Deixar Marcelo Rubens Paiva de lado, como personagem e voz narrativa, para tornar Eunice a única protagonista do filme, creio ter sido a decisão crucial para criar empatia entre a personagem da mãe e o espectador Foto: Divulgação/Alile Dara Onawale
Uma carreira triunfal
A escolha decisiva de Ainda estou aqui
Fará sentido indagar quais são as razões do sucesso de um filme coberto de louros, que demonstrou capacidade de atrair milhões de espectadores no Brasil e no exterior? – caso, sem dúvida, de Ainda estou aqui, de Walter Salles, com roteiro de Murilo Hauser e Heitor Lorega, baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, publicado em 2015. Creio que sim. Vale a pena tentar entender a origem de todo grande êxito, em especial de um filme cuja carreira triunfal, sem precedente no cinema brasileiro, colheu prêmios de Veneza a Los Angeles, passando por Madri – entre outros, os de Melhor Roteiro, Globo de Ouro na categoria Melhor Atriz em filme dramático, ganho por Fernanda Torres, Goya de Melhor Filme e Oscar de Melhor Filme Internacional, além de ter obtido sucesso comercial em salas de cinema mundo afora.
Em exibição no Brasil há dezenove semanas, Ainda estou aqui foi visto, até 16 de março, por cerca de 5,7 milhões de espectadores e se mantinha como quinto filme entre as dez maiores rendas no fim de semana de 13 a 16 de março, segundo os dados do Filme B Box Office. Desempenho nada menos que espetacular, digno de admiração e respeito da parte de todos nós. Isso sem esquecer que a produção Globoplay, distribuída pela Sony Pictures Classics, já rendeu mais de 6 milhões de dólares no mercado americano e mais de 28 milhões de dólares no mercado internacional (fonte: Box Office Mojo by IMDbPro).
Assisti a Ainda estou aqui duas vezes, em dias seguidos, no final de outubro do ano passado e admito ter sido incapaz, na ocasião, de perceber o potencial que o filme provou ter para atrair plateias, conquistar admiradores, receber críticas favoráveis e prêmios. Acompanhei, desde então, a trajetória – não prevista por mim – desse verdadeiro fenômeno de massa, ao menos em âmbito nacional, responsável por uma virtuosa adesão em cadeia do público. Isso graças, sem dúvida, além de seus próprios méritos, ao trabalho promocional organizado pelos produtores, contando com a participação intensa do diretor, de Fernanda Torres e Selton Mello.
Segundo Salles, em entrevista a Bob Fernandes,
o nosso filme, ao contrário da percepção que às vezes se tem, não teve uma campanha. O nosso filme teve uma estratégia e a estratégia foi muito simples: é mostrar o filme, é deixar o filme falar por si só – foi o convite para as pessoas verem o filme em sala. E aí nós, Nanda e eu, fizemos mais de cem debates depois dessas projeções com o público, em geral, e membros da Academia que se misturavam ao público, por exemplo, de festivais. Três semanas antes da votação [do Oscar] lançaram o filme nos Estados Unidos, permitindo que o boca a boca se criasse e os votantes tivessem a possibilidade, não de ver o filme numa telinha, mas de ver o filme numa tela de cinema. O fato do filme estar nas salas, eu acho que nos ajudou porque as pessoas puderam ver o filme coletivamente… É uma coisa quase catártica que acontece nas salas de cinema. As pessoas entenderem que isso significava alguma coisa, que ele era autêntico, que ele tinha autenticidade.
Li pela primeira vez o livro de Marcelo Rubens Paiva após ter assistido ao filme. É um texto contundente sobre o que aconteceu com o pai dele, Rubens, no qual se destacam tanto a relação que o autor tinha com sua mãe, Eunice, quanto o papel central que ela passou a ocupar na família após a detenção, seguida de assassinato e desaparecimento, do marido. No livro, o relato ser feito pelo filho de Eunice e Rubens é decisivo para seu vigor e grandeza. Segue pequena amostra da edição Kindle “do livro que deu origem ao filme”, conforme é anunciado:
Eu tinha, sim, ódio dos militares. Do poder. No entanto, assistir à atuação dela [Eunice] me ensinou a não alimentar revanchismos. Ao invés de se fazer de vítima, ela falava de um contexto maior, entendia a conjuntura do continente, sabia ser parte de uma luta ideológica. Era mais uma Maria (Maria Eunice), cantada por Elis Regina em O bêbado e a equilibrista (“choram Marias e Clarisses, no solo do Brasil…”). Nunca se deixou cair no pieguismo, não perdeu o controle diante das câmeras, nem vestiu uma camiseta com o rosto do marido desaparecido. Não culpou esse ou aquele, mas o todo. Não temeu pela vida. Lutou com palavras.
No entanto, apesar da qualidade do texto, o filme não adotou a voz narrativa de Marcelo na primeira pessoa, nem seu ponto de vista, preferindo se concentrar em Eunice e seu percurso. Decisão ousada, chamada de “opção radical” por Fernando de Barros e Silva em seu artigo publicado na revista piauí de outubro de 2024. Ousada ou radical, mas afinal certeira e bem-sucedida, pois é da grandeza dessa mulher que os roteiristas e o diretor querem nos falar.
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Síntese mais que perfeita do filme Ainda estou aqui é a sinopse publicada pelo IMDbPro no site Box Office Mojo: “Uma mãe é forçada a se reinventar quando a vida de sua família é destruída por um ato de violência arbitrária durante o endurecimento da ditadura militar no Brasil, em 1971.”
Deixar Marcelo Rubens Paiva de lado, como personagem e voz narrativa, para tornar Eunice a única protagonista do filme, creio ter sido a decisão crucial para tornar possível haver empatia entre a personagem da mãe e o espectador, razão decisiva para a acolhida favorável obtida em larga escala, graças também às elogiadas atuações das duas Fernandas – Torres e Montenegro, filha e mãe –, atrizes que interpretam a personagem trágica da mulher que resiste.
A sabedoria de Fernanda Montenegro transmitida a Walter Salles, conforme ele relata em outra entrevista recente, ensina que “as histórias, por mais trágicas que sejam, só valem a pena ser contadas se passam pelo humano e pelo existencial.” Lição que os roteiristas do filme e o diretor seguiram à risca.
A recepção ufanista dada a Ainda estou aqui no Brasil, em especial no domingo de Carnaval durante a cerimônia de entrega do Oscar, causa certo mal-estar, uma vez que o filme é um modelo de sobriedade destituído de qualquer laivo de demagogia e nada panfletário. Ainda estou aqui cumpriu de modo exemplar a missão de despertar a memória do crime cometido em 1971. Fica no ar o que não está ao alcance do filme resolver: julgar e punir os responsáveis pelo assassinato de Rubens Paiva.
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Bernardo Mello Franco informou na sua coluna de 7 de março em O Globo, que o documentário de curta-metragem de 15 min, Eunice, Clarice, Thereza, de Joatan Vilela Berbel, filmado em película 16mm, em 1978, mas nunca lançado em salas de cinema, poderá ser visto, em versão digital, no site da plataforma Cinelimite, a partir do próximo dia 24 de março. Além de Eunice Paiva, as entrevistadas são Clarice Herzog e Thereza de Lourdes Fiel – viúvas de três vítimas da ditadura militar.
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