Da esquerda para a direita, estão: o jornalista José Anderson, mediador, Lira Neto e Eduardo Escorel. FOTO: DUARTE DIAS
Carta a um jovem aspirante
Desde Alberto Cavalcanti, em 1936, há a tradição de definir normas de conduta, requisitos ou regras para jovens aspirantes a cineastas
Caro Brenner,
No final do debate com Lira Neto, mediado pelo jornalista José Anderson, desci do palco, posei para uma foto e dei meu e-mail a um rapaz italiano interessado nas manifestações do fascismo no Brasil.
Na primeira brecha, você se aproximou e deu o bote. Tirou da mochila o livro editado há mais de dez anos e pediu uma dedicatória. Confesso minha surpresa. Não esperava que um exemplar fosse aparecer ali. Da edição de 3000, pouco mais mil foram vendidos. A editora encerrou suas atividades no final do ano passado . O que terá sido feito com o encalhe? E você, quando terá comprado seu exemplar?
Naquela quarta-feira, 24 de agosto, o pretexto do evento era outro – a pré-estreia do documentário Imagens do Estado Novo 1937 – 1945. No debate, alguém perguntou se a data era coincidência. Não, não era. Fora escolhida a dedo pelo curador para coincidir com o 62º aniversário do suicídio de Getúlio Vargas.
Durante a exibição, do lado de fora da sala de 1050 lugares do Cineteatro São Luiz, em Fortaleza, além do movimento habitual da Praça do Ferreira, senhoras de camiseta vermelha distribuíam panfletos impressos a quatro cores com as “exigências” da Frente Brasil Popular Ceará. “A absolvição da presidente Dilma Rousseff” era logo a primeira. Uma bandinha estridente procurava animar a panfletagem tocando em ritmo frenético. A etapa final do processo de impeachment da então presidente afastada Dilma Rousseff teria início no Senado, em Brasília, no dia seguinte – essa sim, uma coincidência.
Às duas da tarde, no início da sessão, umas 160 pessoas, entre elas estudantes uniformizados do ensino médio, estavam espalhadas pelas poltronas para assistir ao longo filme, a ser exibido em duas partes, com intervalo. Os organizadores se diziam satisfeitos. Consideravam o número de espectadores bom para um dia de semana, à tarde. Mas, de fato, eram poucos. A imensa sala, dividida em plateia e balcão, estava quase vazia. E não houve como evitar uma certa melancolia. Finda a projeção quatro horas depois, cerca de quarenta abnegados, você entre eles, ainda se animaram a ouvir os debatedores e fazer perguntas durante uma hora e meia.
Quando você me entregou o livro e pediu a dedicatória, revelou ser leitor semanal do blog Questões Cinematográficas da revista piauí, o que voltou a me surpreender. Para arrematar, você disse mais alguma coisa de que não lembro bem, mas me deixou inquieto. Terá sido mesmo que você quer fazer cinema, influenciado pela leitura do livro e do blog? Espero ter entendido mal ou imaginado isso em um instante de delírio.
Depois de perguntar seu nome, que custei um pouco a entender – ‘Dener?’, ‘Não, Brenner’ – creio ter escrito um agradecimento e desejado boa sorte a você na difícil – ou terá sido problemática? – profissão à qual você me disse aspirar.
O encontro foi breve. Durante aqueles minutos, notei uma moça vestida de preto, um pouco afastada, que nos observava com um sorriso tímido, sem se aproximar. Seria sua namorada? Depois de ter assinado e datado a dedicatória, devolvi o livro. Você o guardou na mochila e se despediu, afastando-se com a moça sem apresentá-la.
Nunca me ocorrera que alguém pudesse ser atraído pelo cinema a partir de algo que eu escreva. Você me revelou, porém, que há ao menos um jovem cinéfilo distante que quer fazer cinema, diz ele, em parte por minha causa. E agora? O que fazer? Por mais tênue que possa ser minha responsabilidade, voltei de Fortaleza preocupado, sentindo obrigação de lhe escrever. Daí essa carta aberta.
A décima quarta e última das normas de Cavalcanti, como as anteriores, começa por um “NÃO” em letras maiúsculas: NÃO perca oportunidade de experimentar: o prestígio do documentário só foi conseguido pela experiência. Sem experiência o documentário perde o seu valor. Sem experiência, o documentário deixará de existir.” É um bom ponto de partida.
A lista de Kazan é exaustiva. Estendem-se por onze páginas. As áreas do conhecimento que, segundo ele, um diretor deve dominar, além das características e atributos pessoais que deve ter, cobrem da literatura e do teatro clássico à Commedia dell’arte e o vaudeville. Incluindo comédia, circo, acrobacia, malabarismo, dança, todos os gêneros de música, coreografia, cenografia, figurino e por aí vai. Tudo “é pertinente, nada é irrelevante ou trivial”.
