdade tem nota quatro no Índice Geral de Cursos, que vai até cinco.
A contragosto, Teruel explicou que o contato presencial da Fabapar com os postulantes é “zero”. “A secretaria de Administração Penitenciária nos cadastra, e enviamos as provas para eles, que as aplicam. Não temos nenhum contato com os alunos presidiários”, afirmou. Tampouco ele soube dizer como a turma de Cabral soube da Fabapar. “Imaginamos que foi por causa do Fernandinho. Eles devem ter visto, ou talvez ouviram de um advogado”, arriscou.
“Não vou dizer que de alguma forma influenciei o governador, mas conversei com ele a respeito do curso”, jactou-se o advogado de Cabral, Rodrigo Roca, numa conversa por telefone. “É que sou mestrando em direito canônico pela Universidade Gregoriana de Roma, que tem um braço no Rio de Janeiro”, contou-me, revelando que pretende adicionar à sua rotina de criminalista a atuação em tribunais eclesiásticos (que julgam desde anulações de casamentos a faltas éticas de párocos e fiéis da Igreja Católica).
Nos últimos tempos, referências bíblicas têm pontuado a relação entre Cabral e os tribunais. Numa decisão de outubro em que manteve a decisão de transferir o político para um presídio federal em Campo Grande (MS), o juiz Marcelo Bretas, evangélico, anotou: “Adoto como princípio de conduta o Princípio Cristão enunciado no Livro de Mateus (…) que reza: ‘Senhor, até quantas vezes pecará meu irmão contra mim, e eu lhe perdoarei? Até sete?’ Jesus lhe disse: ‘Não te digo que até sete, mas até 70 vezes sete.’” Tempos depois, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, cassou a sentença.
Nas alegações finais de outro processo contra Cabral, o advogado Roca, lançou mão do Evangelho de Judas para defender o cliente. “Foi um paralelo entre Judas e os delatores premiados”, explicou-me, contando que debateu a linha de argumentação com Cabral. Seria a escolha do ex-governador pela formação em teologia uma tentativa de debater à altura com Bretas? “Zero de chance, em absoluto”, negou o causídico, com veemência.
O que motiva Cabral a estudar, rebateu o advogado, são questões bastante terrenas. A legislação brasileira abona um dia de sentença para cada três de trabalho ou estudo na prisão. Por isso, o ex-governador também fará as provas do Enem, que para a população carcerária ocorre nos próximos dias 12 e 13. Busca, também, uma vaga num curso de história. “Ele procura por áreas afins à dele”, disse Roca – o político é jornalista formado.
Por e-mail, enviado às 21h26 da sexta-feira, a Secretaria de Administração Penitenciária do Rio de Janeiro informou o seguinte: “Todo interno tem direito a estudar, mas, como essa universidade não é conveniada com a secretaria, o curso não irá ajudar o interno na remissão de pena”.
O convênio é necessário para o departamento penitenciário ter controle de que o detento está de fato fazendo as aulas, explicou-me um advogado que atua na área de Direitos Humanos. “É para evitar que o benefício seja concedido a alguém que não faça jus a ele. A defesa de Cabral pode impetrar um mandado de segurança alegando negligência do Estado, o que pode levar a Justiça a exigir que se formalize o convênio”, disse. Procurei Roca para ouvi-lo a respeito, mas ele não atendeu às ligações efetuadas entre a sexta à noite e o fim da manhã deste sábado, 9 de dezembro.
As provas do Enem, tal qual as do vestibular da Fabapar, serão prestadas na cadeia pública José Frederico Marques, em Benfica, onde Cabral, Wilson Carlos Carvalho e Adriana Ancelmo estão presos. “Eles não saem para fazer a prova”, afirmou o advogado. “A unidade prisional em que ele se encontra tem 52 câmeras. É mais fácil uma pessoa liberta fraudar a presença num curso do que um detento. Ele precisa estar no horário determinado acessando a disciplina”, acrescentou, garantindo a lisura da futura carreira acadêmica do cliente. Não parece tão simples, a se considerar o noticiário recente sobre Benfica: em fins de outubro, saiu a notícia de que a cadeia teria até cinema, com coleção de filmes em DVD aos cuidados de Carvalho – que, pelo serviço, receberia o perdão de um dia para cada três trabalhados. Depois de a imprensa noticiar a situação, o ex-governador foi privado dos filmes no cárcere.
Segundo a Secretaria da Administração Penitenciária informou na noite de sexta, “oito internos da cadeia pública José Frederico Marques fizeram a inscrição no vestibular dessa faculdade através de familiares e advogados”. “As provas foram feitas dentro da unidade e chegaram por Sedex. Uma vez que os inscritos passem na prova, farão o curso por correspondência e o material didático chegará na unidade prisional pelo correio”, acrescenta a nota.
Na nota que divulgou no final da tarde, a Fabapar afirma que “os detentos passam pelos mesmos critérios de correções de notas e redação, como qualquer outro candidato que se dispõe à vaga, sem regalias, privilégios ou coerções de terceiros”. Diz, ainda, que “acredita na importância do acesso à educação igualitária a todos, sem distinções, de forma justa e igual, pois a educação é capaz de transformar o ser humano”.
“O curso de bacharelado em teologia à distância, com duração de 4 anos, está comprometido com os valores éticos, morais e espirituais do cristianismo e oferta ao aluno uma formação profunda e abrangente, capacitando-o a contribuir para uma sociedade mais justa, humana e fraterna”, explica o portal da Fabapar. Um semestre do curso, segundo o site, custa 2 664 reais, que podem ser parcelados em seis vezes. Quem pagar até o dia cinco de cada mês é recompensado com um abatimento de 266 reais e 40 centavos.
Quando perguntei como a Fabapar fará para receber de seus novos alunos, o gerente Teruel foi lacônico: “Todo aluno tem que pagar”, limitou-se a dizer.
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Atualização: Esta reportagem foi atualizada às 12h08 deste sábado, 9 de dezembro, com respostas da Secretaria de Administração Penitenciária do Rio de Janeiro sobre a realização das provas pelos detentos.
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