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Carlos Marighella, herói trágico

Filme de Wagner Moura leva às telas barbaridade da repressão desencadeada pela ditadura implantada em 1964

Eduardo Escorel | 17 nov 2021_09h03
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O protagonista de Marighella (2019) encarna a figura do herói trágico, categoria de personagem raro no cinema brasileiro, cujo heroísmo fascina sem ser isento de falhas e erros que o levam à morte prematura. A galeria desses heróis, cada um com suas respectivas peculiaridades, inclui de Édipo a Peter Pan, passando por Creonte, Romeu, Macbeth e Gatsby, entre outros.

Chamado afetuosamente de “Preto” no filme dirigido por Wagner Moura a partir do roteiro que ele escreveu com Felipe Braga, Marighella (Seu Jorge) é apresentado ao espectador no prólogo, primeiro como chefe do assalto a um trem, em 1968, para roubar armas e, na sequência seguinte, como pai amoroso que toma banho de mar com o filho Carlinhos, quatro anos antes, mesmo estando na clandestinidade após o golpe civil-militar em 1964.

Cena do filme “Marighella”, dirigido por Wagner Moura – Foto: Divulgação

 

Passados cinco anos, próximo ao desfecho, Marighella tenta ir ao encontro de Carlinhos, em Salvador, apesar de estar ciente do alto risco que está correndo – ocasião em que deixa de ser preso por pouco, evitando cair na armadilha da polícia graças aos gritos do esperto adolescente.

A essa relação paterna afetuosa é acrescida a despedida, discretamente sensual, de Clara (Adriana Esteves), companheira de Marighella há cerca de vinte anos. Quando ele optou pela luta armada contra a ditadura, ela lhe disse: “não me peça licença para você sair daqui e morrer.” Bonomia e destemor do ridículo ao usar uma peruca como disfarce completam a personalidade cativante de Marighella apresentada no filme.

Aos traços de simpatia se justapõe, porém, a determinação férrea de Marighella que o leva a romper com o Partido Comunista Brasileiro (PCB), após 34 anos de militância. E de vir a ser um dos fundadores, em 1968, da Ação Libertadora Nacional (ALN), dedicada a enfrentar o regime ditatorial com guerrilheiros urbanos, baseada no “conceito teórico pelo qual […] a ação faz a vanguarda” revolucionária (Magalhães, p.361. Referência abaixo). O que move a ALN é a convicção radical mencionada no filme de que “pelas coisas certas vale a pena viver e vale a pena morrer”.

Por oposição à prática tradicional do PCB, a ausência deliberada de comando centralizado na ALN explica o fato assombroso de o sequestro do embaixador americano, em setembro de 1969, ter sido realizado sem conhecimento prévio de Marighella, assassinado apenas dois meses depois em emboscada de agentes do Dops possuídos de furor vingativo, liderados pelo delegado Sérgio Fleury.

Devido ao isolamento da ALN de qualquer setor ponderável da população, ao contrário da experiência cubana, como é mencionado, o filme deixa clara a inexistência de condições para o êxito da forma de atuação política preconizada, no momento em que a organização é criada.

Fica evidente não só o voluntarismo da ALN, mas também a considerável responsabilidade pessoal de Marighella, ao se radicalizar, pelo sofrimento e morte de seus companheiros – ele chegou a ponto de declarar, em 1967, que “devemos lutar para atrair as forças-militares norte-americanas a combater desvantajosamente em vários lugares do mundo ao mesmo tempo” (Magalhães, p.362. Referência abaixo).

É esse herói trágico, com propósitos nobres, mas tendo que responder pelas consequências de seus atos que aflora, embora derrotado, em Marighella. Corajoso e leal, a partir de certo ponto o personagem parece estar sendo arrastado pela torrente, incapaz de alterar o curso fatídico dos acontecimentos. Ele assume sua responsabilidade e, no ato final, está preparado para oferecer a própria vida em sacrifício.

 

Se o herói trágico tem falhas, quanto mais um filme a seu respeito. E Marighella não foge à regra. Destacam-se entre as deficiências o excesso de tiroteios que mais parecem sequências de bang bang, além da insistência em diálogos gritados. Outra imperfeição é omitir quase por completo menção à influência de Cuba na ruptura de Marighella com o PCB e na sua adesão à guerrilha como sendo a “própria estratégia da revolução”, conforme afirmou em entrevista ao vespertino cubano Juventud Rebelde, em agosto de 1967, dada enquanto participava, em Havana, da Primeira Conferência da Organização Latino-Americana de Solidariedade – Olas (Magalhães, p.348. Referência abaixo). Especialmente difícil de compreender é a razão de ter sido incluído o arroubo juvenil de encerramento em que um pequeno grupo do elenco canta aos gritos um trecho do Hino Nacional, incluindo, salvo lapso de memória, “Se o penhor dessa igualdade / Conseguimos conquistar com braço forte / Em teu seio, ó liberdade / Desafia o nosso peito a própria morte! / Ó Pátria amada / Idolatrada / Salve! Salve! / Brasil, um sonho intenso, um raio vívido”.