A relação de Kazan é interminável: “iluminação, cor, câmera e gravador, lentes, filtros, gruas e carrinhos; meteorologia; a cidade, antiga e moderna, mas em especial a própria cidade do diretor; montanhas e planícies, desertos e o solo do delta, os montes, a água e o fundo do mar; a brisa; os rios e suas correntes; os lagos”. Para Kazan, além disso tudo, o diretor deve conhecer também: topografia, as árvores, flores e gramas; os animais; voz, acentos e modos de falar; psicologia do comportamento; artes eróticas; pornografia e diferentes modos de fazer amor, as posturas e entrelaçamento das partes do corpo. E há a guerra, que não pode deixar de conhecer. O armamento e as técnicas; as táticas; a história.”
O diretor, diz Kazan, “deve se interessar por história, religião, rituais, economia, comida”; precisa tentar se manter “a par do fluxo da vida que o cerca, dos assuntos contemporâneos”; frequentar tribunais e não evitar fazer parte de júris. Ele estuda propaganda, assiste a talk shows, conversa com pilotos sobre sequestro de aviões. “Viajar. Sim. O máximo que puder.” Percorrer o país de carona. Pescar e nadar. Praticar esportes e assistir à transmissão de jogos de futebol.
“E qual seria o assunto”, Kazan pergunta, “sobre o qual o diretor de cinema precisaria saber mais, conhecer melhor, em mais detalhe, ser impiedoso a respeito e ter a maior percepção das ambivalências em jogo?” Ele mesmo responde.
Além das áreas de conhecimento a dominar, Kazan traça o perfil adequado para um diretor. Ele deve ser como “um caçador à frente de um safari, entrando em território perigoso e desconhecido; um psicanalista que mantém o paciente ativo apesar das suas próprias tensões e estresses profissionais e pessoais; um hipnotizador que trabalha com o inconsciente para alcançar seus fins; um poeta, e um poeta da câmera, capaz de captar o momento decisivo de Cartier Bresson ou esperar como Paul Strand por um único plano que ele filma com uma câmera pesada fixa em um tripé; um jogador de beisebol que fica em pé o dia todo, tem pernas fortes e não ousa ficar cansado; um comerciante astuto em um bazar de Bagdá; um treinador de tigres seguro; um grande anfitrião; uma mãe carinhosa à moda antiga que perdoa tudo; um pai autoritário e rígido que não perdoa nada, espera obediência sem questionamento e não admite besteira; um ladrão de jóias esquivo; um relações públicas com muita lábia. O diretor precisa ter pele muito dura; alma muito sensível; paciência, persistência e coragem de um santo, estima pela dor, gosto pelo auto-sacrifício; ser animado, brincalhão, alternando rigidez e firmeza inabalável; teimoso.” Deve “se recusar a aceitar menos do que acredita ser o correto em uma cena, um ator, um colaborador, um membro da equipe, em si mesmo.”
“Direção, finalmente,” para Kazan, “é exercer sua vontade sobre outras pessoas, disfarçá-la, suavizá-la, mas se impor com dureza. Sobretudo, CORAGEM total. Coragem, disse Winston Churchill, é a maior virtude; torna possível todas as outras. Uma coisa final: a capacidade de dizer ‘eu estou errado’ ou ‘eu errei’. Não é tão fácil quanto parece mas em algumas situações, essas três palavras ditas com honestidade podem salvar a pátria. Elas são as palavras, com frequência, que os atores lutando para dar ao diretor o que ele quer, mais precisam ouvir dele.
