Allan Souza Lima (Ubaldo) em Cangaço Novo - Foto: Divulgação
Viver é muito perigoso
Cangaço Novo e Nostalgia, duas incursões ao passado
Cangaço novo, série disponível na plataforma Prime Video desde agosto, impressiona pelo vigor que a diferencia da maior parte da produção audiovisual brasileira recente. Criados por Mariana Bardan e Eduardo Melo, também coautores do roteiro em parceria com Fernando Garrido e Erez Milgrom, os oito episódios, dirigidos por Aly Muritiba e Fábio Mendonça, causam impacto no espectador, o que resulta tanto de seus aspectos positivos quanto dos negativos, algumas de suas aparentes virtudes estando, na verdade, a serviço das características discutíveis que apresenta.
De mais admirável, Cangaço novo tem, além do tema – o território livre para o banditismo no sertão brasileiro –, a paisagem natural da Paraíba e do Rio Grande do Norte, registrada pela fotografia de Azul Serra; os ambientes criados pela direção de arte de Thales Junqueira; o elenco formado, na maior parte, por bons intérpretes nordestinos pouco conhecidos, bem preparados por Fátima Toledo; excelentes sequências de abertura, com imagens em preto e branco, servindo como prólogo de cada episódio; e o alto nível de profissionalismo da produção.
Por outro lado, por carecerem de verossimilhança, são menos bem-sucedidas a motivação de Ubaldo (interpretado por Allan Souza Lima) para viajar de São Paulo até o Nordeste, a perda de sua memória infantil e, depois, a adesão ao banditismo. Além disso, a série recorre a estereótipos – lugares-comuns dramáticos, com desfechos previsíveis – e há atuações claudicantes de alguns atores em papéis secundários. O tom exacerbado dos diálogos, com uso desmedido de baixo calão sobretudo nos primeiros episódios, soa mal. E, acima de tudo, o propósito deliberado de tornar a violência um espetáculo em si mesmo prejudica Cangaço novo. O resultado frustra a inegável ambição do projeto, até certo ponto bem-sucedida, mas favorece o objetivo pouco audacioso de fazer uma série de ação, o que talvez explique a ampla repercussão favorável que vem obtendo.
Em entrevista ao Estado de Minas, Bardan e Melo, o casal de criadores de Cangaço novo, revelam “o que chamou a atenção […] no noticiário a respeito dos crimes cometidos pelo chamado ‘novo cangaço’ na última década”. Para Bardan, foi “o caráter da espetacularização que os assaltos têm: às vezes duram mais de uma hora no meio do dia, reféns amarrados no capô do carro, muitos carros, motos, vinte pessoas ‘produzindo’ um assalto, é muito megalomaníaco – e foi justamente isso o que a gente trouxe para a ficção. Na vida real, é o horror…”.
Melo, de seu lado, ressalta “a organização do crime e a coragem dos assaltantes. Um assalto no modelo ‘domínio de cidades/novo cangaço’ necessita de planejamento, de uma equipe grande, de armas de grosso calibre e de experiência. Essas características fazem dos bandidos não só criminosos comuns, mas realmente profissionais do crime. Para uma atividade criminosa chegar a esse ponto, é porque muitas outras questões sociais falharam no caminho. Revela de forma dramática a situação do país frente ao crime organizado”.
As declarações de Bardan e Melo causam a impressão de que ambos se deixaram encantar pela “espetacularização” dos assaltos, tendo se tornado admiradores da “coragem dos assaltantes” e do profissionalismo dos bandidos. Isso talvez tenha impregnado Cangaço novo de um certo fascínio pelo crime, e levanta questões éticas. O horror “na vida real” que Bardan não deixa de assinalar acabou minimizado.
Embora eu não tenha conseguido apurar onde nasceram dois dos quatro corroteiristas (Garrido e Milgrom), em se tratando de uma série criada e corroteirizada por uma paulista (Bardan) e um paulistano (Melo), e codirigida por outro paulistano (Fábio Mendonça), soa constrangedora a declaração do outro codiretor (Muritiba), que disse: “Nós sabemos e podemos fazer ação no Brasil, e, sim, sabemos contar histórias no Nordeste brasileiro como nordestinos e não sudestinos fingindo ser nordestinos. Chega de sudestino fingindo ser nordestino!”
Fiquei surpreso com a mentalidade retrógrada dessa afirmação de Muritiba e me perguntei: será que por ser sudestino não posso escrever sobre Cangaço novo? A que ponto chegamos!
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Nostalgia (2022), produção ítalo-francesa realizada em colaboração com a Prime Video, dirigida por Mario Martone e coescrita por ele e sua mulher, Ippolita di Majo, estreará nesta quinta-feira (5) no cinema. Baseado no romance homônimo de Ermanno Rea (1927-2016), publicado na Itália em 2016, o filme participou da competição oficial do 75º Festival de Cannes, em 2022, e foi exibido, em junho, na edição de 8 ½ Festa do Cinema Italiano, no Rio, em São Paulo e em outras dezesseis cidades brasileiras.
Felice Lasco (Pierfrancesco Favino), empresário bem-sucedido estabelecido no Cairo, vivendo há quarenta anos no exterior, volta a Nápoles, sua cidade natal, a princípio para reestabelecer contato com sua mãe, mas acaba lidando mesmo é com o trauma sofrido quando era adolescente no Rione Sanità, bairro mais populoso e violento da cidade.
A semelhança imprevista entre a jornada de Lasco, em Nostalgia, e a de Ubaldo, em Cangaço novo, realça qualidades de um que o diferenciam do outro. A principal delas é o fato de que a violência no filme de Martone é ocasional, só vindo a eclodir – e ainda assim de maneira encoberta – no último plano, sem por isso deixar de ser brutal. Destituído de viés didático, outra virtude do filme italiano é revelar aos poucos o verdadeiro motivo da viagem de Lasco. Em resumo: um traço identitário marcante de Nostalgia, decisivo para sua grandeza, é cada sequência ter um significado implícito que é preciso descobrir, e não um sentido evidente destituído de ambiguidade.
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