Os créditos de Marighella informam que o filme é “inspirado” na biografia Marighella: o guerrilheiro que incendiou o mundo, de Mário Magalhães, publicada em 2012. Ao escrever o roteiro, Moura e Braga tiveram o bom senso de não pretender dar conta de suas 569 páginas de texto, sem contar notas e agradecimentos. Pelo contrário, o filme é sucinto, apesar de durar 2h35m. Relata a prisão de Marighella no Cinema Eskye, no Rio de Janeiro, em 1964, quando levou um tiro da polícia, mas se concentra a seguir no período entre abril de 1968, quando ocorreu o primeiro assalto a uma instituição financeira feito pela organização de Marighella, e novembro de 1969, quando ele foi assassinado em uma emboscada da polícia, fuzilado ao fazer menção de pegar algo (acredita-se que cápsulas de cianureto para não se entregar vivo). Constatado que ele não estava armado, a polícia falseia a cena para justificar o crime (de acordo com Magalhães, p. 553. Referência acima). Mesmo assim, o ano e meio ao qual a narrativa do filme se atém ocupa 219 páginas, cerca de 38% do livro, o que pode ser considerado prova do poder de síntese e impacto emocional da narrativa cinematográfica ou, em certos casos, de sua superficialidade e tendência a se acomodar, em nome do espetáculo, ao que é considerado o gosto dominante.

 

Ter superado os obstáculos que impediram Marighella durante quase três anos de ser exibido comercialmente em larga escala, no Brasil, após a estreia em fevereiro de 2019 na 69ª Berlinale, é um feito notável pelo qual Moura e os produtores devem ser louvados. Ser finalmente lançado em 280 cinemas, passando no segundo fim de semana a 316 salas (segundo a plataforma Filme B), com mais de uma sessão por dia, é admirável. E estar sendo visto por público considerável (mais de 215 mil espectadores nos onze primeiros dias, de 4 a 14 de novembro) é alentador. Registre-se, porém, que é baixa a média de 178 espectadores por cinema (sempre conforme dados da plataforma Filme B).

Para quem quiser ver, está nas telas a barbaridade da repressão desencadeada pela ditadura civil-militar implantada em 1964. Marighella oferece a valiosa oportunidade de conhecer ou rememorar e refletir sobre os impasses políticos dos tempos idos em que a tortura foi elegida como instrumento político do Estado.

O que a meu ver não faz sentido é pretender que um filme sobre a resistência de Marighella e seus companheiros de organização armada sirva para lidar com o catastrófico governo federal prestes a completar três anos na Presidência da República. Insistir nessa tecla é um anacronismo brutal que resulta em percepção distorcida da realidade política contemporânea.

Gostaria de ter podido comentar Marighella há mais tempo. Lamento não me ter sido dada uma oportunidade de assistir ao filme, apesar das reiteradas solicitações que fiz desde a estreia na Berlinale, em 2019. Wagner Moura recusou também o convite para participar do nosso programa #DomingoAoVivo do canal de YouTube 3 Em Cena e conversar sobre o filme. Para poder assistir a Marighella, só me restou esperar o lançamento e criar coragem para ir a uma sessão de cinema pela primeira vez após um ano e meio de abstinência devido à pandemia. Comprei, então, uma entrada para idoso por 12,77 reais e, na quarta-feira passada (10/11) fui, embora temeroso, à sessão de 15h10 no Espaço Itaú de Cinema – Botafogo 4. Ao chegar de máscara, minha temperatura foi medida logo na entrada do saguão, precaução inútil segundo voz abalizada, e, para ter acesso à sala, a Carteira de Vacinação foi pedida adiante. Sem estar lotado, o cinema estava cheio, o que foi uma grata surpresa. Temerário é não estar sendo exigido distanciamento entre os espectadores, mas apenas o uso de máscara durante a projeção, o que nem todos obedecem. No final, ouviram-se dois ou três tímidos gritos “Abaixo a ditadura!”. Gostei de ter visto Marighella, mesmo sem poder, como de hábito, assistir ao filme outra vez, nem conferir trechos específicos enquanto escrevo. Apreciei as qualidades do que resultou do trabalho de Wagner Moura e sua equipe, o que não me impede de comentar aspectos que considero mal realizados. Espero que esse direito seja respeitado sem causar rusgas com ninguém.

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No próximo domingo, 21 de novembro, como sempre às 11 horas, Piero Sbragia, Juca Badaró, Vanessa Oliveira e este colunista conversam com Cesar Cabral, diretor de Bob Cuspe, Nós Não Gostamos De Gente (2021), no programa #DomingoAoVivo do canal de YouTube 3 Em Cena. Filme de animação, Bob Cuspe estreou em 11 de novembro, após ter sido exibido na recente 45ª Mostra Internacional de Cinema, em São Paulo, e de ter ganhado o Prêmio Contracampo, em junho, no Festival Internacional do Filme de Animação de Annecy. Participam também da conversa Milhem Cortaz (dublador de Bob Cuspe) e André Abujamra, autor da trilha musical e dublador de outros personagens. O acesso à conversa do próximo domingo pode ser feito através do link https://youtu.be/mLMRPNbV788

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