“O diretor deve aceitar a culpa por tudo. Se o roteiro não presta, ele mesmo sozinho, ou com os escritores, deveria ter trabalhado mais árduamente antes da filmagem. Se o ator falha, o diretor falhou ao dirigi-lo! Ou cometeu um erro ao escolhê-lo. Se o trabalho da camera não é inspirado, de quem foi a ideia de contratar aquele operador de camera? Ou aqueles arranjos cenográficos? Até um figurino, pois o diretor o aprovou. As locações. A música, até os malditos anúncios, por que não gritou mais alto se não gostou deles? O diretor estava lá, não estava? Sim, ele estava lá! Ele sempre está lá! É por isso que ele ganha tanto dinheiro para ficar ali de pé, naquela colina, desprotegido, deixando todo mundo atirar nele e desviando os tiros mortais de todos que trabalham com ele. As outras pessoas que trabalham em um filme podem se esconder. Elas tem um diretor atrás de quem se esconder. O fato é que um diretor, do momento em que um telefonema o tira da cama de manhã (‘Chuva hoje. Qual cena você quer filmar?’) até ele escapar na escuridão no final da filmagem para encarar, sozinho, os problemas dos próximos dias, é procurado para responder uma implacável série de perguntas, a tomar decisão após decisão em uma área depois da outra das que relacionei. Isso é que é um diretor, o homen com as respostas. As coisas, por acaso, ficam mais fáceis e simples à medida que você envelheceu e acumulou alguma ou toda essa experiência? De jeito nenhum. Muito pelo contrário. Quanto mais sabe, mais o diretor tem consciência das várias maneiras que há para fazer qualquer filme, qualquer cena. E tem noção que ele precisa encarar aquela terrível limitação final, não de conhecimento mas de caráter. E qual é ela? A limitação final e mais terrível é a do seu próprio talento. Você descobre, por exemplo, que realmente tem as falhas das suas virtudes. E quanto a essa limitação não há muito que você possa fazer. Mesmo se tiver tempo para isso.”
Kazan lembra ainda a tarefa do diretor sem a qual nenhum filme é feito: “aquele miserável filho da puta, mais do que nunca nestes dias, tem que sair e obter os dólares e as libras, mendigar as liras, francos e marcos, penhorar a casa da família, as jóias da mulher, e seu próprio futuro para poder fazer seu filme. Esse processo de levantar os recursos, inevitavelmente, leva dez a cem vezes mais tempo do que fazer o próprio filme. Mas o diretor cumpre essa missão por que ele precisa – quem mais o faria? Quem mais ama o filme tanto assim?”
“Então meus amigos,” Kazan conclui, “vocês viram quanto você precisa saber e que espécie de desgraçado precisa ser. Quanto você precisa treinar e de quantas maneiras. Tudo isso que eu fiz. Nunca parei de tentar me educar e de me aperfeiçoar.
Então agora podem me crucificar – essa é sua última oportunidade. Perguntem-me como com todo esse conhecimento e toda essa sabedoria, e todo esse treinamento e todas essas habilidades, incluindo as pernas fortes de um jogador de beisebol profissional, como eu consegui desarranjar tanto alguns dos filmes que dirigi?
Ah, mas esse é o encanto de dirigir!”
Tento concluir esta carta que já vai longa demais, Brenner, lembrando Krzysztof Kieślowski, que morreu sendo operado para implantar uma ponte de safena, aos 55 anos. Ele abandonara o cinema documentário, em 1980, depois de realizar em 13 anos cerca de 18 filmes, inclusive alguns de ficção. Passados outros 13 anos, depois de ter realizado 8 longas-metragens, além dos 10 que compõem seu Decálogo, e ser reconhecido como um dos diretores mais importantes do seu tempo, Kieślowski anunciou, em 1993, que não iria mais dirigir filmes.
Mas, de todas essas entrevistas a que deu a Simon Hattenstone, publicada no The Guardian, em 8 de novembro de 1994, talvez seja a mais reveladora (disponível na íntegra aqui):
“‘Chega. É com prazer que estou pondo de lado a realização de filmes. Nunca tive prazer em fazer filmes. Não gostava de todo o mundo do cinema, um mundo inventado, irreal, cujos valores são completamente diferentes daqueles aos quais estou habituado. Valores básicos. Não é uma profissão honrada.’
O que é uma profissão honrada? ‘Fazer sapatos, isso é honrado. Alguma coisa que é útil.’ Então ele vai voltar à Polônia para fazer sapatos? ‘Não, infelizmente, eu não sei como. Fui treinado para fazer cinema. Não há mais nada que eu posso fazer.’ Ele acredita que será feliz? ‘Não, duvido.’ Alguma vez ele foi feliz fazendo filmes? ‘Não, mas tenho tudo que deveria me fazer feliz. De tempo em tempo deveríamos olhar objetivamente para a vida. Quando você alcança alguma coisa, você não percebe, de fato, que alcançou alguma coisa. É somente depois quando você a perdeu que você percebe que a perdeu.’ É por isso que ele está desistindo? Para concretizar sua realização? ‘É possível. Talvez seja isso.’”
Paro por aqui, Brenner. Espero que esta carta não sirva de desculpa para você desistir, nem de justificativa para prosseguir. Gostaria que, no máximo, pudesse ajudá-lo a pensar no que fazer de maneira mais bem fundamentada.
Fica aqui o abraço e agradecimento por sua gentileza de ir assistir ao filme, acompanhar o debate e ler este blog.
Do seu, quem sabe?, futuro colega.
Eduardo
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